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quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

FETO CONSUMADO

FAROL DA DEMOCRACIA REPRESENTATIVA

Raphael De Paola
Doutor em Fisica, Educador, Fundador do FDR

Exemplar a matéria de capa da Veja da semana passada, 28 de janeiro, intitulada “Aborto: a realidade dos consultórios”, por uma Adriana Dias Lopes. Exemplar pela baixeza das analogias e pela escolha dos termos usados, parcial ao extremo em uns casos, e totalmente falsa em outros. E também por usar a mera constatação do fato de que há médicos realizando impunemente o aborto, que era para ser o núcleo da reportagem e é a mensagem passada pelo título, como premissa camuflada para fortalecer a tese abortista na discussão mais geral sobre a licitude do aborto. Exemplar ainda pela lógica absurda, cuja conclusão, ademais, induz médicos e mães a um comportamento irresponsável que é, de fato, criminoso no nosso país. E finalmente a reportagem se destaca por mostrar como se encaixam a mídia em particular, e a intelectualidade ativista em geral, na estrutura de poder do mundo de hoje. Em suma, uma reportagem que representa genuinamente a postura dos órgãos de mídia nacionais. Analisemos ponto por ponto.

Comecemos pelas analogias. A reportagem começa pela alusão a um “mundo ideal” – juro, o termo é da Adriana - no qual os métodos anticoncepcionais fossem baratíssimos e 100% eficazes. Em tão sublime paraíso o número de abortos poderia ser praticamente zerado. Mas como Deus não é tão bom quanto a jornalista, no mundo em que vivemos o aborto se torna um mal necessário. Sendo uma alma assim tão caridosa, Adriana não dá o braço a torcer à malvada realidade e quer impor sua bondade: só tolera o aborto se for reduzido ao mínimo possível. E como verdadeiro oráculo, revela a fórmula para nos aproximarmos do lindo “ideal adriático”: adaptar para o caso a “filosofia da redução de danos” adotada em muitos países para o problema das drogas. Isso mesmo, das drogas. 

É claro que “redução de danos”, quando transposta da questão das drogas para o presente assunto, é apenas um eufemismo para designar o aborto, como a própria reportagem deixa claro. A adaptação para o caso do aborto da divina solução de “redução de danos” baseia-se, portanto, na analogia entre os seguintes termos: quem tem o problema: num caso é o drogado, e no outro a “mulher” (o artigo não usa uma única vez o termo “mãe”); e o problema propriamente dito: num caso é a droga, e no outro o feto. How beautiful is that? 

Quanto à escolha dos termos empregados pela revista, todos favorecem a tese abortista. Ao final do terceiro parágrafo, a reportagem faz referência à “...chamada ‘pílula do dia seguinte’ – que contém uma substância capaz de impedir a fixação do óvulo no útero...”. Para começar, não é simplesmente “óvulo”, mas um óvulo já fecundado, o que faz toda a diferença para um debate que versa sobre o aborto e não sobre a menstruação. Ademais, não é que a pílula “impeça a fixação” no útero, mas, através de contrações uterinas provocadas pelo medicamento, trata-se de fato da expulsão do feto, mesmo que já esteja fixado, o que ocorre na maioria das vezes. E por último, um termo que a jornalista não inventa, mas usa com gosto: a pílula não é do “dia seguinte”, mas da semana seguinte, do mês seguinte ou dos meses seguintes, podendo ser usada ao longo de largo período de tempo, como a própria reportagem atesta ao exibir uma mulher que a usou dois meses após o início da gravidez. Afinal, a reportagem não trata de situações onde mulheres tenham feito sexo ontem e tomado a pílula hoje, mas sim de casos em que um médico é consultado sobre o assunto, o que, na quase totalidade dos casos, não se dará no dia seguinte. 
Passemos agora à análise lógica da reportagem, que se prenderá a dois pontos específicos: uma tese explicitamente afirmada pela revista, e uma outra que está implícita no enfoque da reportagem como um todo, mas que constitui a conclusão geral e é a que tem peso persuasivo determinante.

Sobre o primeiro ponto, a revista afirma categoricamente: “A adoção da redução de danos por um número maior de médicos poderia derrubar ainda mais essa curva [refere-se ao “número de abortos clandestinos no Brasil”] nos próximos anos.” E ao explicar em que consiste a tal “redução de danos”, a jornalista relata: “Tal conduta prevê basicamente a adoção de duas medidas. O médico indica à sua paciente uma clínica clandestina onde ela pode fazer o aborto ou ele mesmo a orienta sobre como usar as pílulas abortivas.” Pegaram a lógica da revista Veja? A adoção em massa de abortos clandestinos reduziria maciçamente o número de abortos clandestinos. Uma argumentação digna de escolinha do MST, mas ninguém deve se surpreender que corações assim tão bondosos possuam inteligências iluminadas também.
Passemos à tese implícita. A reportagem poderia se restringir a narrar os acontecimentos, o que de fato é sugerido pelo título, mas Veja faz mais: não só encampa a tese pró-aborto, o que por si só seria lícito, mas ainda incorre em indução à prática do aborto, o que constitui crime. A argumentação implícita parte de duas premissas e leva a uma conclusão. As premissas:

1) Religiosos nem cientistas têm a menor idéia de qual seja o preciso milésimo de segundo em que começa uma vida humana.

2) Médicos renomados e corajosos (seriam anjos?) têm tomado a despojada atitude de “orientar” pacientes sobre as técnicas abortistas, e nisso consiste a tal “redução de danos”. (Por suposto que nunca lucraram nada com as “orientações”. Tampouco podiam prever que, tendo seus nomes publicados na revista, seus dadivosos serviços passariam a ser mais requisitados. E como vêm a calhar as menções na matéria ao medicamento abortivo proibido e à ONG holandesa que lhe dá acesso fácil! Todos interessados, é claro, Veja inclusive, somente na causa humanitária.)

A conclusão a que induz o artigo é que o aborto pode – e até deve, segundo dois médicos entrevistados - ser praticado com orientação profissional se a mulher assim já decidiu. (Pouco importa que essa conclusão dos médicos abortistas não seja encampada explicitamente pela revista, porque o poder persuasivo da argumentação sai ainda mais fortalecido quando obriga o leitor a tirar a conclusão óbvia que se segue de tais premissas, deixando-o com a impressão de que quem está pensando é ele, e que a revista é apenas tendenciosa sem desempenhar, no entanto, nenhum papel ativo. Um truque mais psicológico do que retórico, e por isso mesmo de maior eficácia.) A reportagem induz o leitor a pensar assim: se nem os maiores especialistas têm a questão por resolvida, e se declarações tão sensacionais podem ser publicadas numa revista de circulação nacional, dando nome, endereço e telefone, que importa a lei se alguém tomar uma decisão que a afronte? A argumentação leva em conta somente os casos em que a mulher já decidiu, mas é cristalino como água que a própria reportagem, depois de publicada e lida, poderá ser um fator em futuras decisões. E fica claro qual das opções, o sim ou o não ao aborto, é favorecida pela reportagem.

Indução premeditada ao crime é crime, incorrendo nele não somente os médicos-anjos mas a própria revista-oráculo, bastando para tanto que alguma mulher demonstre que a leitura do artigo tenha sido causa preponderante para a consecução de um aborto, ou que um médico ainda reticente quanto ao uso de tal prática declare-se influenciado de modo decisivo pela reportagem. A premeditação por parte da revista decorre do uso implícito do ponto (2) como premissa, que nada mais é do que uma constatação de fato consumado. Ora, a constatação de um fato consumado nunca pode servir como base para a discussão sobre se o fato mesmo deve ou não ser permitido por lei ou ser aceito moralmente. Caso contrário, por que considerar crime qualquer crime que seja, já que são praticados mesmo?

Quanto aos médicos abortistas da reportagem, um deles dá o seguinte depoimento: “Essa polêmica é infrutífera, pois o aborto sempre existirá, independentemente de qualquer conclusão científica, dogma religioso ou convicção ética. O aborto é acima de tudo uma questão de foro íntimo, uma decisão exclusivamente pessoal da mulher”. Sua argumentação vai ainda mais longe que a da revista, porque para ele pouco importa que se chegue a alguma conclusão sobre o assunto da premissa (1). Ou seja, mesmo que religiosos e cientistas atinjam algum dia uma conclusão e os juristas tomem uma decisão com base nisso, para o diabo com a lei.

Todos os envolvidos confundem o fato consumado da decisão tomada pela mãe com o fato consumado do aborto já realizado, transformando, portanto, literalmente, um fato consumado num feto consumado.
Permitam uma analogia: suponha que psicólogos recebam em suas clínicas ou advogados em seus escritórios pessoas que, por causa de algum incômodo qualquer, já decidiram cometer um crime por uma questão de “foro íntimo”. Talvez Veja e esses médicos (sic) concordassem com a seguinte solução: o profissional não pode deixar a pessoa “sem assistência” nem “orientação” quanto aos métodos a serem adotados para a consecução do crime. Aguardemos uma matéria de Veja sobre esse novo assunto, com todas as melhores “orientações” a respeito.

Como último ponto, a influência da intelectualidade na sociedade. Após a descrição da panacéia da “redução de danos”, segue o texto da articulista: “Pela letra fria da lei brasileira, todo o procedimento narrado neste parágrafo pode ser descrito como criminoso [pelo menos a repórter ainda lembra que está no Brasil]. Ele seria visto com pecado ao juízo das convicções religiosas de muitas pessoas. O espantoso [grifo meu], nesse caso, é que, apesar das imposições legais e das restrições ético-religiosas, médicos e pacientes se sintam eticamente autorizados a discutir e a praticar procedimentos que levem ao aborto.” O sentido do que afirma a articulista (e, aliás, da quase totalidade do que produz a intelectualidade nacional) é o seguinte: ela se espanta que, numa sociedade onde a circulação de idéias fique restrita a pequenos grupos, presos a privilégios garantidos por antigos dogmas irracionais, comecem a surgir pessoas - não se sabe bem de onde vem esse impulso misterioso -, capazes de romper as amarras da sociedade castradora, como se isso brotasse de decisões individuais espontâneas dentro de corações imaculados que aos poucos vão descobrindo a verdade, contra tudo e contra todos. 

Pois não se espante, Adriana Dias Lopes. A fonte de tal comportamento “progressista” é perfeitamente identificável. Você é uma delas, esse seu artigo é uma delas, essa sua revista é uma delas, nossa mídia inteira é uma delas, nossas universidades também, assim como toda nossa intelectualidade, e é claro que você sabe disso. De alto a baixo reina a idéia-mestra da revolução: submeter o grande número de pessoas sem coesão a uma minoria compacta e vociferante. Mas como a tarefa de transformação revolucionária da sociedade, no sentido de contrariar suas convicções ponto por ponto, não pode ser feita abertamente, resta passar a impressão de que essa transformação vem de um processo invisível, como se brotasse do fundo mesmo da realidade cósmica. Ao esconder seu papel no processo revolucionário, a intelectualidade transfere para o grande público a responsabilidade das transformações. É o ladrão gritando “pega ladrão!”. 

E a arma mais eficaz usada pela intelectualidade ativista é justamente a da reportagem de Veja: induzir e fomentar o fato consumado, usando-o para fazer valer de direito o que já vale de fato. Não podem se ater nunca à simples apresentação de suas idéias, as quais, em sua totalidade, são revoltantes, mas cuja discussão em si mesma é legítima. Não. A par disso, e para dar mais força à causa esquerdista, é preciso ainda produzir em larga escala o fato consumado, claro que atribuindo retroativamente este à hipocrisia da sociedade, nunca às suas belas ações. Veja não se limita a tomar o lado da causa abortista, o que seria por si só lícito. Veja incorre em sugestão de crime de aborto.

Para finalizar, digno de menção muitíssimo positiva na reportagem só mesmo o Dr. Yaron Hameiry, que acerta em cheio no núcleo da reportagem. Comentando sobre a abordagem de “redução de risco”, diz ele: “Fazer isso é o mesmo que praticar o aborto.” Parabéns, e permita-me chamá-lo de senhor Hameiry e não pelo título profissional, nesse momento de vergonha para a medicina brasileira, em que companheiros seus de profissão exibem como um valor sua feiúra moral ante a lei aos quatro cantos do país. Somente, acrescento eu à sua fala: publicar esta reportagem, é muito mais que praticar o aborto, é praticar um número indefinido de abortos.

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A teoria marxista da “ideologia de classe” não tem pé nem cabeça. Ou a ideologia do sujeito traduz necessariamente os interesses da classe a que ele pertence, ou ele está livre para tornar-se advogado de alguma outra classe. Na primeira hipótese, jamais surgiria um comunista entre os burgueses e Karl Marx jamais teria sido Karl Marx. Na segunda, não há vínculo entre a ideologia e a condição social do indivíduo e não há portanto ideologia de classe: há apenas a ideologia pessoal que cada um atribui à classe com que simpatiza, construindo depois, por mera inversão dessa fantasia, a suposta ideologia da classe adversária. Uma teoria que pode ser demolida em sete linhas não vale cinco, mas com base nela já se matou tanta gente, já se destruiu tanto patrimônio da humanidade e sobretudo já se gastou tanto dinheiro em subsídios universitários, que é preciso continuar a fingir que se acredita nela, para não admitir o vexame. Olavo de Carvalho, íntegra aqui.
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" Platão já observava que a degradação moral da sociedade não chega ao seu ponto mais abjeto quando as virtudes desapareceram do cenário público, mas quando a própria capacidade de concebê-las se extinguiu nas almas da geração mais nova. " Citação de Olavo de Carvalho em "Virtudes nacionais".