por Bruno Garschagen
Dados técnicos: João Carlos Espada, Liberdade e responsabilidade pessoal – 25 anos de crônicas. Princípia, 2008, 512 págs.
Doutor em ciência política pela Universidade de Oxford e diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, Espada selecionou textos que revelam a vivacidade do intelectual combinada com o entusiasmo pela ação política. É a história viva de um homem de idéias que reagiu às circunstâncias para depois, livre do arbítrio detonador, lapidar seu espírito e agir segundo sua consciência. Se, como desejava Cícero, a virtude afirma-se por completo na prática, convertendo em atos as palavras aprendidas nas escolas, Espada manteve-se na ação política: é consultor para Assuntos Políticos do Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva.
Três pontos me parecem substantivos na obra que percorre um amplo espectro de idéias, problemas e uma extraordinária disposição desabrida (open mind) pelas conjecturas e refutações. Primeiro, a conversão ideológica; segundo, a abordagem religiosa; terceiro, a abnegada disposição com o intuito de promover uma educação para a gentlemanship.
Os três tópicos formam a unidade que alicerça o pensamento de João Carlos Espada: a democracia liberal promove a liberdade e garante o respeito pelos diferentes modos de vida, cuja base filosófica é o conceito de sentido moral elaborado pelos moral philosophers da Grã Bretanha do século XVIII: a inclinação da natureza humana para fellow feeling (Adam Smith) ou para disinterested fellow-feeling (David Hume). É o sentido que permeia a abordagem religiosa do professor, para quem o diálogo entre a fé e a razão é mais do que uma mera possibilidade: “está no cerne do Cristianismo e exprime o encontro entre a fé bíblica e a filosofia grega”. O diálogo e o direito de usufruir e de manifestar a fé individual exigem um ambiente de liberdade, “a de viver e deixar viver”.
Eric Voegelin, que detectou a continuidade sistemática da “deformação proposicional dos símbolos dos filósofos e profetas” pela ideologia doutrinária (Reflexões autobiográficas), rejeitou o marxismo após estudar economia, teoria econômica e os ensaios de Max Weber. João Carlos Espada descobriu o “embuste intelectual do marxismo”, que o cooptara quando tinha 15 anos (1970), ao estudar as obras de Ralf Dahrendorf, Raymond Aron e Joseph Schumpeter. A ruptura definitiva aconteceu com a leitura das obras de Karl Popper, de quem foi amigo e por quem foi aconselhado a estudar em Oxford e, depois, lecionar nos Estados Unidos. As duas experiências são um upgrade notável no espírito do homem, o que permitiu à sua paixão anglo-americana se transformar em amor.
O sentido liberal de dever absorvido durante a experiência em Oxford incutiu no professor aquele código de conduta interior característico da antiga sociedade inglesa. A tradicional mensagem britânica “viver e morrer como um gentleman, se possível” é uma declaração de princípios. Oriunda do legado moral secularizado do wesleyanismo (reforma evangélica no interior da Igreja da Inglaterra promovida por John Wesley no século XVIII), o gentlemanship é o “sentimento individual de dever, o impulso pessoal para praticar o bem e tentar praticá-lo”, uma nobreza de caráter estimulada e exercida numa civilização liberal de boas maneiras e estrito autocontrole. Citando Edmund Burke, um gigante como Winston Churchill assevera: “o rei pode fazer um nobre, mas não um gentleman“.
A idéia de gentlemanship está ligada ao valor da religião no comportamento ético e moral dos ingleses e dos americanos (coexistência da liberdade com a ordem civil), fundamentos tão caros ao professor, autor de mais de uma dezena de livros, membro do Conselho Editorial da revista Journal of Democracy e presidente da seção portuguesa da International Churchill Society. Espada sustenta o elemento fundador do liberalismo: a convicção judaico-cristã “de que existe uma lei moral mais alta que não depende dos poderes de plantão”, lei que “está inscrita no coração de todos” os indivíduos e “onde a consciência individual impele os homens a formular juízos morais assentes na distinção entre o bem e o mal”.
Uma sociedade civilizada se constrói e se mantém pelo estímulo e exercício de um sentido de dever e de educação que, segundo o professor, estabelecem uma conversação com as vozes do passado (greco-romanas e judaico-cristãs) e se assentam no reconhecimento de uma hierarquia objetiva de valores e comportamentos. Liberdade e responsabilidade pessoal é um contributo notável à defesa das liberdades individuais, à celebração ardorosa do conhecimento e à difusão de um conceito pedagógico invulgar: educar para a gentlemanship.
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