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quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Cotas Raciais - dois artigos de Demétrio Magnoli (Kabengele e o mulato inviável e Kabengele e o bálsamo racial)

Fonte: NoRaceBR - CONTRA A RACIALIZAÇÃO DO BRASIL - I e II



Demétrio Magnoli

[notas sobre um debate que não existiu – I]

Publiquei em maio uma coluna em O Estado de S. Paulo e O Globo intitulada “Monstros tristonhos”, que abordava os dilemas das comissões raciais criadas pelas universidades para “certificar” a raça de candidatos inscritos nos sistemas de cotas.

A coluna, de menos de 6 mil caracteres, criticava um conceito expresso pelo antropólogo Kabengele Munanga, classificando-o como charlatanismo. Munanga replicou com um texto de quase 24 mil caracteres, que enviou ao Estadão solicitando direito de resposta. Como, naturalmente, o jornal não lhe daria algo como duas páginas inteiras, Munanga acusou a imprensa de parcialidade e distribuiu seu tratado por sites racialistas.

Na minha coluna, citei um trecho da introdução assinada por Munanga a um livro racialista. Eis a passagem:

“Os chamados mulatos têm seu patrimônio genético formado pela combinação dos cromossomos de “branco” e de “negro”, o que faz deles seres naturalmente ambivalentes, ou seja, a simbiose (...) do “branco” e do “negro”. (...) os mestiços são parcialmente negros, mas não o são totalmente por causa do sangue ou das gotas de sangue do branco que carregam. Os mestiços são também brancos, mas o são apenas parcialmente por causa do sangue do negro que carregam.”

Foi isso que classifiquei como charlatanismo. Eu não escrevi que Munanga é um charlatão. Ele resolveu vitimizar-se para circundar o tema em discussão. Contudo, qualquer aluno razoável de ensino médio sabe que não existem cromossomos raciais ou essas “gotas de sangue do branco” nem aquele “sangue do negro” mencionados sem intenções metafóricas. A passagem evidencia que Munanga enxerga uma humanidade dividida em raças biológicas, como fazia o “racismo científico” do século XIX.

Eu acho que isso é grave, quando se sabe que ele é professor titular do Departamento de Antropologia da USP. Mas Munanga está tão aferrado a seus anacrônicos preconceitos que repete a bobagem na réplica. Depois de, curiosamente, sugerir que não li o (péssimo) livro racialista citado, escreve o seguinte: “nada inventei sobre a ambivalência genética do mestiço que não estivesse presente no próprio título da obra Mulato: negro-não-negro e/ou branco-não-branco.” De fato, o que ele fez foi sintetizar em linguagem “biológica” os preconceitos do próprio livro, conferindo-lhes uma credibilidade derivada de sua posição acadêmica.

O livro propõe que “o mulato”, essa entidade abstrata do pensamento racial, seja retificado, abandonando sua suposta “ambivalência” para assumir-se como “negro”, uma outra entidade abstrata do pensamento racial. É, também, o programa de Munanga, expresso numa passagem particularmente abominável:

“Se no plano biológico, a ambigüidade dos mulatos é uma fatalidade da qual não podem escapar, no plano social e político-ideológico eles não podem permanecer (...) “branco” e “negro”; não podem se colocar numa posição de indiferença ou de neutralidade quanto a conflitos latentes ou reais que existem entre os dois grupos, aos quais pertencem, biológica e/ou etnicamente.”

Na concepção da “luta de raças” de Munanga encontram-se os fundamentos do programa de polarização do Brasil entre “brancos” e “negros”, com a supressão política de tudo que não possa ser encaixado nessas duas categorias “puras”. O pensamento racial é, aqui como alhures, uma busca da pureza. Os racialistas brasileiros não suportam a imagem de um país que se entende e define como misturado. Esse é o tema do debate que Munanga enterra sob toneladas de frases ocas.


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Demétrio Magnoli

[notas sobre um debate que não existiu – II]

A réplica de Kabengele Munanga (veja o post anterior) é um texto raro. O pensamento racialista no Brasil geralmente aparece envelopado em linguagem deliberadamente equívoca, apresentando-se como um programa de redenção social. Nesse caso, porém, temos uma exposição franca das derivações de uma doutrina que interpreta a história como um drama protagonizado pelas raças.

Munanga escreve: “Entrando na vida privada, gostaria que o sociólogo soubesse que tenho um filho e uma neta mestiços que (...) são educados para assumir sua negritude e evitar assim os graves problemas psicológicos apontados na obra de Eneida de Almeida Dos Reis (...)”.

Cada um educa seus filhos com quer, desde que respeite os direitos legais deles. O antropólogo racialista, segundo ele mesmo, programa seus filhos para serem representantes de uma “raça”. Eu desconfio que o faz em nome de sua própria ideologia.Mas ele declara ser esta uma postura médica, destinada a prevenir a ocorrência dos graves distúrbios psicológicos que imagina andarem junto com a “mescla de raças”.

O “racismo científico” do século XIX enxergava a miscigenação como propulsora de degeneração. A principal justificativa das leis antimiscigenação dos EUA e da Alemanha nazista era evitar a “degeneração racial”. Munanga parece imaginar que “mestiços” tendem à degeneração, mas podem ser “salvos” por uma adequada “educação identitária”. Sinto muito pelos filhos dele, mas isso não é da minha conta. As coisas mudam de figura quando ele projeta aplicar seu bálsamo racial sobre toda a nação.

O antropólogo começa com uma indagação singela: “Eu pergunto se alguém pode se tornar racista pelo simples fato de assumir sua branquitude, amarelitude ou negritude?”.

Tenho duas respostas para isso. A primeira: cada um assume a identidade que quiser, na sua vida privada, e se não tiver coisa melhor para fazer, tem todo o direito de se imaginar ou mesmo se exibir como Homo brancus, Homo amarelus ou Homo negrus. Asegunda: na democracia, o Estado não tem o direito de colar rótulos raciais sobre os cidadãos – nem, muito menos, distribuir direitos (no caso, privilégios) segundo tais rótulos.

Depois, como um obcecado, Munanga atribui rótulos raciais aos outros – no caso, a mim. Ele escreve: “Como se identifica então o geógrafo Demétrio: branco, negro, mestiço ou Demétrio indefinido? Pelo que me consta, ele se identifica como branco, mas não aceita que os negros e seus descendentes mestiços se identifiquem como tais e lutem por seus direitos num país onde são as grandes vítimas do racismo.” Bem, Munanga está mal infomado: Demétrio (que não é geógrafo mas sociólogo) jamais se identificou racialmente. Ele não entenderá, mas Demétrio tampouco se identifica como “indefinido”. É que Demétrio despreza a ideia de que as pessoas devam procurar identidades raciais. “(...) não aceita que os negros e seus descendentes mestiços se identifiquem como tais e lutem por seus direitos num país onde são as grandes vítimas do racismo”.
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Munanga pretende utilizar o racismo para produzir uma raça negra autoconsciente. A sua meta, registre-se, não é combater o racismo, mas fabricar a raça. Eu discordo. Acho que o racismo é uma chaga que diminui e desumaniza todos os seres humanos. E que a luta contra essa chaga constitui dever das pessoas de todas as cores.

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