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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Por que Weimar cedeu ao totalitarismo

MÍDIA SEM MÁSCARA

Motivo desse ensaio: tema pouco explorado, embora de fundamental relevância histórica e jurídica. Escrevi-o há algum tempo, e confesso que fui motivado a publicá-lo por conta de comentários muito interessantes postados pelos prezados leitores do site MSM acerca dos vínculos entre Weimar e o totalitarismo na Alemanha nazista.
Toda cultura é resultado de uma miscigenação entre um nível imanente e um nível espiritual


Nos territórios germânicos, na primeira metade do século XX, assistiu-se um crescimento vertiginoso do Estado, dos partidos políticos e de uma concepção aberta de democracia que incluía posições ideológicas anteriormente contestadas nas monarquias liberais do Século XIX.

As diversas comunidades políticas que povoaram os territórios do Império Prussiano eram interligadas por uma burocracia estatal forte, que executava as determinações do Rei prussiano. Após a derrota na primeira grande guerra, a transformação política fizera surgir a então chamada República de Weimar, chancelada com a Constituição de 1919. A Constituição de Weimar acabou por anunciar mudanças estruturais significativas em relação ao Império. Eis algumas das novidades da Constituição Weimariana, as quais arrolo por minha própria conta:

1) surgimento de uma 
democracia social pluralista, com aceitação de todas as correntes político-ideológicas existentes (conservadores, liberais, socialistas, comunistas, social-democratas, etc);

2) ratificação de uma situação socioeconômica em que o crescimento das massas urbanas exigira uma posição de 
maior aproximação do Estado com relação a sociedade;

3) crescimento de 
tarefas estatais antes desconhecidas pela antiga monarquia prussiana;

4) criação de um quinto poder estatal, chamado 
Poder Administrativo, voltado para a realização de funções eminentemente burocráticas;

5) os 
direitos subjetivos públicos, entendidos como categorias formais de direitos estatais.
Não obstante as conquistas de Weimar, tais como a democracia pluralista e a criação do Poder administrativo como quinto poder estatal radical às influências ideológicas, fato é que a Constituição pecou em outros aspectos. Primeiro, por que a aceitação da democracia pluralista não preparou a Constituição para assegurar valores comuns na ordem política, pois não impeliu nenhum dos partidos políticos a respeitarem, em seus respectivos estatutos e ações, os direitos fundamentais da pessoa humana. Segundo, por que os chamados direitos subjetivos públicos não são categorias de direitos entendidas como pré-estatais e nem mesmo como direitos do homem, mas como "direitos" surgidos por atos de vontade do Estado, verdadeiro e único titular legítimo desses mesmos direitos. Assim, os direitos subjetivos públicos são, na verdade, concessões legislativas e constituintes por atos de misericórdia política.
Assim, se não há garantia formal e material para a manutenção e para o exercício dos Direitos, não há também garantia de que tais direitos sobreviverão. Juridicamente, podemos até afirmar que a Constituição de Weimar não forneceu nenhuma garantia contra a ascensão do regime totalitário nazista.
Ainda, em uma democracia que todas as posições são aceitáveis sem um vínculo comum entre elas que ponha freios e contrapesos institucionais ao poder é evidente que os partidos que conquistarem posições em órgãos-chave como o Gabinete (poder governamental) ou as cadeiras do Parlamento (Bundestag) implementarão suas posições ideológicas sem nenhuma espécie de limites. Sim, pois se não há limites materiais e nem formais ao poder, isto quer dizer que a Constituição de Weimar foi um documento sem eficácia jurídica.
Contudo, apesar dos erros políticos e jurídicos da Constituição de Weimar, algo de positivo encontramos quando visualizamos sua arquitetura institucional. É que, a par do que havia nas monarquias liberais do novecento, o documento weimariano pretendeu conceber uma estrutura de instituições inteiramente inovadora e hábil para os problemas crescentes de uma Germânia em plena expansão
Nas monarquias anteriores, o Rei aparecia como poder remanescente e neutro em relação às ideologias existentes (à moda de Benjamin Constant, em sua tese sobre o Poder Remanescente). Assim, colocava-se acima das disputas partidárias e ideológicas, atuando como uma auctoritas, isto é, como um símbolo político de unidade e de consensus.
Na medida em que o poder do Estado foi crescendo, com a maior efetivação da hierarquização e estratificação das funções políticas estatais durante o século XIX, surgiram os ministérios como órgãos voltados para a realização das tarefas mais diretas do Estado. Assim, os órgãos ministeriais representaram o dinamismo político necessário para um Estado cujas tarefas aumentavam a cada dia. Diante disso, ao invés da administração se subordinar aos ministérios (que exerciam atividades político-partidárias, isto é, de cunho ideológico), permaneceu vinculada aos atributos reais, mantendo-se subordinada ao Rei. Resultado: a administração manteve-se à margem dos liames ideológicos que formavam os governos ministeriais (o que na Inglaterra vai ser responsável pelo surgimento do governo de gabinete e, dessa maneira, da especialidade da função governamental). Assim, quando do momento da Constituição de Weimar, a administração foi elevada a condição de Poder estatal, adquirindo status de instituição voltada para a eficiência e execução imparcial dos serviços públicos, separada do Governo e da Chefia do Estado (nesse sentido, ver Souza Junior, Cezar Saldanha. Tribunal Constitucional como Poderver também Garcia de Enterría, Eduardo. Democracia, jueces y control de la administración).
Claro que um autor foi deveras importante para a idealização de tal instituição. Trata-se de Max Weber. Ao formatar os motivos sociológicos que geram fontes de legitimidade para quaisquer formas de poder político, Weber trabalha com três fontes: tradicional, carismática e racional legal (Weber, Max. Economia y sociedad). Nesse último caso, resta claro o papel preponderante da ordem jurídica como razão de ser para o exercício do Poder. Assim, por exemplo, em um Estado democrático de Direito, o exercício do poder democrático respeitará e se embasará na ordem jurídica, cujo significado de legitimidade reside no consentimento da comunidade política. Assim, na forma racional-legal, o Direito como fruto do consentimento é a forma que dá caráter de aceitação para o poder político. E tal poder, para ter eficiência, necessitará de meios também imparciais para a execução das tarefas consentidas pela comunidade, de maneira que será exigida uma burocracia estatal, isto é, uma conjunção de órgãos voltados para a tarefa precípua de realizar os serviços públicos direta e inexoravelmente. Weber chamara tal tipo de legitimidade racional. Procurando entender o que significa racionalidade, concluímos que Weber procurou chamarracional tudo aquilo que dizia respeito a causa e efeito de cada ação, e não exatamente aos princípios norteadores da ordem política. A saber: Weber separara a axiologia do nível pragmático das experiências, buscando com isso não a descoberta de valores essenciais do político, senão desmascarar um conjunto de técnicas que faziam parte da própria estrutura da realidade política e que poderiam informar qualquer regime ou ideologia política (Weber, Max.Ciência e Política: duas vocações).
Essa busca de racionalização do poder não poderia restar desacompanhada de um projeto institucional. Assim, Weber foi determinante para que a Administração alcançasse a condição de poder político estatal. Weber diz que "o tipo mais puro de dominação legal é aquele que se exerce por meio de um quadro administrativo burocrático"(Economia y sociedad). Um quadro estatal técnico, burocrático, inteiramente voltado tão somente para a consecução dos serviços públicos estatais. Eis a grande novidade institucional da Constituição de Weimar em seus arts. 129 e 130.
Não obstante as grandes contribuições de Weber e da Constituição de Weimar para o avanço das instituições políticas ocidentais há que se atentar para os efeitos reversos dessa transição de uma monarquia clássica liberal para o semipresidencialismo com cinco poderes e sem garantias materiais de manutenção dos direitos fundamentais.
Claro que a posição weberiana acerca da racionalidade do poder político não fora intencionalmente propagada para a elevação dos totalitarismos. Porém, não há que se negar que, embora a insistência técnica de Weber tenha sido louvável em um ambiente marcado por filosofias totalitárias da história tais como positivismo e marxismo, a burocratização excessiva do Estado após a primeira grande guerra repercutiu de modo negativo em uma Alemanha em pleno crescimento econômico. O nível superlativo de excessiva fidelidade administrativa foi apenas conseqüência de uma Constituição que, embora tivesse interesse pelos direitos fundamentais, nada teve de meios formais e materiais para garanti-los.
O crescimento do Estado administrativo, o apego aos direitos subjetivos públicos e uma cultura alemã recheada de romantismo e, assim, covarde frente às dificuldades de uma transição político-constitucional imprudente, levaram a República de Weimar à bancarrota.
Uma cultura deformada, em que a língua alemã não expressava mais os signos da ordem, de um apego cultural por idéias marcadas por sinais coletivistas e historicistas, de um humanismo grotesco que via no ser humano não o fundamento e fim do poder, mas como meio para o alcance dos resultados "técnicos"! A Alemanha de Weimar não apenas estava em ruínas, senão que legara um sistema jurídico incapaz de fazer frente aos projetos de Hitler.
O sistema institucional era interessantíssimo. A obra genial de Weber era um grande passo. Porém, a transição ocorrida em 1919 não se atentara para o problema especificamente "jurídico". Não conceber instituições para a garantia da ordem e dos direitos fundamentais fora abrir as comportas para a tiranização totalitária demoníaca.

Ainda assim, é importante que se diga que no início dos anos 30 as instituições administrativas, como instituições estatais que eram, não estavam mais representando a existência e o consentimento da comunidade na prestação "devida" dos serviços, mas eram instituições burocráticas cujo único caráter era o de servir não mais ao público, mas ao poder. Assim, o crescimento do Estado administrativo no final dos anos 20 levou à falência de uma representação legítima das instituições burocráticas com relação à comunidade política. A idéia de consentimento não servia mais como a base para a legitimação racional legal e o projeto idealizado por Weber não mais se fazia representar.
A maior ênfase na finalidade política e não burocrática levou a administração e, assim, o Estado a desconsiderar a substância do poder (consentimento da comunidade), levando a ausência de conexão entre o arranjo de instituições e o consensus político-social.
Essa ausência provocou uma distância entre o Poder, o Direito e a Administração de um lado, e a sociedade alemã, inserta em um ambiente cultural maciçamente coletivista e materialista, de outro.
E, se o direito, que é a base do poder e da administração em um Estado de Direito estão distantes do consentimento social, ele fica a mercê daqueles que exercem esses mesmos cargos em órgãos estatais. Resultado: a situação caótica de uma democracia sem ordem fez com que o primeiro antidemocrata que subisse ao poder implementasse seu "Estado Ideal" goela a baixo da sociedade alemã. O Rechtsstaat foi substituído por um Estado Totalitário, cuja ideologia era encarada como "verdade absoluta" da história. Seu líder: um messias revolucionário, que apareceria como salvador de uma Alemanha devastada, não por fora, mas por dentro, vez que o lado espiritual da cultura alemã havia desaparecido com o romantismo e com o coletivismo historicista.
Esse apocalipse salvacionista materialista, em que o "salvador" é Hitler, é um dos resultados de uma cultura absolutamente negadora dos nexos espirituais da própria noção de "cultura". Toda cultura é resultado de uma miscigenação entre um nível imanente e um nível espiritual. Quando se nega o último, o primeiro basta em si mesmo, não havendo recursos além dos próprios sentidos humanos visíveis para a fundamentação dessa cultura. Resultado: a cultura será maquiada conforme os desejos e vontades daqueles que informam essa cultura, que não se preocuparão em exortar nessa mesma transmissão cultural os elementos transcendentes que escapam seus próprios sentidos e responsabilidades. Em suma: sem um nível espiritual julgador, ninguém é de ninguém!

O esvaziamento espiritual de uma Alemanha devastada por uma cultura materialista e abarrotada de símbolos artificiais acabou por também gerar reflexos na estrutura política da República de Weimar. A modificação cultural acabou surtindo mudanças nas instituições político-administrativas e em seus símbolos correspondentes.
A tarefa das instituições políticas é, em qualquer cultura de ordem, adaptar-se a essa mesma cultura de maneira a representar não a vontade dos governantes ou mesmo a vontade/interesses do povo, senão os símbolos autenticamente significativos da ordem dessa mesma cultura, isto é, representações da verdadeira existência dessas sociedades, manifestas pelo consentimento da comunidade política (Voegelin, Eric. The authoritarian state: an essay on the problem of the Austrian State). Em teoria política, chamamos tal consentimento de aceitação por parte de todos com relação aos valores que referem aspectos existenciais comuns entre todos, valores significativos do ser humano enquanto homem pertencendo a uma cultura. Ser um homem dentro de uma cultura é ter uma existência cujos aspectos são decerto manifestações ativas e passivas em uma dialética entre o espírito, a alma e o corpo. Tal dialética existencial é a reprodução mesma da vida do homem e, por sua vez, da sociedade. Há uma analogia entre o homem e a sociedade que é constitutiva da existência mesma do mundo natural social, pois que não há homem sem sociedade e não há sociedade sem homem (Aristóteles, Política). E, se tal dependência não é meramente teórica, senão uma dependência concreta, fato é que a cultura é o eixo civilizacional do ser humano, pois atribui ao mesmo um conjunto de valores representativos da existência humana histórica e política, entendidos como sendo o próprio patrimônio comum por excelência da ordem de uma sociedade. Não há sociedade e, assim, não há homem sem cultura, pois esta é a primeira concepção de ordem presente tanto externa quanto internamente no homem. Externa porque a vida em sociedade só é ordenada por fatores culturais que produzem nas instituições políticas um amplo respeito e admiração pelos valores que acabam por fazerem dessas mesmas instituições entes que servem a sociedade e que, assim, são naturalmente limitadas em seu agir político. Internamente, porque reflete na alma do homem um agir em conformidade com esses mesmos valores, que participam na formação do caráter atribuindo à constituição da personalidade uma ordem indispensável para a integridade do homem, bem como seus juízos constitutivos acerca da vida e do significado da existência. A cultura, nesse aspecto antropológico, aparece como ordem.
Porém, quando as instituições estatais não se vinculam mais aos símbolos representativos dessa ordem cultural, a saber, aos nexos de consentimento da comunidade política, o primeiro passo certo seria uma reforma profunda no seio dessas mesmas instituições. No entanto, quando as instituições permanecem as mesmas, sobretudo quando o coração dessas instituições é neutro, vazio e sem sentido cultural, como o que aconteceu com Estado administrativo germânico nos anos 30, a saída não pode ser outra senão a criação artificial de novos símbolos representativos da ordem. Artificiais porque os símbolos não mais seriam manifestações do consentimento da sociedade, mas representações criadas pelos homens que exerciam poder político para manter seus cargos e usarem dos mesmos para realização de um projeto messiânico escatológico. O totalitarismo, assim, foi entrando em uma cultura cega, pueril, em uma sociedade sem condições existenciais de avaliar a ordem e a desordem reinante. Os responsáveis pela maturação do Estado total foram criadores de símbolos artificiais em uma cultura de desordem espiritual. Daí o sucesso desses homens!
A desconexão entre a realidade política (símbolos artificiais) e os símbolos anteriores (símbolos naturais, frutos do consentimento) provocou uma dissociação entre os valores autênticos da cultura e a própria realidade existencial, tornando as instituições passivas diante do quadro instaurado.
A par disso, uma longa tradição de teóricos do Estado encontraria nessa situação particular uma conseqüência nefasta para suas idéias estatais. A juspublicística alemã do século XIX, em grande parte, atribuiu ao Estado um caráter pessoal e, com isso, o titulou como sujeito de direitos e de vontades, dotado de vontade unipessoal para ratificar ou extinguir direitos. Essa concepção subjetivista do Estado fora compartilhada por ilustres juristas germânicos, tais como Paul Laband,Georg Jellinek, dentre outros. Claro que homens dessa envergadura intelectual jamais concordariam com os resultados de uma Alemanha em crisis cultural e institucional. Porém, podemos dizer que, em parte, a concretização constitucional de suas idéias acerca da pessoa do Estado, não por culpa desses autores, mas em razão da desordem cultural e institucional, acabou por auxiliar na construção do Estado total.
Assim, se os direitos subjetivos públicos são direitos da pessoa do Estado, o mesmo pode, em razão da decisão de seus representantes, deliberar sobre a extinção ou concessão desses mesmos direitos. Em Weimar, os direitos subjetivos públicos eram direitos fundamentais. Porém, atos de vontade do Estado, e não direitos da pessoa humana. Assim, quando o Estado administrativo fora tomado pelos nazistas, uma das medidas foi eliminar a concessão dos direitos subjetivos públicos para a população judaica.
Assim, podemos concluir que a transição efetuada com a Constituição de Weimar preocupou-se demais com a democracia pluralista, mas esqueceu-se de fortalecer as Instituições políticas e as garantias jurídicas para uma possível tomada do poder por parte dos inimigos da democracia.
Que isso sirva de lição para a atualidade: preocupar-se com a democracia, não é apenas buscar um jogo político com deliberação livre e manifestação das opiniões em um espaço público, mas, sobretudo preocupar-se com o arranjo de instituições para a conservação desse sistema, bem como com as garantias jurídicas necessárias para que o regime não aceite que as oposições pereçam.
Em momentos históricos quando a cultura de um país é tomada de símbolos artificiais e avessos aos símbolos espirituais permanentes, um cuidado redobrado para com as instituições políticas, e com as garantias constitucionais nunca é demais.
Oxalá os brasileiros acordem a tempo!

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