TERÇA-FEIRA, MAIO 25, 2010
Nota introdutória: É preciso ver que assim como C.S. Lewis, em seu livro Um experimento na crítica literária, tenta traçar um modo de crítica literária que dependa dos leitores, também devemos fazer isso com Lost. Dizia ele que um bom livro é aquele que permite boas leituras. Assim digo que um bom filme, ou seriado, é aquele que permite boas experiências cinematográficas ou seriadas. O que vai abaixo não é um modo objetivo de avaliar Lost, mas o meu modo, como eu o vi e experimentei. Se isso trouxer benefício a alguém, ótimo, se não, é porque, provavelmente, você não tem afinidade estética comigo, e isso não é ruim, apenas acontece.
O texto também não quer destrinchar cada pedacinho do seriado, apenas mostrar a unidade resgatada, o resgate de mito como estória formadora, como experiência organizada capaz de ser reencenada imaginativamente que dá ao espectador aquela dose de profundidade que não se vê em outras produções. Dito isso vamos ao texto.
ps. mais para diante nesses dias eu faço a correção ortográfica do texto, pois o escrevi no afã da hora.
No começo do primeiro episódio da série LOST temos duas cenas que vão abaixo descritas.
Primeira visão: Tela escura na qual passeia inclinado um logo escrito LOST.
Segunda visão: um olho se abre.
Creio que, depois de assistir ao último episódio da série LOST, posso dizer que esta é a melhor série já produzida na televisão em todos os tempos -- que creio nunca terá concorrente -- e todo este texto que se segue é a explicação das minhas impressões que justificam tais afirmativas.
Retornando às duas cenas iniciais creio que o desfecho da série é tão perfeito em sua estrutura que não poderia ser modificado em nem um frame sequer. Vamos partir das duas primeira cenas para que possamos chegar ao fim sem perder o sentido último de toda a experiência montada em forma de série.
O termo lost em inglês significa, à princípio como mostrado no primeiro episódio, a situação de estar perdido. Temos atualmente dois grandes significados para o termo perdido. O primeiro é a situação de estar incomunicável, em terras desconhecidas, longe de qualquer possibilidade de saída daquele lugar. O acidente de avião nos dá essa impressão. Sobreviventes de um acidente aéreo, um grupo de pessoas se vê confinado à uma ilha que logo de cara se apresenta como misteriosa e selvagem. O segundo grande significado paraperdido é a situação de não ter salvação. Aqui encontramos uma alusão bíblica. Não podemos esquecer que o seriado é eminentemente alusivo e se tirarmos esse elemento a própria estrutura da série cai por água abaixo e deixa de ser a experiência singular que é.
Mas, antes de continuar, devo esclarecer o que é que eu entendo por experiência. Essa palavra, que perdeu, como a maioria das palavras, seu peso em nosso dia a dia, no senso comum remete à um entendimento de sedimentação. Isso quer dizer que uma experiência acrescenta isso ou aquilo à pessoa. Mas não é qualquer experiência que pode receber essa denominação. A experiência por excelência, no sentido forte da palavra, quer dizer algo como maturidade. Aquele que é experiente já possui em si mesmo o sentido da própria experiência. Então se alguém é assaltado no ônibus, pode dizer que passou por esta experiência. E estaria sendo adequado ao acontecimento, ele passou pela experiência, que ficou para trás e, posteriormente, foi perdida. O que uma tal pessoa pode nos contar como inusitado passou a ser o que se denomina por uma experiência. E não a articulação dela no, próprio indivíduo. A maioria das experiências marcantes que nos contam, hoje em dia, nada mais são que meros fragmentos de emoções, teorias várias, e reducionismos a um quadro de poucos adjetivos. Tudo o que as pessoas podem contar são suas impressões de seus sentimentos e emoções durante dado evento. Digo, para essas pessoas, que isso não é experiência no sentido que digo serLost uma experiência. Pois a experiência artística é elaborada para que possamos reexperiencia-la, e fazê-lo desde a articulação da obra. Assim dito, voltemos ao curso normal.
Primeiro nós temos o escuro, no qual lemos perdido(s), depois vemos um olho se abrir. Essa é a primeira cena, o começo de tudo. Digo que essa série não terá concorrentes, pois ela abriu a possibilidade de uma série de tevê ser desenvolvida com tal formato. E o final de tudo é o mesmo olho que se abriu, se fechando. Isto nos dá, perfeitamente, a proporcionalidade da avaliação que podemos fazer do seriado. Enquanto olho visto pelo espectador, é a abertura a este que a série faz. Enquanto olho fechando é o encerramento da experiência. Um arco de seis anos. Para quem acompanhou a série desde o começo, ou pelo menos quem a viu seqüencialmente desde o início, a última cena é profundamente inquietante. Lembramos toda a trajetória daquele personagem, durante todo o tempo, e podemos comparar sua situação de despertar ofegante, com a situação de se encerrar calmamente. Quem for incapaz de perceber a distância experiencial do olho que abre pro que fecha não vai conseguir contemplar todo o arco dramático. E tento frisar esse ponto, pois o símbolo do olho é primordial para entendermos o resto.
O olho sempre foi símbolo do conhecimento, da sabedoria, e da luz. Aliás a luz é o símbolo do olho e o olho símbolo da luz. É um entrecruzamento simbólico dos mais antigos pelo qual o homem pode articular e compreender o conhecimento e a abertura ao transcendente. O olho que se abre, se abre à experiência, ao conhecimento, ao mundo e a si mesmo. Ao olho que se abre assim adiciona-se a indicativa lost. Perdido, confuso e desorientado Jack acorda em uma selva, melhor símbolo de caos não há, e acaba em uma praia -- onde vemos parte do avião quedado com inúmeras pessoas em estado pós-queda, o que significa: machucados, semi-mortos, confusos, etc. -- e saindo da mata, do caos, se defronta com duas coisas, o oceano, símbolo do infinito, da transcendência, e a praia que acomoda os destroços e destroçados, alguns física outros espiritualmente. Jack se detém no caos que acontece sobre a areia. Ele é médico e logo se põe a ajudar os demais sobreviventes. Ele, neste momento, é muito importante ressaltar, está ausente de si mesmo, ou seja, está em função dos outros.
No último capítulo Jack já não mais está em função de ninguém, mas somente de si mesmo. Embora isso não signifique ser egoísta, mas sim ter um senso de unidade própria, cuja lhe permite ser ele mesmo no mesmo momento em que se entrega. Essa atitude é perfeitamente compreensível. Embora possamos traçar e elaborar quem queremos ser durante nossa vida, nunca poderemos saber por quais experiências concretas passaremos. A atitude de Jack no último capítulo é aquela de quem sabe o que quer e sabe o que tem que fazer, embora não faça a mínima idéia de como isso se dará. Só podemos escolher em nossas vidas quem queremos ser, e agir de acordo com isso, todo o resto se torna lamentavelmente vão sem isso.
O grande mérito da série é dar ao expectador a oportunidade de reexperienciar isso conjuntamente com o personagem. Se ele sai da condição de personagem desmantelado, confuso e temerário e chega à condição de ser humano tridimensional, confiante e resoluto, não é por que existia algo chamado "destino" pré-escrito para ele, mas porque ao longo de toda sua experiência humana, fez decisões que o levaram a tal posição. Lembremos de Jack dizendo ao monstro de fumaça encarnado que Jacob não o escolheu, mas ele mesmo se voluntariou. E a maior prova de que não podemos chamar a própria escolha de Jack de destino, é a sua honestidade e integridade ao passar o posto de guardião da ilha a Hurley, ponto que se visto pelo ângulo da seqüência dos acontecimentos nos mostra que Jack não estava destinado a ser o guardião da ilha, nem morrer para consertá-la. O fez por livre escolha, por senso de adequação à sua própria consciência.
É notável, portanto, que ele o fez não porque fosse um homem de ciência. E o título do primeiro episódio da segunda temporada pode enganar a muitos. Man of Science, Man of Faith, Homem da Ciência, Homem da Fé, deixa um rastro errado para tentar retroceder às escolhas de Jack. Um homem sem unidade interna deixa capenga sua ciência e risível sua fé. Jack ganha o senso de sua escolha por motivos meramente concretos. Quase no fim ao reecontrar seu pai este lhe diz: Foi tudo real.
É praticamente impossível que qualquer pessoa conte sua própria vida integrando todos os eventos, organizando todos os desconhecimentos, todas as lacunas. A Ilha de Lost nada mais foi que um cenário, que funciona muito bem se o espectador se mantém fiel à proposição de Coleridge da suspension of disbelief. Este autor cunhou este termo para toda a fruição de obras fantásticas, míticas ou misteriosas. Se aplicarmos devidamente à série tal preceito a Ilha não é um entrave à contemplação da evolução interna de Jack, e de todos os outros personagens. Se aqui me detenho em Jack é por mera força da narrativa que centra o foco no personagem. Ao longo das primeiras temporadas Jack se contrapunha diametralmente ao personagem John Locke, fazendo aquele com este a dobradinha que carregava a série nas costas. Mas o arco dramático foi muito claro ao matar Locke, deixando somente Jack como continuumnarrativo. E feliz foi a opção de dar a roupagem de Locke ao monstro da Ilha. Pois o último episódio é marcante ao colocar, novamente, frente a frente os dois personagens. Aquele já esvaziado de substância, mas relembrando que sempre será uma dívida de Jack, pois este em certa altura do fim se lamenta de não poder desculpar-se com aquele. Quando Jack confronta, olho no olho, o monstro-Locke vemos o quão mudado está, e este impacto é extremamente necessário para que nós aceitemos seu fim.
Adotando uma estrutura narrativa que sempre variou, dosflashbacks e flashfowards aos pulos temporais e flashsideways, o arco narrativo se serviu de cada elemento de sua estrutura para manter coerente sua proposta que só poderá ser compreendida no fim – pois se uma experiência cinematográfica não pode se aproximar de uma experiência literária, pois o quê de imaginação necessário para fruirmos uma obra escrita estão ausentes no cinema (por razões óbvias), nesse último episódio somos requeridos trabalhar o tempo inteiro com todas as memórias de todos os episódios já apresentados, e nisso o seriado difere do cinema, mas, também, não é qualquer seriado que faz isso com a máxima eficácia de Lost. Se todos os flashssempre nos levaram a situações que se ligavam às situações presentes dos personagens, isso não foi em vão, o pai de Jack, novamente, nos diz explicitamente que eles lá estão para "relembrar tudo e esquecer, deixar ir" tudo aquilo. Mas é muito difícil fazê-lo sozinho. John Dewey, com o perdão da citação, já dizia: No man is an island. A comunidade prévia que havia na ilha antes dos personagens de Lost lá chegarem, ajuntados sobre a alcunha de Dharma, eram unidos pela concepção da ciência de poder explorar, medir e controlar as misteriosas energias da Ilha. Aqui não é sem um sorriso no rosto que a crítica ao pensamento da ciência como método salvífico deve ser recebida. Pois não foi nem o Homem da Ciência, que se um dia foi o próprio Jack, já no fim não era mais, nem o Homem da Fé, já que Locke morreu, que chega ao fim da história para trazer de volta a luz depois da tempestade.
Novamente, perto do fim, percebemos que o símbolo do olho, da visão, e, por conseguinte, da luz volta com força total. Ao abrir o olho começa a sua jornada através, e pela, luz. É a luz que guia o conhecimento. Mas de nada serviria um conhecimento que recaísse em explicações, teorias e sistemas filosóficos. Grande parte dos mistérios fundamentais da Ilha são como são, não possuem explicação e nem devem ser explicados. A narrativa correria o risco de cair num campo gnóstico se assim fizesse. Porque Jack tem que trazer de volta a luz? Porque é assim que deve ser. Porque sua própria personalidade e sua própria unidade o dizem que assim deve ser. No fim Jack não é um homem nem da ciência, que é sempre auto renovável e as certezas que proclama estão sempre em revisão, nem um homem de fé, no sentido de acreditar no desconhecido, Jack é um homem de firmeza e fortitude, pois crê em si como único ser capaz de lhe dizer o que deve fazer, crer, etc..
Levando a estrutura da estória para o lado espiritual, e como toda boa narrativa que pretenda se alçar ao ramo das memoráveis, ela trabalha com arquétipos, sem cair num buraco sem fim teológico e dogmático. Lost desde o encerrar da série no cerrar dos olhos de Jack é o mito resgatado em mídia moderna. É por isso que muitos não vão gostar do fim da série. Começam no escuro, com o olho abrindo e terminam na Luz, que curiosamente fica atrás dos olhos se fechando. A única forma de aceitar os olhos se fechando como se fecharam é saber que a luz já foi alcançada. Seja lá o que for a luz, mas como luz serve de metáfora e analogia universais. No fundo o seriado é a história de um homem, profundamente angustiado, que poderia ser qualquer um da nossa modernidade sem sentido, que procura um porto seguro para continuar a viver, e no fundo, ter pelo que morrer. A morte nada mais é que o sentido último da vida, que infelizmente foi esquecida há algum tempo, sendo substituída pela noção de saúde. O prolongamento da vida sem a perspectiva da morte na frente dos olhos, não faz nenhum sentido. E enquanto vemos pessoas passarem a vida inteira assustadas com a perda da saúde, nunca podemos sequer debater o tema da morte, pois foi transformado em tabu. E foi transformado nisso não porque a saúde é melhor que a morte, mas simplesmente porque sem uma unidade interna definidora de sentido para a vida a própria morte se torna a coisa mais sem noção da existência.
Então não interessa saber se o personagem está vivo, morto, no purgatório, no limbo, no inferno ou no paraíso. Importa sim saber que tudo aqui foi real, e que o crescimento interno daquele médico conturbado foi possível, e se deveu somente às suas escolhas, baseadas no convívio que teve com seus companheiros de jornada. Diz Christian Shepard: sem eles nada disso seria possível, eles precisavam de você e você precisava deles. Aqui temos outro indicativo para o centro da narrativa: o próprio Jack. Mas se fosse só por conta dele nada disso teria muito sentido. Todos os personagens, uns em menor escala, outros em maior, conseguiram se redimir, reestruturar, centrar-se naquilo mesmo que é a única ponte de salvação para todos: o sentido das próprias ações. É muito engraçado que para mostrar personagens tentando achar o sentido das próprias ações a história os tenha que remeter à uma Ilha misteriosa. Isso se dá somente porque o nosso meio está tão saturado de banalidade e vulgaridade que seria inconcebível nos meios atuais que a história se passasse em qualquer cidade conhecida. O nível de coisas inexplicáveis é na Ilha tão grande quanto as coisas inexplicáveis que acontecem diariamente em nossas vidas. Mas foi preciso criar um sentido hiperbólico para ressaltar que as únicas coisas que fazem sentido na vida do sujeito é o próprio sujeito que pode avaliar, e nada melhor terminar mostrando que é impossível abarcar tudo. Jack aceita a vida que tem, pois é a única vida que pode viver, e com isso ganha a si mesmo novamente como centro e sentido da vida.
Em entrevista no programa que foi ao ar logo depois do último episódio, Aloha to Lost de Jimmy Kimmel, Matthew Fox, o ator que interpretou Jack, disse ao apresentador que sabia desde o começo da série como ela terminaria, disse que sabia a série começar com o abrir de olhos de Jack e terminar com seus olhos fechando. Isso pode nos comprovar que os criadores estavam cientes o tempo inteiro de estar resgatando a narração mítica, do homem que tem de se alçar por suas próprias forças para tomar o controle da própria existência. E se ao longo dessa jornada receber ajudas, sejam elas humanas ou sobrenaturais, isso não tira em nada a força da jornada interior.
Num mundo tão afastado da idéia da pessoa como persona, como unidade significativa de ações e feitos, a série fechou com chave de ouro ao conseguir resgatar esse sentido último da vida humana, da única maneira que poderia oferecer ao espectador o que Aristóteles veio chamar de Katharsis, ou seja, a experiência física reencenada imaginativamente que dá ao indivíduo a grandeza, altura ou força da própria existência como experiência física. Lendo os vários textos que falam do fim da série em uma pá de países, vendo o programa de Jimmy Jimmel, onde mostrava a audiência assistindo ao vivo o episódio final, o que não faltou foi essa catarse da alma, em que as pessoas vão até o fundo do seu campo emocional, racional e imaginativo, tudo ao mesmo tempo, e saem de lá como que expurgadas de si mesmas, mas com uma consciência maior da própria experiência. Creio que, de todos os textos que eu li, somente uns dez porcento não disse abertamente ter caído em lágrimas, ter experienciado fortes emoções, ou ficar com uma impressão profunda do último episódio. Pois é exatamente este episódio, que se visto trazendo de volta todos os episódios anteriores, ou, pelo menos os mais importantes, no seu desdobrar, não tem como causar outra impressão. Aqueles que se pegaram se questionando sobre os tais "mistérios" não resolvidos e não conseguiram se alçar ao nível do último episódio, pois para experienciar completamente o último episódio é preciso ter uma boa dose de trabalho interno - o que remete o espectador ao nível de trabalho interno do próprio personagem, pois não podemos esquecer que Jack ao protagonizar este último evento mantém e contém todas as suas memórias, estas que ele reluta em aceitar no tal flash-purgatório, mas é lembrado por seu pai que todos eventualmente morrem. Lembrança essa digna do mobral, mas atualmente é necessário lembrar isso, e até trazer à tona com uma nova roupagem, é preciso dizer sinceramente na cara do sujeito com a maior seriedade: você, meu filho, vai morrer, e a morte é pra valer - é preciso, dizia, se alçar, e aqueles que não conseguiram fazer isso realmente não conseguiram impregnar-se do que Lost tem de melhor.
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