Se dependesse da vontade do juiz Keith Bardwell, da Louisiana, Barack Obama nunca teria nascido. Dias atrás, Bardwell negou uma licença de casamento solicitada por Beth Humphrey e Terence McKay, sob o argumento de que se trata de um casal interracial. O governador Bobby Jindal reagiu solicitando aos órgãos judiciários a demissão do juiz.
Há meio século, Bardwell teria o amparo da lei, em muitos estados do Sul e do Oeste. As leis antimiscigenação formavam o pilar da legislação segregacionista nos EUA. Elas só foram derrubadas no 12 de junho de 1967, pela Corte Suprema, no julgamento do caso Loving versus Virgínia. A decisão deu ganho de causa ao branco Richard Loving e à negra Mildred Jeter, que casaram desafiando a lei antimiscigenação da Virgínia. O 12 de junho converteu-se no Loving Day, uma celebração que exalta o amor e a liberdade humana.
Bardwell invocou apenas a lógica inerente ao pensamento racial. Segundo sua alegação, uniões interraciais não perduram e ele pretendia evitar o sofrimento dos filhos futuros do casal. “Não sou um racista; faço cerimônias de matrimônio para casais negros bem aqui, na minha casa”, concluiu.
Ele talvez não seja um racista no sentido vulgar do termo, mas obedece ao mandamento fundamental do pensamento racial: evitar a mistura. Muitos dos intelectuais que elaboraram as leis antimiscigenação americanas rejeitavam a noção de hierarquia de raças, mas não admitiam a mistura, que lhes parecia conduzir à degeneração. “Iguais, mas separados” – a doutrina jurídica dos Estados raciais é a fonte orientadora da decisão de Bardwell.
Só se pode operar leis antimiscigenação quando se sabe exatamente quem é quem. Nos EUA, a proibição de uniões interraciais sustentou-se sobre a “regra da gota de sangue única”, pela qual um único ancestral negro fazia de um indivíduo um negro. Terence McKay tem ancestrais negros e brancos. No Brasil, diante de um recenseador, ele provavelmente se declararia um “pardo”, não um “preto”. Nos EUA, até hoje, inexiste no censo uma categoria que expresse a ideia de mestiçagem – e McKay é um “negro”. A presença do “pardo” no censo brasileiro e a ausência de algo comparável no censo americano refletem as histórias contrastantes de um país que rompeu com o mito da raça e de outro que o acolheu na lei e nas consciências. No Brasil, o racismo é algo feio e vergonhoso. Nos EUA, apesar de tudo, ainda existem juízes como Bardwell e uma minoria relevante que pensa exatamente como ele.
As coisas mudam, para melhor e para pior. Nos EUA, Obama refere-se a Michelle como alguém que “carrega o sangue de escravos e proprietários de escravos”, enfatiza suas origens “misturadas” e não quer ser rotulado como um “presidente negro” pois almeja destruir o mito da raça que perdura na consciência das pessoas. No Brasil, a hipotética autodeclaração de McKay seria desconsiderada por uma norma estatal que manda juntar “pretos” e “pardos” na categoria racial “negros”. É que, por aqui, pretende-se copiar um traço crucial da tradição segregacionista americana: a divisão dos cidadãos em raças oficiais. De certo modo, a cabeça de Bardwell está entre nós.
(O Globo, 19/10/2009)
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