Introdução
Este é mais um livro sobre o declínio do Ocidente. Tento aqui realizar duas coisas raramente encontradas na crescente literatura sobre o tema. Primeiramente, apresentarei um relato deste declínio baseado na dedução e não em analogias. Os pressupostos são a inteligibilidade do mundo e a liberdade humana e por isso considero que as conseqüências que estamos agora expiando são produtos não de uma necessidade biológica ou de qualquer outro tipo, mas sim de escolhas pouco inteligentes. Secundariamente, serei ousado o suficiente para propor, senão uma solução completa, pelo menos o começo de uma, pois acredito que um homem não deve permitir que um atestado de impotência moral seja o complemento de uma análise científica.
Ao considerar o mundo para o qual esta problemática é endereçada, fiquei fortemente impressionado pela dificuldade de se fazer com que certos fatos iniciais sejam admitidos. Esta dificuldade se deve em boa parte à Teoria Whig (liberalismo anglo saxão) da história e sua crença de que o ponto mais avançado no tempo representa também o ponto de maior desenvolvimento humano. Sem dúvida alguma esta teoria é amparada pelas “teorias da evolução” que sugerem aos ingênuos uma espécie de passagem necessária do simples para o complexo. Mas ainda assim o problema central se encontra em um estrato mais profundo. É o problema terrível, quando se trata de casos reais, de se fazer com que os homens saibam distinguir entre o melhor e o pior.
Existiriam pessoas hoje dotadas de uma escala suficiente de valores racionais e capazes de conectar estes predicados à inteligência? Há bases suficientes para se dizer que o homem moderno se tornou um idiota amoral. São tão poucos os que se dão ao trabalho de examinar suas vidas, ou aceitar a resposta necessária à admissão de que nosso estado presente pode ser um estado decaído, que somos levados a perguntar se as pessoas de hoje realmente sabem o que se quer dizer com a superioridade de um ideal. Pode-se esperar que a razão abstrata seja falha nestas pessoas, mas o que se pode pensar quando fatos do tipo mais concreto lhes são apresentados, e elas continuam impotentes em fazer alguma distinção ou em aprender alguma lição? Por quatro séculos todo homem tem sido não somente seu próprio padre, mas também seu próprio professor de ética e a conseqüência é uma anarquia que ameaça até mesmo aquele consenso mínimo necessário para a existência de uma sociedade política.
Estamos com certeza justificados em dizer o seguinte sobre o nosso tempo: se desejares encontrar o monumento à nossa loucura, olhe a sua volta. Em nosso próprio tempo, vimos cidades sendo obliteradas e crenças ancestrais completamente afligidas. Podemos até perguntar, com as palavras de Mateus, se não estamos face a face com “uma grande tribulação, uma como nunca ocorreu desde o princípio dos tempos”. Nos movemos por muito tempo com a confiança impetuosa de que o homem havia atingido uma posição de independência que deixara as antigas restrições completamente inúteis. Agora, na primeira metade do século vinte, no topo do progresso moderno, assistimos a explosões inéditas de ódio e violência, vimos nações inteiras desoladas pela guerra e transformadas em campos penais por seus conquistadores; encontramos metade da humanidade olhando para a outra metade como se olham para criminosos. Em todos os lugares surgem sintomas de psicoses em massa. E de forma ainda mais impressionante aparecem discordâncias sobre os valores mais básicos, fazendo com que todo o globo planetário seja ridicularizado por palavras com múltiplos e conflitantes significados. Estes sinais de desintegração despertam medo, e o medo leva a tentativas desesperadas e unilaterais de sobrevivência, o que faz com que o processo de declínio se acelere.
Como Macbeth, o homem ocidental fez uma má escolha, que se tornou a causa final e eficiente de outras más escolhas. Será que esquecemos nosso encontro com as bruxas na floresta? Ele ocorreu no final do século quatorze, e as bruxas disseram ao protagonista deste drama que o homem poderia se realizar mais completamente se ele abandonasse sua crença na existência dos transcendentais. As forças das trevas estavam agindo sutilmente, como sempre, e elas esconderam essa proposição sob a forma de um ataque inocente aos “universais”.
Neste momento pode ser levantada a acusação de simplificação excessiva do processo histórico, mas eu tomo o ponto de vista de que as políticas conscientes de homens e governos não são meras racionalizações daquilo que foi trazido por forças não compreensíveis. Eles são, na verdade, deduções de nossas mais básicas idéias sobre o destino humano e elas tem, apesar de não total, poder para determinar nosso percurso.
Por esta razão, irei voltar minha atenção sobre William de Occam como o melhor representante de uma mudança que se abateu sobre a concepção humana de realidade neste momento histórico. Foi Willian de Occam quem propôs a doutrina fatal do “nominalismo”, que nega a existência real dos universais. Seu triunfo fez com que os termos universais se tornassem meros nomes servindo nossa conveniência. A questão verdadeira aí é a de se realmente existe uma fonte de verdade superior e independente do homem; e a resposta para esta questão é decisiva para a visão de qualquer um sobre a natureza e o destino da humanidade. O resultado prático da filosofia nominalista é o banimento da realidade que é percebida pelo intelecto e o coroamento da realidade que é percebida somente pelos sentidos. Com esta mudança na afirmação do que é real toda a orientação da cultura é alterada e já estamos na estrada para o empirismo moderno.
É fácil ser cego em relação ao significado de uma mudança que está distante no tempo e é de um caráter abstrato. Aqueles que não descobriram que a visão de mundo é a coisa mais importante a respeito de um homem devem considerar a seqüência de circunstâncias que, com perfeita lógica, procederam desta mudança. A negação dos universais traz consigo a negação de tudo que transcende a experiência. A negação de tudo que transcende a experiência significa inevitavelmente – apesar de se encontrarem caminhos para se proteger disto – a negação da verdade. Com a negação da verdade objetiva não há escapatória de um relativismo onde “o homem é a medida de todas as coisas”. As bruxas falaram com o habitual equívoco dos oráculos quando disseram ao homem que ele poderia se realizar mais completamente com esta escolha fácil, pois elas estavam iniciando um caminho que corta o homem da realidade. Assim começou a “abominação da desolação”, aparecendo hoje como um sentimento de alienação de qualquer verdade fixa.
Devido ao fato de que uma mudança de crença tão profunda eventualmente influencia todos os conceitos, emergiu após algum tempo uma nova doutrina da natureza. Se antes a natureza era considerada uma imitação de um modelo transcendente e uma realidade imperfeita, a partir deste momento passou a ser vista como portadora dos princípios de sua própria constituição e comportamento. Esta revisão teve duas conseqüências importantes para o questionamento filosófico. Primeiramente, estimulou um estudo detalhado da natureza que veio a ser chamado de ciência, devido à suposição de que seus atos e experimentos revelavam a própria “essência” das coisas. Secundariamente, e através da mesma operação, ela descartou a doutrina das formas imperfeitamente realizadas. Aristóteles tinha reconhecido um elemento de irracionalidade no mundo, mas a visão da natureza como um mecanismo racional expulsou este elemento. A expulsão do elemento de irracionalidade na natureza foi seguida pelo abandono da doutrina do pecado original. Se a natureza física é a totalidade e se o homem é da natureza, é impossível vê-lo como constitucionalmente mal; seus defeitos agora devem ser atribuídos somente à ignorância ou alguma forma de privação social. Chegamos então por pura dedução à doutrina da bondade original do homem.
E o fim ainda não chegou. Se a natureza é um mecanismo autônomo e o homem um animal racional adequado às suas necessidades, o próximo passo é elevar o racionalismo para o status de filosofia. Como o homem se propôs a não ir além do mundo sensível, era adequado que ele considerasse como sua vocação intelectual mais alta os métodos de interpretação dos dados fornecidos pelos sentidos. Esta foi a transição para Hobbes, Locke e os racionalistas do século dezoito, que ensinavam que o homem precisava somente raciocinar corretamente sobre a evidência natural. A pergunta sobre como o mundo foi feito se torna então sem sentido, pois este questionamento pressupõe algo anterior à natureza na ordem dos existentes. Assim, não é mais o misterioso fato da existência do mundo que interessa ao novo homem, cuja sistematização dos fenômenos é, como Bacon declarou em Nova Atlantis, um meio para o domínio.
Neste estágio a religião começa a assumir uma dignidade ambígua, e a pergunta sobre sua sobrevivência em um mundo de racionalismo e ciência empírica não pode deixar de ser feita. Uma solução era o deísmo, que transforma Deus no resultado de uma leitura racional da natureza. Mas esta religião, como todos que negam uma verdade anterior e superior, era impotente para cativar as pessoas, ela simplesmente deixava cada homem livre para fazer o que quisesse do mundo aberto para seus sentidos. Seguiram-se as referências à “natureza e ao Deus da natureza”, e a anomalia de uma religião “humanizada”.
O materialismo já aparecia próximo no horizonte, porque já estava implícito no que já havia sido dito e feito. Logo se tornou imperativo explicar o homem por seu meio ambiente, trabalho que coube a Darwin e outros no século dezenove (é ainda mais significativo do caráter geral dessas mudanças que outros estudantes estivessem chegando a explicações similares quando Darwin publicou a sua em 1859). Se o homem tinha chegado a este século ainda perseguindo nuvens de glória transcendental, ele agora estava explicado de uma forma que agradava aos positivistas.
Com o ser humano agora firmemente escorado na natureza, de um só golpe se tornou necessário questionar o caráter fundamental de suas motivações. A necessidade biológica, na forma da de sobrevivência dos mais aptos foi oferecida como causa causans, depois que a importante questão da origem do homem foi decidida em favor do materialismo científico.
Depois de ter sido concedido que o homem é moldado completamente por pressões ambientais, é-se obrigado a estender a mesma teoria de causalidade a todas suas instituições. O filósofo social do século dezenove encontrou em Darwin um poderoso suporte para a idéia de que o homem só age a partir de incentivos econômicos, e foram eles que completaram a abolição do livre-arbítrio. O grande espetáculo da história se tornou reduzível ao esforço econômico de indivíduos e classes; e elaborados prognósticos foram construídos sobre a teoria do conflito econômico e sua resolução. O homem criado como imagem divina, o protagonista de um grande drama no qual a alma tem seus interesses, foi trocado pelo homem consumidor e perseguidor de riquezas.
Finalmente surgiu o behaviorismo psicológico, que negou não somente o livre-arbítrio, mas até mesmo meios elementares de direção como o instinto. A natureza escandalosa deste tipo de teoria é facilmente aparente e por isso o behaviorismo não conquistou tantos adeptos quanto seus antecessores; apesar disso, era somente uma extensão lógica dos antecedentes e deveria ser abraçado com paixão pelos defensores das causas materiais. É, essencialmente, uma redução ao absurdo da linha de raciocínio que começou quando o homem deu um adeus caloroso para o conceito de transcendência.
Não há melhor palavra para descrever a situação do homem moderno do que “abismalidade” (“abysmality”, no original). Ele está em um profundo e escuro abismo, não possuindo nada para levantar a si mesmo. Sua vida é uma prática sem teoria. Assim que ele se vê cercado de problemas, acaba aumentando a confusão ao lidar com eles a partir de ações ad hoc. Secretamente ele tem um apetite pela verdade, mas se consola com o pensamento de que sua vida deve ser experimental. Ele vê suas instituições se esmigalhando e racionaliza o fato com alusões à emancipação. Guerras devem ser travadas, aparentemente com uma freqüência crescente; e por isso ele revive velhos ideais – ideais que seus pressupostos atuais tornaram sem sentido – e, através da máquina do Estado, os força a serem funcionais novamente. Este homem luta contra o paradoxo de que uma imersão total na matéria o torna despreparado para lidar com os problemas do mundo material.
Seu declínio pode ser representado como uma longa série de abdicações. Ele tem encontrado cada vez menos bases para a autoridade, ao mesmo tempo em que se acreditava no centro da autoridade do Universo; na verdade, parece existir um processo dialético que toma o seu poder na mesma proporção em que demonstra que sua independência o torna apto para o poder.
Esta estória é eloqüentemente refletida nas mudanças que se abateram sobre a educação. A mudança de verdades do intelecto para fatos da experiência se seguiu rapidamente ao encontro com as bruxas. Um pequeno sinal aparece, “uma nuvem menor do que a mão de um homem”, em uma mudança que surgiu no estudo da lógica no longínquo século quatorze de Occam. A lógica foi “gramaticizada” (“grammaticized”, no original), passando de uma ciência que ensinava o homem à “encontrar a verdade” a uma que o ensinava a “falar corretamente” ou de uma divisão ontológica por categorias para um estudo da significação, com o foco inevitável em significados históricos. Aqui começa o assalto sobre a definição: se as palavras não correspondem mais a realidades objetivas, não parece errado ter grande liberdade com estas palavras. A partir deste ponto, a fé na linguagem como uma forma de se chegar à verdade enfraquece, até o nosso próprio tempo, e preenchida por um profundo sentido de dúvida, passe a procurar por um remédio na nova ciência chamada semântica.
Voltemos então ao assunto da educação. A Renascença, com intensidade crescente, adaptou a orientação de seus estudos para a produção de um homem de sucesso no mundo, apesar de não o ter deixado sem a filosofia e as graças, porque era ainda, por herança ao menos, um mundo “ideacional” (“ideational”, no original) e, portanto, estava próximo o suficiente de concepções transcendentais para ser capaz de perceber os efeitos desumanos da especialização. No século dezessete as descobertas físicas pavimentaram o caminho para a incorporação das ciências, mas foi só no século dezenove que estas começaram a questionar a própria continuação das antigas disciplinas intelectuais. E neste período a mudança ganhou impulso, ajudada por dois desenvolvimentos de enorme influência. O primeiro foi o aumento patente do domínio humano sobre a natureza, fato que impressionou a todos a não ser os mais pensativos; e o segundo foram as reclamações crescentes por educação popular. O último poderia ter se mostrado um bem em si mesmo, mas naufragou no problema insolúvel da democracia igualitária: ninguém estava na posição de dizer com o quê as multidões famintas deveriam ser alimentadas. Finalmente, em uma rendição abjeta à situação, em uma abdicação da autoridade do conhecimento, veio o sistema eletivo. Este foi seguido por um carnaval de especialismo, profissionalismo e vocacionalismo, normalmente gerados e protegidos por estranhos instrumentos burocráticos, fazendo com que sob o nome honrado da Universidade, fossem negociados uma variedade curiosa de interesses, entre os quais não poucos eram anti-intelectuais
em suas pretensões. A instituições de ensino não controlaram, mas sim contribuíram para o declínio ao perder interesse no Homo sapiens em favor do desenvolvimento do Homo faber.
Estudos se tornam hábitos e é fácil ver estas mudanças refletidas no tipo dominante de líder de época para época. No século dezessete era, de um lado, o monarquista e defensor culto da fé e, de outro, intelectuais aristocratas do tipo de John Milton e os Puritanos teocratas que colonizaram a Nova Inglaterra. O próximo século assistiu a dominação dos Whigs na Inglaterra e o surgimento dos enciclopedistas e romancistas no Continente, homens que não careciam de uma base intelectual, mas que freqüentemente cortavam as ligações com a realidade ao sucumbirem à ilusão de que o homem é bom por natureza. A resposta de Frederico o Grande para um sentimentalista, “Ach, mein lieber Suler, er kennt nicht diese verdammte Rasse” marca a diferença entre as duas visões de mundo. O próximo período foi testemunha da soberania do líder popular e demagogo, o típico inimigo do privilégio, que expandiu a franquia eleitoral na Inglaterra, gerou a revolução no Continente, e nos Estados Unidos substituiu a ordem social que os “Founding Fathers” haviam contemplado com o demagogismo e a máquina política urbana. O século vinte trouxe à luz o líder de massas, apesar de que neste ponto ocorre uma divisão cuja importância profunda teremos a oportunidade de demarcar. Os novos profetas da reforma se dividem agudamente entre humanistas sentimentais e um grupo elitizado de teóricos sem remorsos e que se orgulham de sua liberdade de qualquer sentimentalidade. Ao odiarem este mundo que eles não fizeram e marcados por uma libertinagem de séculos, os comunistas modernos – revolucionários e teóricos – se movem em direção ao rigor intelectual. Em sua decisão se encontra a mais aguda resposta à deserção do intelecto pelo homem da Renascença e seus sucessores. Nada é mais perturbador para o homem moderno do Ocidente do que a clareza lógica com que os comunistas enfrentam todos os problemas. Quem pode dizer que este sentimento não é nascido de uma profunda apreensão de que aqui estão os primeiros realistas verdadeiros em centenas de anos e que nenhum desvio pelo caminho do meio poderá salvar o liberalismo Ocidental? Esta estória da passagem do homem de um transcendentalismo religioso ou filosófico foi contada muitas vezes, e, como ela foi contada usualmente como uma estória de progresso, é extremamente difícil fazer com que as pessoas de hoje possam ver implicações contrárias. Ainda assim, estabelecer o fato da decadência é o dever mais urgente de nosso tempo, pois, até que tenhamos demonstrado que o declínio cultural é um fato histórico – algo que pode ser estabelecido – e que o homem moderno vem destruindo sua herança, não poderemos combater aqueles que se tornaram presos do otimismo histérico.
O otimismo histérico irá prevalecer enquanto o mundo não admitir novamente a existência da tragédia, e ele não pode admitir a existência da tragédia até que distinga novamente entre o bem e o mal. A esperança de uma restauração depende da recuperação da “cerimônia da inocência”, daquela clareza de visão e conhecimentos das idéias que nos permitem perceber o que é alheio e destrutivo, aquilo que não é compatível com nossas ambições morais. O tempo para se perseguir isto é agora, antes que tenhamos adquirido a perfeita despreocupação daqueles que preferem a perdição. Pois, se deixarmos as coisas seguirem seu curso, o movimento se torna centrífugo; alegramos-nos em nossa miséria e nunca estamos cansados da sensação de realização negativa que se segue à destruição mortal de mais uma referência cultural e intelectual. Sob estas circunstâncias, não é surpresa alguma que, ao pedirmos às pessoas que pelo menos considerem a possibilidade da decadência, encontremos incredulidade e ressentimento. Devemos considerar que de fato estamos pedindo uma confissão de culpa e a aceitação de uma dura obrigação; estamos fazendo exigências em nome do ideal ou supra pessoal e não podemos esperar uma acolhida melhor do que a que os perturbadores da complacência receberam em qualquer outra época. Ao contrário, nossa acolhida deve ser ainda pior hoje, pois um século e meio de ascensão burguesa gerou um tipo de mente altamente fechada para pensamentos preocupantes. A isto se deve adicionar o egotismo do homem moderno, alimentado por muitas fontes, algo que dificilmente dá espaço à humildade necessária para a autocrítica.
Os apóstolos da modernidade normalmente principiam sua resposta por um catálogo das conquistas modernas, não percebendo que elas são somente testemunhas de sua imersão nos particulares. Devemos lhes recordar que não podemos começar a enumerar antes que esteja definido o que deve ser procurado ou provado. Não será suficiente apontar para as invenções e progressos de nosso século a não ser que possa ser demonstrado que são outra coisa além do que uma esplêndida eflorescência da deterioração. Quem quer que deseje elogiar alguma conquista moderna deve esperar até que tenha relacionado a mesma com os objetivos professados de nossa civilização assim como os Escolásticos relacionavam um teorema à sua doutrina da natureza de Deus. Todas as demonstrações que não contenham isto carecem de sentido. Se estivermos de acordo, no entanto, que iremos falar de fins antes de meios, podemos começar perguntando algumas questões perfeitamente comuns sobre a condição do homem moderno. Comecemos, antes de tudo, inquirindo se ele sabe mais ou é, na totalidade, mais sábio do que seus antecessores.
Esta é uma consideração de peso, e se a reivindicação de maior conhecimento por parte dos modernos for correta, nossa crítica cai pelo chão, pois é dificilmente imaginável que pessoas que tem aumentado seu conhecimento por século tenham escolhido um mau caminho. Tudo depende, é claro, do que queremos dizer com conhecimento. Eu irei aderir à proposição clássica de que não há nenhum conhecimento no nível da sensação e que, portanto, o conhecimento se refere aos universais, e que tudo que o que conhecemos como verdade deve nos permitir a predição. O processo de aprendizado envolve interpretação, e quanto menos particulares precisarmos para chegar até uma generalização, pupilos mais aptos na escola da sabedoria nós seremos. Toda a tendência do pensamento moderno, e poderíamos até dizer todo o seu impulso moral, é manter o indivíduo ocupado com uma indução sem fim. Desde o tempo de Bacon que o mundo tem se distanciado, ao invés de se aproximar, dos primeiros princípios. Assim, no nível verbal vemos a “verdade” sendo substituída pelos “fatos”, e no nível filosófico, somos testemunhas de ataque após ataque sobre as idéias abstratas e o conhecimento especulativo. O pressuposto implícito do empirismo é de que a própria experiência nos dirá o que é que estamos experimentando. Em âmbito mais popular, pode-se deduzir de certas colunas de jornal e programas de rádio que o homem médio está imbuído com esta noção, imaginando que a conquista industriosa dos particulares irá torná-lo um homem de sabedoria. Com que rapidez patética ele recita os seus “fatos”! Disseram-lhe que conhecimento é poder e que o conhecimento consiste na acumulação de muitas coisas pequenas.
A mudança de conhecimento especulativo para a investigação da experiência deixou o homem moderno tão aterrado com a multiplicidade que ele não consegue mais enxergar seu caminho. A partir disto podemos entender o dito de Goethe, segundo o qual só se pode dizer que alguém sabe muito no sentido de que ele sabe pouco. Se o nosso contemporâneo exerce alguma profissão, ele pode ser capaz de descrever um pedaço minúsculo do mundo com fidelidade, mas ainda não possui entendimento. A Verdade não pode existir em um programa de ciências separadas e o pensamento especializado será invalidado assim que novas relações sejam introduzidas.
O mundo do conhecimento “moderno” é como o universo de Eddington, se expandindo por difusão até que se aproxime do ponto de nulidade. O que os defensores da presente civilização querem dizer, quando dizem que o homem moderno tem uma educação superior à de seus antecessores, é que ele é um literato dos grandes números. Esta habilidade pode ser demonstrada; ainda assim pode-se questionar se já existiu uma panacéia tão enganadora, e se não estamos compelidos, depois de centenas de anos de experiência, a ecoar a observação amarga de Nietzsche: “A todos sendo permitido o aprendizado da leitura, se arruinou a longo prazo não só a escrita, mas também o raciocínio”. O problema não é que as pessoas possam ler, mas sim o que elas efetivamente lêem, e o que elas podem aprender com estas leituras, impulsionadas por todos os meios imagináveis. É isto que define o valor deste nobre experimento. Nós lhes demos uma técnica de aquisição; mas quanta tranqüilidade podemos ter em relação à forma em eles a utilizam? Em uma sociedade em que há a livre expressão e a popularidade é recompensada, eles lêem principalmente aquilo que os rebaixa e estão constantemente expostos às manipulações dos controladores das máquinas de impressão. Eu tentarei deixar isto bem claro mais à frente. Pode-se duvidar que uma pessoa em cada três consiga retirar algum conhecimento verdadeiro de suas leituras livremente escolhidas. O número assustador de fatos a que o homem tem acesso hoje somente o afasta da concentração sobre os princípios fundamentais, fazendo que com que sua orientação se torne periférica. E vagando acima de tudo como uma lembrança deste fato está a tragédia da Alemanha moderna, a grande nação completamente alfabetizada e educada.
Aqueles que se juntam aos baconianos na preferência por sapatos em detrimento da filosofia responderão que esta é uma reclamação inútil, porque a verdadeira glória da civilização moderna é a perfeição material que o homem atingiu. E provavelmente poderia se mostrar estatisticamente que o homem médio de hoje, em países não desolados pela guerra, tem mais coisas para consumir do que seus antepassados. Mas em relação a isto devem ser feitos dois importantes comentários.
O primeiro é que como o homem moderno não definiu seu caminho dentro da vida, ele sempre entra em uma “série infinita” assim que se joga na luta por um “melhor” padrão de vida. Uma das disparidades mais estranhas da história se encontra no sentimento de abundância percebido por sociedades mais antigas e simples e o sentimento de escassez percebido pelas sociedades ostensivamente mais ricas de hoje. Charles Feguy se referiu ao sentimento de “lenta estrangulação econômica” do homem moderno, seu senso de nunca ter o suficiente para manter o que seu padrão de vida exige. Padrões de consumo que ele não pode alcançar, e que ele não precisaria alcançar, se tornam literalmente deveres. Com a abundância do viver simples sendo substituída pela escassez da vida complexa, parece que, de uma forma ou outra ainda não explicada, formalizamos a prosperidade até que ela tenha se tornado, para a maioria das pessoas, somente uma fábula da imaginação. Certamente a disputa nunca estará vencida para os baconianos até que se tenha provado que a substituição da ganância pelo desapego, de um espiral ascendente de desejos por um padrão estável de necessidade, leva a uma condição humana mais feliz.
Suponha-se, no entanto, que ignoremos este sentimento de frustração e voltemos nossa atenção para o fato de que, por comparação, o homem moderno tem mais. Esta mesma circunstância gera um conflito, pois é uma lei constante da natureza humana de que quanto mais o homem tem para se contentar, menos disposto ele se torna para suportar a disciplina do trabalho – ou seja, ele se torna menos capaz de produzir aquilo que o permite consumir. O trabalho deixa de ser funcional dentro da vida e se torna algo que é rancorosamente trocado por aquela competência, ou superficialidade, a que todos têm “direito”. Uma sociedade mimada a este ponto pode ser comparada a um bêbado: quanto mais ele bebe menos capaz se torna para trabalhar e adquirir os meios para prosseguir em seu hábito. Uma grande organização material, por sua tentação para a luxúria, torna seu proprietário despreparado para o trabalho necessário para mantê-la, como já foi observado inúmeras vezes nas vidas dos indivíduos e das nações.
Mas vamos abandonar todas as considerações particulares deste tipo e perguntar se o homem moderno, por razões claras ou obscuras, sente uma maior felicidade. Devemos evitar percepções superficiais e procurar por algo fundamental. Eu estaria disposto a aceitar a definição de Aristóteles de um “sentimento de vitalidade consciente”. Será que ele se sente à altura da vida; será que ele olha para ela assim como um homem forte olha para uma corrida?
Primeiramente, devemos tomar conhecimento da profunda ansiedade psíquica, da prevalência extraordinária da neurose, algo que torna nossa época única. O típico moderno tem o olhar de um perseguido. Ele sente que nós perdermos o contato com a realidade. Isto, por sua vez, produz uma desintegração interior, e a desintegração torna impossível aquele tipo de previsão razoável pela qual, nas eras de sanidade, os homens são capazes de ordenar suas vidas. E o medo que a acompanha libera a terrível força desorganizadora do ódio e então Estados são ameaçados e pululam guerras por todos os lados. Poucos homens de hoje estão certos de que alguma guerra não irá acabar com a herança de seus filhos, e mesmo que o mal seja controlado, o indivíduo não se sente tranqüilo, pois sabe que o Juggernaut tecnológico pode bagunçar ou destruir o padrão de vida que ele criou para si mesmo. Uma criatura ordenada a olhar o antes e o depois descobre que fazer o último está fora de moda e que fazer o primeiro está se tornando quase impossível.
Adiciona-se a isto outra privação. O homem de hoje está continuamente escutando que ele tem mais poder do que nunca na história, mas sua experiência diária é de impotência. Olhe para ele hoje em algum lugar de uma grande cidade. Se ele está numa organização de negócios, as chances são grandes de que ele tenha sacrificado qualquer outro tipo de independência em retorno de uma dúbia independência financeira. A moderna organização social e a organização corporativa transformam a independência em algo caro, e, de fato, pode tornar a integridade comum um luxo proibitivo para o homem ordinário, como Stuart Chase demonstrou. Não somente é bem possível que este homem seja um escravo em seu lugar de trabalho, como ele é alocado, encaixotado e confinado de maneiras incontáveis, muitas das quais são somente mecanismos que tornam possível a existência física conjunta das grandes massas. Devido à privação do que é justo, o resultado é a frustração, e por isso o olhar, nas faces daqueles que ainda não se tornaram minúsculos, de desejo e infelicidade.
Há algumas questões que devem ser feitas para os apologistas do progresso. Certamente será objetado que a decadência desta época é a das ilusões permanentes da humanidade; será dito que cada geração sente em relação à próxima a mesma desconfiança que os pais sentem em relação à capacidade dos filhos em lidarem com o mundo lá fora. Em resposta devemos afirmar que, dadas as condições descritas, cada geração sucessiva demonstra um declínio, no sentido de que se aproxima cada vez mais do abismo. Quando a mudança está em curso, cada geração terá sua parte na mesma, e que algumas culturas passaram de um alto estado de organização para a dissolução pode ser demonstrado objetivamente como quase nada na história. Deve-se somente pensar na Grécia, Veneza e na própria Alemanha. A asserção de que mudanças de geração para geração são ilusórias e que só existem ciclos de reprodução biológica, é outra forma de negação das normas superiores, e, em ultima instância, do conhecimento, sendo este o próprio fenômeno que está na raiz de nossa degradação.
A civilização tem sido um fenômeno intermitente; a insolência do sucesso material nos blindou para esta verdade. Muitas sociedades tardias demonstraram um brilhantismo pirotécnico e uma capacidade para o refinamento muito além do que qualquer coisa vista em seus dias de vigor.
Que tal coisa ainda possa existir e ainda trabalhar contra a resolução de caráter ligada à capacidade de escolha, que é âncora da sociedade, é a grande lição a ser aprendida. No final de tal análise nosso problema é o de como recuperar a integridade intelectual que permite ao homem reconhecer a hierarquia dos “bens” dentro da realidade. O capítulo inicial, portanto, tenta definir qual a fonte última de nossos sentimentos e pensamentos sobre o mundo, e que torna nossos julgamentos sobre a vida não cambiantes e casuais mais sim necessários e corretos.