DEXTRA
DOMINGO, 7 DE NOVEMBRO DE 2010
DAVID RIEFF: Big Questions Online, 25 de agosto de 2010
Tradução: DEXTRA
Quase no fim de Defying Hitler [Confrontando Hitler], suas memórias extraordinárias sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, Sebastian Haffner descreve como os nazistas tinham "tornado camaradas todos os alemães em toda parte." Isto, argumenta ele, foi uma catástrofe moral. Isto evidentemente não aconteceu porque a camaradagem nunca foi uma coisa boa. Pelo contrário, como Haffner se deu ao trabalho de insistir, ela foi um conforto e ajuda grandes e necessários para as pessoas que tiveram de viver em condições insuportáveis e desumanas, sobretudo na guerra. Mas Haffner sustenta de forma igualmente enfática que, em tempos normais, na vida civil comum, a camaradagem se torna um vício, pois ela desobriga as pessoas da "responsabilidade por suas ações, perante si mesmas, perante Deus, perante suas consciências (...) Seus camaradas são sua consciência e dão absolvição a tudo, desde que elas façam o que todo mundo faz."
Qualquer pessoa que já tenha sido intimidada por colegas num pátio de escola ou, mais precisamente, qualquer pessoa que já tenha se juntado a outros para intimidar alguém, ou simplesmente ficou por perto enquanto a coisa acontecia, sabe muito bem aonde aquela sensação de que nenhuma culpa recairá sobre ela pode levar. Ela termina fazendo (ou pelo menos sendo conivente) com coisas que nunca faria se estivesse só e que tem dificuldade em justificar depois que a multidão se dispersa e ela fica sozinha de novo. A retomada destes escrúpulos - ao mesmo tempo fardo e bênção da consciência individual - não significa sair, do total conformismo com a multidão, para o seu oposto simétrico: um absoluto não-conformismo. Ser um verdadeiro não-conformista é raro, o que faz sentido, já que um não-conformismo absoluto significaria rebelar-se não só contra alguma convenção em particular, mas antes contra toda convenção e, por extensão, toda continuidade com o passado. Levado a este extremo, o não-conformismo se torna o equivalente moral da autarquia econômica - a auto-suficiência levada ao ponto do nihilismo, e são poucos os que seguem este caminho (nossa pose moderna de não-conformismo é um outro assunto).
Por outro lado, a queda em algo próximo do absoluto conformismo parece ser uma possibilidade sempre presente para quase todos nós. As pessoas ainda se lembram bem das experiências de Stanley Milgram em Yale, nos anos 50, que aparentemente mostravam que os participantes obedeciam prontamente a figuras de autoridade e cometiam atos que (embora simulados pelos pesquisadores) aparentemente transgrediam seus mais profundos valores morais. Mas a assim chamada experiência de Asch, que deriva de uma série de experiências realizadas na Swarthmore College durante o mesmo período pelo psicólogo Solomon Asch, é provavelmente até mais perturbadora. Asch aplicou um teste de visão aos participantes. No grupo de controle, ninguém foi pressionado a dar uma resposta incorreta e só um em 35 deram. Mas no grupo onde a maioria dos participantes deu uma resposta incorreta (como Asch os havia instruído a fazerem), 75 por cento deles deu uma resposta incorreta a pelo menos uma pergunta. Ainda mais perturbador: Asch mostrou que era preciso 3 pessoas, entre 35, que se aferrassem àquela resposta incorreta para que o resto do grupo mudasse de idéia.
Mas o problema desta "loucura" das multidões vai muito além de uma simples dicotomia entre o verdadeiro e o errôneo, com sua implicação super-otimista de que, se a inexatidão de uma resposta puder ser demonstrada, como no caso da experiência de Asch, então o encantamento do pensamento grupal pode ser quebrado. No contexto de uma multidão, o que um acredita pode na verdade ser de importância secundária. Haffner, descrevendo o estado de espírito popular nos primeiros momentos do domínio nazista, observa que o anti-semitismo ainda não havia se estabelecido. "Mas 'nós' não estávamos preparados para criar tratar o assunto como um problema," ele diz, observando que este "nós" era "uma entidade coletiva, e com toda a covardia intelectual e a desonestidade de um ser coletivo nós instintivamente ignorávamos ou diminuíamos qualquer coisa que pudesse perturbar nossa presunção coletiva."
Com o perdão de Nietsche, este desejo de presunção é o que esta no coração da psicologia da multidão. Pense no comportamento das multidões politicas do presente. É um exercício de simplificaçâo radical depois do outro, desarticulando ativamente, na frase competente de Haffner,"todos os elementos de individualidade e civilização." Quer sejam manifestantes de esquerda protestando com o eslogan "Sem justiça vai ter paz" (de cara a assertiva é falsa - entre outros brilhos -, já que nem todas as coisas boas combinam juntas e frequentemente a escolha com que nos deparamos é de justiça ou paz); quer sejam os manifestantes do Tea Party, com seus chapéus de três pontas e bandeiras dizendo "Nâo me pise," nossas multidões políticas são documentos vivos sobre os mais baixos denominadores comuns de subordinação do indivídual ao coletivo e do pensamento ao eslogam: em fim da complexidade à simplicidade.
Nada disso é novo, claro. Quando eu era adolescente, nos anos 60, passei muito tempo protestando contra a guerra no Vietnam. Mudei de idéia sobre muitas coisas na vida, mas continuo tão contrário àquela guerra com 57 anos quanto com 17. Mas me lembro bem do meu profundo desconforto antes de chegar a cada protesto de que participei e de meu alívio igualmente profundo quando eu finalmente conseguia me desvencilhar da multidão. O primeiro era como se perder na boca faminta da presunção sobre a qual Haffner escreve com tanta eloquência; este, como recuperar a própria identidade, completa, com todas os incômodos que são a marca de nossa humanidade individual. Em uma multidão, só se pode dizer "Sim, nós podemos." Mas é um indivíduo que vai dizer "Não podemos não."
Não estou dizendo que todas as multidões sejam más. O grande escritor alemão Elias Canetti escreveu sobre a iIusão de igualdade que a multidão confere à cada um que se torna parte dela. Esta igualdade não é sempre uma ilusão.Tenho passado um tempo bom aqui em Buenos Aires ultimamente. Um dos maiores prazeres da capital argentina são as milongas, os salões de tango da madrugada. É um clichê (e uma coisa mais rara do que a maioria de nós consegue admitir) falar de lugares que atraem gente "de todo tipo." Mas é exatamente isto que estas milongas fazem e eu tenho me perguntado por que minha alergia e medo de multidões parece que nunca me assalta enquanto eu assisto à dança como durante uma reunião política e também em jogo de futebol ou em show de música pop, mesmo se admiro a banda ou torço pelo time. A única resposta que consguegui achar é que embora os dançarinos pareçam membros da multidão, cada casal, enquanto dança, tem uma identidade diferente do outro, não importa quantos estejam na pista no momento.
O individualismo, como a própria civilização, é algo de frágil e ganho a duras penas. É por esta razão que a guerra, mesmo a guerra justa (e eu acredito plenamente que haja guerras justas e necessárias), é inimiga da civilização.Pois lutar numa guerra significa, de fato, subordinar a própria identidade individual à do grupo. O treinamento militar básico é isso aí - a criação de uma lealdade de grupo ou, para usar o termo técnico militar, coesão da tropa. O sargento que treina o recruta esmaga a sua identidade e o inicia em uma identidade coletiva. Como mais poderiam soldados que, fora de serviço, poderiam antipatizar intensamente uns com os outros terem fé numa doutrina que exige deles que estejam prontos para morrerem uns pelos outros?
Mas a multidão não vê a guerra como uma tragédia. Pelo contrário, volta e meia vemos multidões exigindo alegremente que seus países vão à guerra, esquecendo-se, como coletividade, o que certamente quase todos eles sabem como indivíduos, que é o quanto na realidade a guerra é terrível. Não é que todos os indivíduos sejam equilibrados, ou reflexivos, ou gentis. ou misericordiosos. É que este equilíbrio, ou sensatez, ou gentileza ou misericórida só são possíveis para indivíduos. As multidões podem ser alegres ou podem ser assassinas; elas podem celebrar ou podem protestar; mas o que esta além de seu alcance é a sobriedade - e e a sobriedade que em última análise separa a civilização da barbárie.
Talvez seja por isto que Einstein certa vez disse que "Quem marcha alegremente em fileiras ao som de música já ganhou meu desprezo. Foi por engano que ele recebeu um cérebro grande, já que para ele a coluna vertebral certamente bastaria."
A lição, seja sobre geopolítica ou sobre a vida diária, precisa ficar clara: se o que você está pensando pode muito bem ser expresso em uma palavra de ordem e berrado ou erguido em uma faixa por uma multidão, então você provavelmente não está pensando é nada. E em tempos conturbados como os nossos, tempos da mais imensa perturbação moral, social, cultural e tecnológica, isto é imensamente perigoso.
David Rieff é um escritor e jornalista de Nova Iorque. Seu livro mais recente é Swimming in a Sea of Death: A Son’s Memoir [Nadando num mar de morte: memórias de um filho] (Simon & Schuster, 2008)
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