21/04/2010
Poloneses relembram os 70 anos do massacre de Katyn, quando 22 mil pessoas morreram
A União Soviética assassinou em 1940 a elite polonesa, na maioria oficiais do exército. Foi a chacina de Katyn. Essa foi a tragédia que os dirigentes mortos em 10 de abril em um acidente aéreo iriam comemorar
Com o velho livro aberto pela metade, Anna Maria Wolinska procura em uma lista o nome de seu pai. "Waclav Wolinski, deportado em 1939." Capitão de artilharia ligeira do exército polonês, tinha 38 anos quando foi para a guerra em agosto desse ano. Sua filha estava prestes a completar 5 anos: "Eu era muito pequena então, mas lembro perfeitamente do dia em que meu pai foi embora. Os bolcheviques o fizeram prisioneiro poucas semanas depois". Ele nunca voltou.
Um a um, a sangue frio, 22 mil militares poloneses como Wolinski foram executados com um tiro na nuca em 1940 e atirados em valas comuns em território do que era então a União Soviética. Foram vítimas da polícia secreta de Stálin, a temida e sinistra NKVD.
A chamada chacina de Katyn - a floresta próxima à cidade de Smolensk na qual foram encontrados os primeiros cadáveres - representou o extermínio, em menos de um ano, da elite polonesa. Durante meio século o crime foi censurado pelo regime comunista, que sempre acusou a Gestapo por essa terrível carnificina.
Em 23 de agosto de 1939 amanheceu um dia negro para o destino da Polônia. A Alemanha nazista e a União Soviética assinaram um pacto de não agressão pelo qual dividiram o país centro-europeu. Adolf Hitler invadiu a parte ocidental da Polônia em 1º de setembro; as tropas polonesas recuaram para o oeste, por onde entraram as forças de Joseph Stálin 17 dias depois. Esmagada pelas máquinas de guerra alemã e soviética, o pânico se apoderou da Polônia. Foi preso "qualquer um que usasse uniforme, desde o oficial de carreira até o professor mobilizado da reserva para ajudar o governo polonês a se defender dos inimigos", explica Richard Zelichowaski, professor da Academia de Ciências da Polônia. "Eram policiais, generais, coronéis, professores, membros dos serviços secretos, médicos, juízes, advogados, funcionários públicos, empresários... eram a elite militar e administrativa do país", explica.
Nos anos 1920 e 1930, o exército polonês estava carente de pessoal formado, e quando eclodiu a guerra milhares de profissionais e intelectuais foram chamados às fileiras como oficiais. Cerca de 230 mil militares poloneses foram feitos prisioneiros pelos soviéticos. Foram interrogados e classificados para identificar os que poderiam representar um perigo maior para as autoridades invasoras. Deles, um total de 22 mil, na maioria oficiais, foram internados em três campos especiais para prisioneiros em território soviético: Kozielsk, Starobielsk e Ostaszkow.
O pior não eram as condições desumanas em que viviam: o pior era a incerteza. Passaram semanas, e em muitos casos meses, alojados nos campos sem que ninguém lhes dissesse o que queriam deles. Algumas versões afirmam que foram interrogados e torturados, outras creem que simplesmente os mantiveram à espera de ordens que nunca chegavam.
O pai de Anna Wolinska era soldado profissional. Sua guarnição tinha sede em Wolyn (atualmente território da Ucrânia). Depois de ser detido, acabou no campo de Starobielsk. "Meu pai mandava cartas de lá para minha mãe", lembra Wolinska, que hoje tem 75 anos e vive em Varsóvia. "Dizia que estavam bem, mas que não sabiam o que ia acontecer; ninguém lhes dizia nada." A última carta chegou em 8 de março de 1940. Justamente nesse mês fatídico, o Politburo de Moscou havia tomado sua decisão. O órgão máximo executivo do Partido Comunista ditou a ordem de matar os oficiais poloneses, passando por cima de todos os convênios internacionais relacionados ao tratamento de prisioneiros de guerra.
O extermínio foi organizado pela polícia secreta de Stálin. "Um grande número de oficiais do exército, empregados da polícia polonesa, dos serviços de espionagem, membros dos partidos nacionalistas e contrarrevolucionários da Polônia, todos eles declarados inimigos da autoridade soviética, estão sendo retidos em diversos campos", afirmava aquela ordem, assinada por Laurenti Beria, braço-direito de Stálin. "Todos esperam ser libertados para começar a atuar contra a autoridade soviética", acrescentava, para justificar as execuções.
Em conduções de várias dezenas de cada vez, os presos foram transferidos em caminhões para florestas próximas. Os prisioneiros de Kozielsk foram levados para Katyn; os do campo de Starobielsk, para Jarkow; os do campo de Ostaszkow, para Kalinin (hoje Tver). Um a um, foram colocados diante de sua própria tumba, e às vezes com a cabeça coberta, às vezes descoberta, de mãos amarradas, receberam um tiro na cabeça. Assim durante semanas, meses...
O tiro na nuca era um método habitual da NKVD (entidade precursora da KGB), mas Krystyna Brydowska, de 73 anos, tem outra teoria sobre como morreu seu pai, também oficial do exército polonês detido pela União Soviética. "A rádio Europa Livre afirmou que os prisioneiros do campo de meu pai, o de Ostazskow, tinham sido transferidos para o mar Branco [na costa noroeste da Rússia], onde foram afogados pela polícia secreta stalinista", conta.
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O historiador Piotr Gontarezyk está convencido de que não foi assim: "Era o que muitas famílias queriam crer, porque sempre tinham a esperança de que, ao ser levados para outros lugares, existia a possibilidade de que tivessem escapado. Mas sinceramente não creio que a NKVD tivesse se incomodado em levar os prisioneiros para outro lugar para executá-los a milhares de quilômetros de distância. Não combina com o sistema de extermínio organizado pelo aparelho de Estado soviético".
As primeiras marcas daquela matança foram reveladas em 1943. Quem fez isso foi a Rádio Berlim, naquela época nas mãos dos nazistas. Alguns operários poloneses que trabalhavam nas ferrovias no leste do país, então ocupado pela Alemanha nazista, descobriram os primeiros cadáveres. Havia dezenas de valas, cheias de esqueletos empilhados uns sobre os outros, no bosque de Katyn, a poucos quilômetros da cidade russa de Smolensk. Unidades do exército alemão desenterraram ali 4.500 corpos. Meio século depois encontraram-se mais cemitérios desse tipo, mas o nome de Katyn já tinha se transformado no símbolo de todos eles.
"A descoberta foi para a Alemanha um instrumento propagandístico de primeira ordem", conta Gontarezyk. Hitler e Stálin, que começaram a guerra como amigos, eram agora inimigos. Stálin mudou de opinião e uniu-se aos aliados que combatiam Hitler. Para a Berlim da época, foi uma oportunidade de ouro para mostrar ao mundo os crimes soviéticos, e de passagem semear a discórdia entre os aliados, incluindo o governo polonês no exílio. A mídia do Terceiro Reich publicou fotografias, cartilhas de vacinação e detalhes sobre os objetos pessoais encontrados nas valas. Alguns poloneses souberam dessa forma do falecimento de seus parentes.
Stálin contra-atacou imediatamente, culpando a Gestapo pelos crimes descobertos. Sua estratégia não serviu para explicar onde estavam os soldados poloneses aprisionados por Moscou que, apesar de terem sido oficialmente anistiados depois da paz assinada por Moscou com os aliados (em junho de 1941), não voltaram para suas casas. O chefe do governo polonês no exílio, general Wladyslaw Sikorski, perguntou a Stálin onde se encontravam todos esses militares de seu país que não voltavam. "Escaparam", limitou-se a responder o ditador soviético. "Para onde poderiam ter escapado?", insistiu outro general polonês. "Para a Manchúria", sugeriu.
Apesar de que a nenhum dos aliados convinha então que suspeitassem que um dos seus havia cometido tais crimes, a Polônia mostrou-se contrária a aceitar essas explicações. Meses depois, as relações de Sikorski com Stálin se romperam. Em julho de 1943, o general polonês morreu em um acidente aéreo assim que decolou de Gibraltar no avião Liberator em que viajava com outras 16 pessoas.
Depois do fim da guerra, em 1945, se consumou a ocultação dos crimes de Katyn. A censura do regime comunista impedia pronunciar esse nome em público. E quem falasse disso em particular poderia acabar nas listas da polícia política polonesa, a SB, e em alguns casos ir parar na prisão. Anna Wolinska já morava em Varsóvia. Ela e sua mãe fugiram do leste do país por medo de acabar em um campo de trabalho na Sibéria, e conseguiram passar despercebidas. "Minha mãe queria fugir a todo custo, queria evitar os bolcheviques", ela conta. Tinha suas razões: muitos parentes dos oficiais assassinados acabaram reclusos em campos de diversos territórios da União Soviética na Rússia, Ucrânia e Belorus, junto com milhões de cidadãos soviéticos, onde a maioria morreu de frio, fome ou doenças.
"Para passar sem problemas, minha mãe teve de queimar todos os objetos pessoais que tinha de meu pai, incluindo as cartas", conta Wolinska. Depois de se instalar em Varsóvia, "logo começamos a procurá-lo. Escrevemos para a Cruz Vermelha, ao governo polonês no exílio... e não havia notícias. E continuamos procurando durante a etapa comunista. Uma de minhas tias fugiu para o Ocidente. Ter um parente no Ocidente, ser católica praticante e filha de um oficial que supostamente estava em uma prisão russa não ajudou. Minha mãe passava de um trabalho a outro. Não me admitiram na Universidade de Varsóvia e tive de estudar em Lublin", explica.
Wolinska conseguiu se formar em filologia polonesa, mas nunca conseguiu saber o que aconteceu com seu pai. "A palavra Katyn atemorizava as pessoas. Eu não sabia se meu pai estava vivo ou morto... e sabemos que a esperança é a última que morre." Essa esperança foi truncada em 1990, quando o então presidente da União Soviética Mikhail Gorbachev entregou a seu colega polonês, Wojciech Jaruzelski, a lista dos fuzilados e outros documentos, e foi aberta uma causa criminal. As investigações iniciadas então se encerraram em 2004, durante a presidência de Vladimir Putin, em virtude de uma disposição secreta da promotoria militar.
"Aquela chacina representou uma enorme perda para a Polônia", afirma o professor Zelichowski. "Boa parte da elite, as pessoas mais formadas, as mais preparadas, morreram, e esse episódio sempre marcou as relações com a Rússia", acrescenta. Apesar de depois da queda do bloco comunista terem sido encontradas mais valas, ainda se desconhece onde estão enterrados os corpos de 7 mil daquelas vítimas.
"Moscou reconhece que a chacina ocorreu, mas nunca admitiu que fosse um crime de guerra e um genocídio, que nunca prescreve. Nunca reabilitou as vítimas e se nega a abrir os arquivos. Para a Rússia é muito difícil abordar esse tema porque representa enfrentar seu passado e os milhões de vítimas que morreram durante o stalinismo." Dos 183 volumes da investigação russa sobre Katyn, 116 são segredo de Estado.
"Katyn é um símbolo tão poderoso em parte porque não se pôde duvidar da versão oficial da história. Nunca foi esclarecida. Em classe era proibido explicar a tragédia, embora alguns professores o fizessem de forma clandestina", lembra o sociólogo Krzysztof Pankowski, do centro CBOS em Varsóvia. "Do ponto de vista social, representou a decapitação da nata da sociedade. A elite que restou foi praticamente eliminada no levante de Varsóvia contra o exército alemão em 1944; a partir de então, a sociedade se submeteu ao regime comunista", afirma. Até a chegada do movimento Solidariedade, liderado por Lech Walesa nos anos 1980, os cidadãos não voltaram a se rebelar.
Setenta anos depois voltou a ocorrer uma tragédia em Katyn. O presidente da Polônia, Lech Kaczynski, e dezenas de autoridades políticas e militares morreram justamente quando viajavam para Smolensk, a poucos quilômetros de Katyn, para lembrar os crimes de 1940.
Mas a gestão desse sinistro por parte das atuais autoridades russas impressionou Varsóvia. O primeiro-ministro em pessoa, Vladimir Putin, supervisionou a investigação e a repatriação dos corpos. A Rússia declarou um dia de luto oficial, coisa muito rara, dois dias depois da tragédia. Inclusive a televisão estatal russa transmitiu no domingo, 11 de abril, à noite, no horário de máxima audiência, o filme "Katyn", do diretor polonês Andrzej Wajda, que narra aquele extermínio. "Jamais imaginei que isso pudesse acontecer", declarou a "El País" o cineasta, cujo pai também perdeu a vida em Katyn. "Emocionalmente pelo menos, a Rússia está dando alguns passos para uma nova relação", afirma o professor Zelichowski.
Se a tragédia de Katyn de 1940 foi o começo de um túnel negro nas relações entre Polônia e Rússia, talvez a tragédia de 2010, embora incomparável com a primeira, represente o início de uma etapa de esperança.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves
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