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segunda-feira, 13 de setembro de 2010

“A modernidade quis organizar a agonia” (27.01.07)

LUIZ FELIPE PONDÉ (entrevista)

Para filósofo, ruiu a utopia da solução científica da existência: “O ser humano é agonia, não é alguma coisa que tenha solução”.

RAFAEL CARIELLO (FOLHA DE SÃO PAULO)

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A seguir, Luiz Felipe Pondé diz que o momento é propício à dúvida conservadora porque há hoje um “afrouxamento da certeza moderna”.

FOLHA – Para os modernos, o problema está sempre fora do homem?

LUIZ FELIPE PONDÉ - A tentativa de transformar o problema humano em político-social é já fruto da busca de você afastar o mal que o caracteriza e dizer que o problema é o grupo social, que poderia ser modificado. O problema é sempre o contexto, a família, a classe social… O pensamento conservador tem uma urticária enorme dessa idéia de progresso, sabe? Que nós vamos construir muitas estradas, vamos crescer economicamente, as pessoas vão ficar com muitas TVs em casa, e aí a vida vai melhorar.

FOLHA – É isso que o separa ao mesmo tempo de esquerdistas revolucionários e de liberais reformistas?

PONDÉ – É aí que eles se encontram. A idéia de que você pode construir uma engenharia social para melhorar o homem, a idéia de que você pode identificar a natureza humana e mexer nela. É o que os ingleses chamam de teorias de gabinete. Faço aqui uma teoria sobre como melhorar o homem. Apago toda a Idade Média, toda a história da humanidade, e acho que nos últimos 200 anos é que a gente entendeu o ser humano. Isso é típico do que causa risadas numa mente conservadora. A idéia de que um cara que escreveu um livro há 150 anos evidentemente sabe mais do que Aristóteles. Como dizia [Edmund] Burke [1729-1797, filósofo crítico da Revolução Francesa], “a sociedade é um contrato entre os mortos, os vivos e os que não nasceram ainda”. Isso implica que não devemos romper com o passado como se a adolescência fosse o paradigma da vida. Com relação aos “que não nasceram ainda”, isso aponta para as fronteiras da crítica conservadora: usaremos embriões para fabricar cremes de beleza. Não temos recursos morais no comportamento humano que indiquem qualquer capacidade de não fazer isso, se isso nos for “útil” -o direito não preserva nada por mais de 40 anos. Somos utilitaristas ferozes e hipócritas. Nossa atenção deve se concentrar nos sucessos da ciência. Isso não significa negar a pesquisa científica, mas não idolatrá-la. A dúvida conservadora deve chamar atenção para os delírios de um Estado sempre autoritário, mesmo que se diga democrático, para a necessidade de rompermos com esse integralismo da felicidade – existem coisas muito mais importantes do que a felicidade -, enfim, que ensinemos aos mais jovens como a vida é um risco eterno, como o ser humano é uma espécie precária, violenta e atormentada pela falta de sentido e como fracassamos na utopia idealista do progresso.

FOLHA – O que o pensamento conservador crê que possa estar sendo perdido com a modernidade?

PONDÉ – Faz parte da dúvida conservadora a idéia de que a única forma de fazer frente ao poder são várias formas de poder – brigando entre elas. Por isso que a Idade Média foi tão boa, no sentido de que nela você não tinha nenhuma instância de poder absoluto. A modernidade é uma adolescente, uma menina de 14 anos, que chega a um lugar e começa a organizar. Essa é a imagem. Imagine essa menina, que entra na empresa e começa a administrá-la. Joga fora o que foi feito até hoje, começa a inventar todos os procedimentos. É a modernidade. Perde-se o quê nesse processo? Perde-se o que uma adolescente de 14 anos perderia administrando uma empresa. Quase tudo.

FOLHA – A literatura, a arte, são lugares privilegiados de aparecimento da reflexão conservadora?

PONDÉ - A arte não totalmente, na medida em que ela é tomada por essa febre da vanguarda. A ruptura da ruptura da ruptura. Isso é quase uma piada. Mas a literatura tem um espaço resguardado porque, como não tem de apresentar resultados, nem progride, ela não se submete de todo à lógica moderna. Sim, você pode pegar um Kafka, um Dostoiévski, uma série de autores onde esse mal-estar com a modernidade aparece. Neles, o que me importa é em que medida o que escreveram serve para eu compreender o mundo, por que a vida é quase sempre uma porcaria, por que, apesar de quase todas as provas em contrário, a maioria das pessoas insiste em viver.

FOLHA – No seu artigo sobre Dostoiévski, o sr. trata do problema do mal. O mal é o grande recalcado da modernidade?

PONDÉ - Acho que sim. Talvez sim. No entanto o ser humano é capaz de sobreviver a esse totalitarismo de “o homem é bom”, e “o mal é contextual”. Apesar de Rousseau, o ser humano ainda é capaz de perceber que, na realidade, o mal está nele. Se dissolvo o mal num sistema social, então não sou mal. O mal é concreto em toda parte, embora às vezes tenhamos dificuldade de defini-lo. A questão é em que medida o recalque do mal na realidade não se presta ao ser humano construir uma neurose narcísica. É óbvio que o mal existe. O que talvez a gente possa pôr em dúvida é se existe o bem. Esse sim é mais difícil de compreender.

FOLHA – O conservadorismo parece ganhar força hoje – e isso, no Brasil, é claro. A que se deve isso?

PONDÉ - Antes de tudo a dúvida conservadora é caracterizada pela idéia de que a gente toma sempre de dez a zero da vida. O momento pode ser propício justamente pelo afrouxamento da certeza moderna.

FOLHA – A promessa parece ter falhado…

PONDÉ – Sim, nesse sentido da utopia: a reformulação científica do humano, a administração da vida, a solução científica da existência. O que caracteriza a modernidade é a utopia de que a gente vai organizar a agonia. Não resolvem. O ser humano é agonia. O ser humano não é alguma coisa que tenha solução.

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