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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

"Notas psicológicas adicionais sobre gerenciamento de crise: Caso Santo André"

 

CHARLIE.OSCAR.TANGO

Autor: Luciano Porciuncula Garrido*

O transtorno emocional de Lindemberg, somado ao clima de tensão, à vigília forçada e ao acúmulo dos dias e das noites, levou o jovem a efusões de um delírio quase psicótico. Nesse sentido, estudos demonstram que pessoas submetidas a estresse agudo e privadas de um descanso restaurador estarão fatalmente propensas a produzir ou agravar sintomas psicopatológicos.
O tempo, portanto, corria contra os negociadores. As oscilações de humor em Lindemberg foram acentuadas pela protelação desnecessária no gerenciamento da crise. O estresse comum às situações críticas, tornou-se um fator complicador, na medida em que potencializava os sintomas de seu descontrole emocional. Com efeito, é possível que tenha havido um erro de avaliação por parte dos que conduziram a operação, se em algum momento chegaram a acreditar que o jovem seria vencido pelo cansaço no transcorrer das negociações.

Essa tática costuma funcionar em eventos que envolvem crimes comuns, nos quais o perpetrador, flagrado em pleno ato delituoso, toma um refém na tentativa exasperada de se esquivar da prisão, ou, ainda, na intenção de garantir sua integridade no caso de uma eventual rendição. Inicialmente arredio e desconfiado, o avanço do tempo tornará o infrator mais dócil e suscetível às negociações, na medida em que o esgotamento físico e mental vai lhe dando uma nítida sensação de impotência e incapacidade para prosseguir na ação. E como a barganha é o fator motivacional nessas tomadas de refém, o controle da crise e o seu gerenciamento se mostram muito mais viáveis.

Essa, porém, não é a realidade dos chamados crimes passionais (do grego pathos = paixão, excesso, catástrofe), nos quais predominam a compulsão e o desvario. Neles, não há por parte do perpetrador uma motivação intrínseca que possibilite o estabelecimento de intercâmbios confiáveis durante a negociação. Isso porque a pessoa tomada em poder do indivíduo passional, em regra, não se configura como um instrumento de transação a ser negociado (refém); ao contrário, ela é o próprio alvo da ação delituosa (vítima). Estabelecido esse princípio, veremos que todo o trabalho de negociação será um procedimento secundário na condução de uma crise dessa natureza.

No seqüestro de Santo André, por exemplo, a jovem Nayara era a única pessoa que poderia ser considerada como refém, motivo pelo qual as negociações lograram êxito em retirá-la do cativeiro. Contudo, essa não era a condição da adolescente Eloá, uma vez que seu ex-companheiro, a todo instante, atentava contra sua integridade física e ameaçava dar cabo de sua vida, sempre de forma inopinada e gratuita.

Assim, a única coisa que se poderia fazer num incidente com essas características era administrar terapeuticamente as intenções do perpetrador, por intermédio de um bom rapport(1) e de técnicas eficazes de persuasão (ou dissuasão, como queira); só esse tipo de abordagem, mais dialética e apaziguadora, poderia demovê-lo de seus impulsos destrutivos ora dirigidos à vítima.

Desta forma, quanto mais cedo ocorrer a intervenção saneadora, maiores as chances de um resultado positivo. Sendo o transtorno emocional um fator desencadeante nesse tipo de crime, a tendência é que se exacerbe em igual proporção ao dilatamento do tempo e ao acumulo das tensões e do estresse. Esse é um quadro que poderá levar o perpetrador a um inevitável colapso nervoso, se adiado indevidamente.

O psicanalista Igor Caruso, em seu livro A Separação dos Amantes, faz uma análise fenomenológica sobre toda problemática que envolve rupturas radicais em relacionamentos amorosos. A depender da história pessoal dos envolvidos, tais ocasiões poderão deflagrar todo um processo regressivo de caráter mórbido, no qual afetos negativos de rejeição, frustração e auto-depreciação são apenas os sintomas mais visíveis. Segundo Caruso, toda separação assemelha-se emocionalmente a uma vivência de morte (morte subjetiva do objeto amoroso), donde o trabalho de luto – isto é, o sentimento natural de tristeza e pesar – seria o curso normal para a restauração psíquica frente ao trauma provocado. Porém, em alguns casos, impulsos patológicos podem sobrepujar a tendência natural do organismo ao restabelecimento, produzindo com isso comportamentos bastante ofensivos e virulentos.

Some-se a todo esse espectro de sentimentos carregados e mal digeridos as temerárias influências da mídia ávida de audiência, que insuflava a megalomania do rapaz com uma transmissão comentada em cadeia nacional. Foi um espetáculo televisivo que retirou do anonimato um pobre rapaz suburbano, de personalidade insossa e comum, dando-lhe os temperos e requintes de uma dramaturgia digna de Nelson Rodrigues. Não faltaram psicologias, psiquiatrias, sociologias e antropologias para vitimizá-lo, para torná-lo um produto acabado de sua personalidade, de sua condição social, de sua cultura, ou outro pretexto ideológico que seja.  Todos os motivos para levá-lo a insanidade já haviam sido dados; da mesma forma os pretextos para o seu ato sanguinário. Qualquer capitulação, qualquer sinal de fraqueza, qualquer melindre, retiraria Lindemberg de um final “apoteótico”.

Aos integrantes da operação, talvez, tenha faltado elementos teóricos para um diagnóstico mais profundo da crise.  A tendência geral foi pela minimização do problema (um lugar-comum), subestimando o poder ofensivo do perpetrador ao reduzi-lo a mais um episódio de mise-en-scène juvenil na tentativa atabalhoada de chamar sobre si a atenção e reconquistar o amor perdido.
Partindo-se dessa premissa, a avaliação do presente caso foi bastante equivocada, e, em decorrência disso, muitos procedimentos adotados foram igualmente inapropriados. Chamar de “negociação” a estratégia fundamental no gerenciamento daquela crise já demonstra de antemão uma falta de aporteteórico para definir conceitualmente toda a relação que se deveria estabelecer com o perpetrador, levando-se em conta o eixo central de suas motivações.

O fato de Lindemberg ter exigido algumas contrapartidas para uma eventual rendição, não podia ser tomado como uma demonstração cabal de que estava disposto a entregar-se. Diferentemente, seus diálogos com o interlocutor policial davam mostras nítidas de que ainda estava imerso nos abismos e dilemas que envolvem uma crise existencial daquele porte. Portanto, a tarefa mais importante no gerenciamento daquela crise não era negociar algumas condições que albergassem uma improvável rendição do perpetrador. Até porque não foi a falta de garantias que fez Lindemberg assassinar Eloá! Muito mais premente era submeter o rapaz a um trabalho psicológico hábil e competente, estabelecendo com ele um diálogo terapêutico, com vistas a apaziguá-lo, dissuadi-lo e convencê-lo, enfim, de que todo ato extremo é uma solução definitiva para problemas transitórios. Esse manejo psíquico pode até ter sido feito, mas não com as aptidões que o caso requeria.

Doravante, acredito que incidentes dessa magnitude deverão ser tratados, sempre que possível, por equipes multiprofissionais.  Inúmeras são as variáveis envolvidas na complexidade dos eventos críticos, de tal forma que seu gerenciamento pode ficar comprometido se tais variáveis não forem oportunamente identificadas e devidamente manipuladas.  Tudo isso, por óbvio, foge às percepções de um comando único, centralizado, feito exclusivamente por esta ou aquela corporação do seguimento de segurança pública. Tais incidentes pressupõem todo um background científico que, muitas vezes, não se exaure nas doutrinas de gerenciamento de crise nas quais seus operadores comumente se amparam.

 

(1)"Rapport é a capacidade de entrar no mundo de alguém, fazê-lo sentir que você o entende e que com ele possui um forte laço em comum. É a essência da comunicação bem-sucedida." Anthony Robbins

* Luciano Porciúncula Garrido é Psicólogo, Policial Civil e Especialista em Segurança Pública.
E-mail: garrido1974@gmail.com

Um comentário:

  1. Boa tarde!
    Tudo isso pode ser certo, correto, verdadeiro.
    Mas esticaram o tempo demais. Por uma ou duas vezes ele expôs a cabeça por vários segundos na janela, o suficiente para ser varrido do mapa por um bom atirador.
    Findas as contas, a morte levou Eloá. A outra escapou por mero acaso.
    Se era para finalizar com a morte de alguém, que um atirador fizesse direito o serviço.
    Mas assim como a pressão da mídia pode ter perturbado um pouco o rapaz, também perturbou a capacidade de decidir com frieza do comando da operação.
    Evacuassem o prédio, isolassem a uma boa área, afastassem -por segurança- a imprensa e tudo poderia ter terminado de outro modo.
    Gutenberg

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