Material essencial

domingo, 25 de janeiro de 2009

Obama em dois artigos do NIVALDO CORDEIRO

OBAMA: UM MARCO HISTÓRICO

17/01/2009

 

A única certeza que tenho é que, de fato, vivemos um momento histórico de raro significado. O processo histórico sofreu uma aceleração equivalente aos grandes momentos do passado, em que cortes memoráveis aconteceram, seguidos que foram de acontecimentos cataclísmicosBarackHussein Obama assume o cargo de presidente dos Estados Unidos da América em um momento tempestuoso. Não é só a crise econômica que lhe espera, há também o barril de pólvora do Oriente Médio. De fato, há um forte risco de depressão econômica associado a um potencial de conflito militar envolvendo as principais potências do mundo. No Oriente Médio está seu detonador e essa guerra preliminar de Israel contra o Hamas serviu de péssimo augúrio para o que está à espera.

 

E mesmo que os tempos não fossem tão sombrios a figura pessoal do novo presidente é um emblema marcador de eras. Que um mulato, filho de negro africano com mãe branca norte-americana, nascido no Havaí, sem riqueza familiar notável e sem um passado que pudesse ser o seu apoio na sua jornada surpreendeu a todos. Chegou onde chegou sozinho, a despeito de todos e de tudo. O mundo viu seus últimos capítulos nas eleições que conquistou, ao enfrentar e vencer os caciques do Partido Democrata e, ajudado pela crise, a derrotar seu adversário do Partido Republicano, nas urnas.

 

O que menos quero aqui é fazer encômios como o de Lucas Mendes, publicado no site da BBC-Brasil. Nenhuma vítima de racismo ou discriminação, enquanto tal, credencia-se a presidir a maior nação da terra. É preciso enxergar Obama pelos seus méritos, a despeito da questão racial, absolutamente irrelevante no caso. Obama tem estrela, está do lado superior da Roda da Fortuna, que lhe sorriu. Mas, a que preço? A declaração que deu hoje, pouco antes de tomar o trem na Filadélfia em direção a Washington contribuiu para aumentar as minhas apreensões:

 

"Acredito que nosso futuro é nossa escolha e se pudermos nos reconhecer nos outros e unir todos: democratas, republicanos, independentes, norte, sul, leste oeste, negros, brancos, latinos, asiáticos, nativos americanos, gays e heterossexuais e deficientes... então isto não apenas restauraria a esperança e oportunidade onde são necessárias, mas talvez poderíamos aperfeiçoar nosso país no processo." E mais: “Começando agora, vamos levar para nossas vidas o trabalho de aperfeiçoar nosso país. Vamos construir um governo que é responsável com o povo. Vamos aceitar nossas responsabilidades como cidadãos para manter nosso governo responsável. Vamos fazer nossa parte para reconstruir este país, vamos garantir que esta eleição não é o fim do que fazemos para mudar a América, mas apenas o começo".

 

Claro que ele aqui procura seguir os gestos de Lincoln. Fez-se acompanhar de dez americanos comuns, escolhidos por sorteio, uma representação plástica e teatral da famosa expressão do antigo governante: “A democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, a maior mentira já proferida em ciência política, que serve de mantra para as formas modernas de escolha de representantes. O gesto de Obama é uma confissão de que, com ele, o homem-massa tornou-se senhor da Casa Branca. Já o era, na verdade, mas moderado por líderes que não recusavam seu papel.

 

Essa mentira de Lincoln só troca palavras ao Obama dizer: “Vamos construir um governo que é responsável com o povo”. Não é o governo que é responsável pelo povo, mas exatamente o contrário, o povo é que é responsável pelo governo e o direito inalienável à desobediência civil está mais vivo do que nunca. Só uma alma de ditador para dizer algo assim. “Não pergunte ao seu país o que ele pode fazer por você. Pergunte o que você pode fazer por seu país”, a célebre declaração de John Kennedy que é ela mesma uma declaração de escravidão do indivíduo ao Estado todo poderoso.

 

No discurso ouviram-se as palavras “aperfeiçoar”,  “reconstruir”,  “mudar”, os mantras malditos que estão na boca de todos os demagogos, de todos os tempos. Ficou subentendida a absurda Vontade Geral de Rousseau e seu pressuposto, a Igualdade Geral. Os demagogos recusam a realidade como ela é e alimentam as massas com a ilusão de que há outro mundo possível, que a humanidade é passível de perfectibilidade pela via da política. Discursos como esse estão a dois passos da construção do totalitarismo. Nenhum homem de alma sã e desperto pode ignorar os avisos que essas palavras agourentas carregam.

 

É um discurso quixotesco, tal como Cervantes pôs na boca de seu famoso personagem:

 

“ – Has de saber, ¡oh Sancho amigo!, que yo nací por querer del cielo en esta nuetra edad de hierro para resucitar en ella la dorada, o de oro. Yo soy aquel para quien están guardados los peligros, las hazañas grandes, los valerosos fechos...”

 

Dom Quixote era louco varrido e não tinha poder, menos ainda poder nuclear. Vemos que é uma mente deformada pelo quixotismo da modernidade que assume plenipoteciariamente esse poder titânico. O jogo político mundial ficou demasiadamente perigoso, entregue que está aos legítimos representantes das massas. Obama é o homem-massa no poder, que recusa de antemão ser o líder e diz candidamente que fará aquilo que a multidão deseja. A lógica das massas foi levada ao centro de decisão. Essa é uma loucura que rumina destruição, que está prenhe de todos os vícios, que não deixará o governante hesitar diante de qualquer dúvida moral quando os momentos letais se precipitarem.

 

O tratamento que se tem dado à crise econômica é deveras emblemático do que quero dizer. Emissão desenfreada de moeda, agigantamento do Estado, doação de quantias astronômicas a administradores pródigos, substituição do indivíduo por coletivos nas decisões são fatos que estão acontecendo velozmente, de forma inexorável. O suposto de tudo isso é que o Estado – o governante, o novo príncipe – teria o poder de reformar o real, de superar (mesmo eliminar) a crise e até mesmo abolir a lei da escassez. As pessoas sensatas sabem que isso é um disparate, uma loucura. Obama, todavia, chega ao poder imbuído dessa certeza quixotesca e disposto e levar as expectativas das massas às últimas conseqüências. Dane-se a realidade, construa-se o sonho impossível. O último governante que tentou isso mandou construir fornos crematórios.

 

Desejo ao novo presidente dos EUA boa sorte. Que Deus tenha piedade de todos nós.



O DEUS DE OBAMA

21 janeiro de 2009

 

A festa de posse Barack Hussein Obama não poderia ter sido mais grandiosa. Seu desfile pelas ruas de Washington lembrou o de um César em triunfo. Ou melhor, de um Faraó ungido. O fascínio que o novo presidente exerce sobre a multidão só pode ser adequadamente descrito pelo olho mágico da câmara de televisão. Como um novo Faraó, ou César, Obama encarna para a multidão o deus desse mundo, o salvador, o Sóter. Seu discurso de posse refletiu adequadamente essa fotografia. Sua fala caiu fundo nos ouvidos aos quais se destinava.

 

No primeiro parágrafo foi empregada a palavra humildade, mas o discurso inteiro é uma peça arrogante. O presidente hesita diante das dificuldades dos tempos atuais e das conquistas da América desde seu nascimento. Pudera, em face do franco contraste. O presidente bem lembrou:

 

 Nossa nação se encontra em guerra contra uma rede de violência e ódio de grande extensão. Nossa economia está gravemente enfraquecida, consequência da cobiça e irresponsabilidade da parte de alguns, mas também de nosso fracasso coletivo em fazer escolhas difíceis e preparar o país para uma nova era. Residências foram perdidas, empregos desapareceram, empresas foram fechadas. Nosso sistema de saúde é oneroso demais, nossas escolas reprovam alunos demais, e cada dia traz mais evidências de que a maneira como consumimos energia fortalece nossos adversários e põe em risco nosso planeta”.

 

Atentemos, todavia, para o que disse. A nação está em guerra? Sim, mas em uma guerra de agressão, duas pequenas (Iraque e Afeganistão), na verdade, contra países nanicos e incapazes de qualquer defesa. A rigor os EUA não estão em guerra, entrando aqui a palavra mais como hipérbole militar do que propriamente como a descrição de um fato. E tem motivo: todos aqueles, como Obama, que pretendem atingir o coração do povo precisam fazer brotar o patriotismo guerreiro, que tem naquela gente notável ressonância. O potencial de violência incluído aqui é visível.

 

Atribuir a crise econômica à “cobiça e irresponsabilidade de alguns” é entrar em desacordo com a verdade. Qualquer observador bem informado da história e da economia norte-americanas sabe que a causa da crise é única: o agigantamento do Estado, sua pretensão de eliminar artificialmente a escassez, a exorbitância legislativa que regula de forma desmedida os mercados (mais à frente aprofunda esse visão equívoca, como veremos). Não é a minoria rica (implícita) a culpada pela crise, nem o próprio mercado. Este é na verdade a grande vítima. Obama, como um prometedor de milagres de feira livre, faz diagnóstico errado precisamente para escapar de pôr o dedo na ferida.

 

Residências foram perdidas, sim, mas pelo único e exclusivo motivo de que compradores temerários assinaram empréstimos impagáveis, almejando viver além das próprias posses. E definitivamente as escolas não reprovam alunos; alunos é que são reprovados por sua insuficiência acadêmica. Mais uma vez a relação de causa e efeito fica aqui completamente invertida. O sistema de saúde é oneroso e o será sempre, enquanto o Estado entender que é o patrono da Saúde. Como qualquer bem que depende do trabalho, os serviços de saúde não deveriam ser objeto de doação pelo Estado, fazendo assim sua demanda tender ao infinito. Como qualquer serviço, deveria ser deixado ao mercado satisfazer as necessidades coletivas.

 

Não foi surpresa para mim que o discurso de Obama tenha repetido na literalidade o discurso de Lula: “Estamos aqui neste dia porque optamos pela esperança em lugar do medo”. A eloqüência dos populistas nada tem de original, se repete em toda parte.

 

Contrastando com a fingida humildade do parágrafo inicial, disse Obama: “Ao reafirmar a grandeza de nosso país, compreendemos que a grandeza jamais é dada. Ela precisa ser conquistada. Nossa jornada nunca foi uma jornada de atalhos ou de nos contentarmos com menos”. O inocente pronome coletivo aqui confunde propositadamente a figura do presidente com a história da nação. A inflação de ego salta aos olhos. Prossegue Obama, quase que de forma ingênua: “Continuamos a ser o país mais próspero e poderoso da Terra”. Por quanto tempo mais ainda? Se há uma coisa que percebo é que essa crise vai redistribuir o poder mundial, ampliando o da Europa, da Rússia e da China. A América precisaria voltar a ser aquela que emergiu no alvorecer do século XX para continuar a ser aquilo que Obama gostaria que fosse sob a sua tutela.

 

E, num crescente, proclamou: “O Estado da economia pede ação, ousada e veloz, e vamos agir – não apenas para gerar novos empregos, mas para deitar novas bases para o crescimento”. É aqui que se descortina na inteireza toda a alienação obâmica, sua figura quixotesca. Esse “vamos agir” significa estatizar mais, emitir mais moeda, regular mais a vida privada. Ou seja, tudo aquilo que contribuiu para gerar a crise e pôr a América de joelhos será repetido e aprofundado.Obama não escondeu suas (más) intenções.

 

Há quem questione a escala de nossas ambições – quem sugira que nosso sistema não pode tolerar planos grandiosos demais”. A retórica é fraca, mas serve para lembrar um saboroso diálogo do filme BATMAN – O CAVALEIRO DAS TREVAS. O Coringa diz ao personagem que o caos acontece quando o plano, ainda que maléfico, não funciona. Se funcionar a multidão fica tranqüila. O que as pessoas não toleram é a incerteza, a falta de previsibilidade. Ora, o patrono desses novos tempos obâmicos é o Coringa. Planos não funcionarão, a burocracia estatal vai tatear no improviso diário a cada resposta errada da economia de mercado aos planos mirabolantes, aos bailouts grandiosos, aos resgates imorais. O Coringa agora é o próprio Estado agigantado, o causador do caos.

 

Para o momento histórico que foi sua posse o discurso está desproporcionalmente fraco, sem grandes vôos retóricos. Destaco aqui um ponto que será talvez o seu apogeu, onde ele desvela o seu Deus: “É chegada a hora de reafirmar nosso espírito duradouro, de escolher nossa história melhor; de levar adiante aquela dádiva preciosa, aquela idéia nobre que vem sendo transmitida de geração em geração: a promessa dada por Deus de que todos são iguais, todos são livres, e todos merecem a oportunidade de lutar por sua medida de felicidade”.

 

Esse certamente não é o Deus de Abraão. Será o deus de Epicuro. E de Rousseau. O deus dos ateus, se quisermos ser exatos e mordazes com o novo presidente. Muito apropriado para quem se pretende o grão-sacerdote do Estado, o deus de nosso tempo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá internauta

O blog Cavaleiro do Templo não é de forma algum um espaço democrático no sentido que se entende hoje em dia, qual seja, cada um faz o que quiser. É antes de tudo meu "diário aberto", que todos podem ler e os de bem podem participar.

Espero contribuições, perguntas, críticas e colocações sinceras e de boa fé. Do contrário, excluo.

Grande abraço
Cavaleiro do Templo