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sábado, 4 de outubro de 2008

O PAÍS DO FUTURO?

Ubiratan Iorio (para baixar o artigo inteiro, clique AQUI)


“Amanhã! Algumas vezes, é prudência; muitas vezes, é o advérbio dos vencidos” 
Josemaría Escrivá *



Quando o navio que trazia meus avós maternos atracou no porto de Santos, na primeira década do século XX, proveniente da bella Napoli, seus passageiros, quase em sua totalidade oriundos daqueles lindos lugarejos da Calábria - San Lúcido (a sua cidadezinha natal, conhecida como La Perla Del Tirreno Cosentino), Fuscaldo, Fiume Freddo, Paola, Catanzaro, Reggio Calábria e tantos outros encravados entre o mar e a Sila - a exemplo de milhares de outros imigrantes, guardavam de comum em seus corações , de um lado, a nostalgia do paese já então distante e que muitos deles jamais voltariam a ver e, de outro, a roupa do corpo e uma ou duas malas com alguns objetos que constituíam toda a sua riqueza. Tudo o mais ficara irremediavelmente para trás: as montanhas da Sila, as praias, as igrejinhas de suas cidadezinhas, muitos amigos de infância e até - e só quem nasceu e cresceu em uma família italiana sabe o que isso significa - a mamma, aquela figura de amor e zelo eternos e que, além do mais, todos os domingos preparava aqueles pratos de scchiaffituno com porpetas que só ela sabia preparar.
 
Ficara para trás, também – assim pensavam os que partiram - a pobreza que devastava o sul da Itália naquele tempo, tão grave a ponto de os levar a “fazer a América”, como se dizia então. Como lembrança da viagem naquele vapor tão desconfortável, apenas algumas novas amizades e aquela fita tricolor com que ainda no cais napolitano, cingiram a cintura, a exemplo dos demais passageiros, seguindo um hábito da época. 

Mas, a despeito de toda aquela melancolia, aqueles valorosos homens, suas mulheres e filhos traziam, também - e de um modo muito forte - uma enorme esperança, a de que estavam desembarcando no país do futuro, à terra em que, mediante a dureza de seu trabalho cotidiano, a parcimônia que iria requerer o esforço da renúncia ao consumo imediato e o respeito aos valores morais básicos sem os quais a vida em qualquer sociedade jamais pode prosperar, poderiam alcançar um padrão de vida razoável para eles e para seus descendentes.

Decorridos quase cem anos, o mais velho dos meus filhos perguntou-me se não seria interessante para a nossa família se todos emigrássemos para a Itália, uma vez que naquele país - estávamos assistindo na TV a um documentário produzido pela RAI - segundo o seu correto entendimento, o futuro já havia chegado, ao passo que, no Brasil, seus benefícios seriam ainda impalpáveis, calcados mais na virtude da esperança do que na certeza da bonança proporcionada por uma sociedade desenvolvida.

A partir de então - e já são decorridos uns seis ou sete anos desde que o Bruno fez aquela observação - a cada vez que meu olhar pára naquela mesma fita verde, branca e vermelha, já bastante desbotada pela implacabilidade do tempo - e que guardo em um porta-retratos sobre minha mesa de trabalho - única lembrança material que ficou daquela viagem seminal de meus avós, não posso deixar de formular estas inquietantes perguntas: será que o Brasil é mesmo o país do futuro? Será que a Itália, onde tudo parecia passado, virou futuro e o Brasil, onde aos olhos de meu avô tudo parecia futuro, virou passado?

Um dos ensinamentos mais importantes da Escola Austríaca de Economia é que devemos ter o máximo cuidado ao fazermos previsões , como ficará claro para o leitor no decorrer deste livro. Por isso, não me atrevo a responder nem que sim nem que não. Mas uma coisa é certa: o Brasil já perdeu muito tempo, mais do que o bom senso e a racionalidade permitem.

Muitos brasileiros deixaram o país, a partir da segunda metade dos anos oitenta e até o início dos anos noventa, marcados pela desilusão, em busca das oportunidades de emprego, da dignificação de seu trabalho e da valorização de sua cidadania, atributos que se foram tornando escassos à medida que a nação empobrecia, dizimada pela crueldade da estagflação que marcou nossa economia até a estabilização de preços promovida pelo plano Real. Mas o Real é apenas o começo: muito ainda precisa ser feito. A cada semestre, os milhares de jovens que concluem seus cursos universitários vêem-se frente a frente com o problema de não conseguirem colocações compatíveis, já não digo com seus antigos sonhos de adolescentes, mas com a realidade dos conhecimentos - quase sempre deficientes - que adquiriram nas faculdades.

Podemos afirmar, sem receio de estarmos cometendo algum exagero, que nosso país ainda não conseguiu libertar-se das práticas mercantilistas anteriores à Revolução Industrial. Com efeito, nossa história econômica nos mostra claramente que o que se construiu no Brasil foi um pretenso capitalismo - na realidade, um pós-mercantilismo - sempre apoiado no Estado e, por isso mesmo, contaminado por toda a sorte de cacoetes construtivistas e dirigistas, cujas expressões mais visíveis foram os “planos” de inspiração heterodoxa que se abateram sobre todos nós desde fevereiro de 1986, mas que se apresentam, também, sob dezenas de fórmulas aparentemente inofensivas, mas nem por isso menos perniciosas, como soem ser, por exemplo, todos os controles sobre preços, juros, salários e câmbio, a excessiva carga tributária, as elevadas tarifas aduaneiras, as barreiras à competição interna e externa, a formidável cunha dos encargos trabalhistas, a ainda grande quantidade de “empresas” estatais e a inextricável floresta de portarias, medidas provisórias, instruções normativas e resoluções, reflexos do autêntico furor regulatório que caracteriza nossos legisladores, afora a enorme variedade de manifestações daquilo que parece ter sido, até o advento da nova era liberal no mundo desenvolvido - mas que ainda prevalece no Brasil - um dos fenômenos que, no futuro, servirão para caracterizar o século XX: a tentativa de se encontrar “soluções” políticas para problemas que são exclusivamente econômicos e que, portanto, só podem ser efetivamente solucionados pelo sistema econômico e não pelo sistema político (1) .

Se a crise dos anos oitenta pesou sobre a classe média brasileira, seus efeitos sobre os mais pobres revelam-se visivelmente mais preocupantes, seja sob a forma de comunidades inteiras vivendo sob os viadutos das grandes cidades, seja pelo substancial crescimento da chamada economia informal, seja sob o ângulo do aumento da marginalidade urbana, do desenvolvimento de autênticos governos paralelos nas favelas ou sob diversas outras manifestações denotativas do estado precário a que foram levadas, em nosso país, as condições que dignificam o homem: saúde, higiene, educação, nutrição, trabalho e acesso a oportunidades e todas, sem dúvida, causas coadjuvantes da deterioração dos valores morais e éticos básicos, sem os quais os sistemas sociais são impedidos de evoluir sem rupturas.

Por mais que se aponte para todos esses problemas e por mais que eles sejam mencionados nos discursos de praticamente todos os políticos, deve-se frisar que eles jamais serão solucionados enquanto não for abandonada a atitude tipicamente brasileira de esperar que sua solução deva vir do Estado, ou de seu braço executivo - o governo -, sem que se proceda a um substancial reordenamento de nossas instituições, que não deve ser imposto por critérios construtivistas ou pelo planejamento, mas deve brotar espontaneamente, de baixo para cima, a partir do fortalecimento da cidadania.

Trata-se, em suma - e aí está o principal papel do Estado brasileiro - não de conduzir, nem muito menos de construir, mas apenas de estimular o desenvolvimento de uma ordem econômica liberal, integrada harmonicamente com o conceito adequado de lei enquanto norma geral de justa conduta, impessoal, prospectiva e igual para todos e, portanto, distante do conceito positivista de lei como um comando. Nos dois capítulos que compõem a primeira parte deste livro, haverá oportunidade de comentar-se as diferenças entre nomos e thesis, isto é, entre lei e legislação e de mostrar-se que, enquanto o primeiro conceito, ao ser posto em prática, conduz a um estado desejável de coisas, que se costuma denominar de autoridade das leis, a segunda concepção - que tem sido a tônica no Brasil - leva a sociedade a viver sob o regime indesejável, uma vez que é imposto apenas pela coerção e não como um estado natural, embora também necessariamente coercitiva, das leis das autoridades.

Daniel Bell, em uma obra bastante conhecida (2) , analisa as sociedades segundo os três grandes sistemas que as compõem: o sistema econômico, o sistema político e o sistema moral-cultural. Tais compartimentos possuem ritmos diferentes de evolução e seguem normas distintas, que legitimam formas de conduta diferentes e, não raro, contrastantes, sendo que as divergências e os conflitos entre esses três sistemas podem ser responsabilizados pelas várias contradições que se costumam verificar nas sociedades.

Conforme observou Novak (3) , “ cada um desses três sistemas possui suas instituições especiais e métodos, disciplinas e padrões, propósitos e limites, atrações e repulsões. Cada um tem seu próprio ethos. Cada um costuma, também, criar problemas para os outros dois. Essas tensões são desejáveis: um sistema pluralista está condenado (grifo do autor) a fomentá-las. Do fluxo de centelhas resultante do seu contato sai a energia para o progresso e sua capacidade de correção interna. É um sistema destinado a constituir uma revolução contínua”.

No entanto, quando ocorre uma deterioração institucional simultânea dos três componentes do sistema social, este fica contaminado de maneira generalizada, o que contribui para aumentar a instabilidade da própria vida em sociedade. Com efeito, se um dos sistemas apresenta deficiências em seu funcionamento, estas podem ser compensadas, durante algum tempo, na medida em que os outros dois sistemas consigam continuar a operar satisfatoriamente, Nesses casos, tudo se passa como se estes últimos assumissem o ônus de levar adiante o funcionamento da sociedade, embora sem a colaboração do primeiro (4) . Mas quando, como vem ocorrendo no Brasil, os três sistemas apresentam simultaneamente graves deficiências, o país pára, pois a economia não consegue produzir (nem, muito menos, distribuir), a política não é capaz de desempenhar seu papel de fazer funcionar a contento a democracia e a deterioração acentuada do tecido moral termina por contaminar todo o organismo.

Para que se possa compreender a afirmativa de que os problemas brasileiros transcendem em muito os aspectos puramente econômicos, que nossas instituições apresentam imperfeições generalizadas, parece conveniente examinarmos - embora ainda de maneira introdutória - o que se vem passando em cada um dos três sistemas que, de acordo com a classificação sugerida por Bell e endossada por Novak, compõem a estrutura funcional das sociedades.


Os Problemas do Sistema Econômico


Desde a publicação, em 1936, da primeira edição da Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, de John Maynard Keynes, a quase totalidade dos economistas passou a acreditar nas chamadas políticas de “sintonia fina”, isto é, em uma pretensa capacidade dos governos de, mediante intervenções na ordem espontânea de mercado, evitar flutuações “indesejáveis” no emprego dos fatores de produção e, assim, impedir as oscilações na produção.

No entanto, decorridos mais de sessenta anos do advento do chamado keynesianismo teórico de de sua aplicação no campo da política econômica (5) , a totalidade das economias mostrou, primeiro, que as políticas keynesianas de sintonia fina não conseguiram evitar os chamados ciclos econômicos e segundo - o que é ainda pior - que elas, além de não lograrem atenuar a amplitude das flutuações da renda e do emprego, contribuíram para amplificar as referidas flutuações ao longo do tempo. Além disso, estudos comparativos entre diversos países mostraram que as economias em que as chamadas políticas anti-cíclicas foram mais intensivamente utilizadas foram as que apresentaram, no longo prazo, as maiores variâncias em seus níveis de emprego e de produto (6) . As estatísticas não mentem: as políticas anticíclicas revelaram-se, na verdade, pró-cíclicas.

Mises, desde o ano de 1912 (7) , já pressentira o que Hayek, a partir dos anos trinta (8) , conseguiu desenvolver com bastante clareza: o que provocava as chamadas flutuações cíclicas do emprego e do produto eram as tentativas dos governos, realizadas no passado, de “criar o crescimento”, através de políticas fiscais e monetárias de natureza expansionista. O mesmo Hayek, já nos anos setenta, quando o mundo passou a viver um fenômeno que a teoria keynesiana negava, em sua estrutura básica, pudesse algum dia ocorrer - a estagflação (isto é, a verificação simultânea de estagnação e inflação) - sustentava que aquilo tudo era decorrente do uso indiscriminado, durante várias décadas, da utilização das políticas fiscal e monetária como instrumentos anti-cíclicos. Na visão da Escola Austríaca de Economia, e sob uma linguagem a esta altura ainda extremamente simples (uma vez que tais questões somente serão tratadas com maior profundidade na Segunda Parte deste livro) a causação correta é: as políticas anti-cíclicas geram inflação e esta gera desemprego (9) .

As recessões generalizadas, portanto, nada mais são do que uma das conseqüências da inflação. Esta afirmativa contrariava - e ainda contraria, em certos círculos no Brasil - uma outra, que se havia tornado quase que uma crença generalizada, a de que o desemprego é proveniente das tentativas de se eliminar a inflação, ou, em outras palavras, a de que taxas de desemprego e taxas médias de crescimento dos preços são variáveis negativamente correlacionadas, de forma permanente (10) .

O problema mais grave do sistema econômico brasileiro entre a segunda metade dos anos oitenta e os primeiros anos da década de noventa foi, sem dúvida, a inflação. Vivemos um processo hiperinflacionário bastante peculiar, uma vez que não se tratava de uma hiperinflação aberta, caracterizada por uma rejeição completa da população à moeda, mas de uma manifestação muito pior, porque, sendo mais lenta, seus efeitos foram se agravando ao longo do tempo sem que fossem facilmente percebidos, à semelhança daqueles suplícios chineses que levavam inicialmente à loucura e posteriormente à morte lenta dos condenados.

E os condenados fomos todos nós, cidadãos brasileiros. Os Cr$ 50.000.000,00 desembolsados por um consumidor brasileiro por um automóvel, em janeiro de 1986 (pouco antes do plano Cruzado), equivaliam, logo após a implantação do plano Real, isto é, após três “reformas” monetárias e seis “choques” heterodoxos, a R$ 0,00. Isto é, o carro, por obra e graça das idéias mirabolantes sobre inflação de alguns economistas, simplesmente desapareceu... Um produto qualquer, que se podia comprar por Cr$ 1,00 em janeiro de 1986, custava, em média, sessenta milhões de vezes mais pouco antes do plano Real, em maio de 1994. A economia brasileira passou, portanto, por um processo hiperinflacionário crônico, que só não se transformou em uma hiperinflação aberta porque existiam mecanismos, proporcionados pelo mercado financeiro via indexação, que conseguiam propiciar, ainda que parcialmente, proteção aos detentores de moeda.

Nada empobrece mais uma população do que uma inflação com essas características, ainda mais quando o estoque de capital humano, isto é, educação e saúde, está entre os níveis mais baixos do mundo relativamente ao tamanho de nossa economia. Foi, sem dúvida, uma década perdida: a capacidade ociosa da economia brasileira, em 1993, era da ordem de 28%, indicando a maior recessão de nossa história econômica, tanto em sua duração, porque iniciou-se em 1983, quanto em magnitude. No passado, nos anos em que a capacidade ociosa foi maior, ela não excedeu os 10,4% em 1947, os 7,7% em 1953 e os 6,9% em 1967. A cada ano em que o produto da economia crescia abaixo da taxa de crescimento da população, o empobrecimento aumentava, menos empregos eram criados e, portanto, menos oportunidades eram oferecidas. Se aquele ritmo continuasse, um eventual governo socialista que aqui eventualmente se instalasse, ao invés de distribuir o bolo, não entregaria mais do que uma simples migalha a cada trabalhador brasileiro...
A solução, evidentemente, não está em reduzir a população, mas em fazer com que possam florescer as instituições necessárias para que a riqueza e a produção possam aumentar permanentemente. É crucial compreendermos, desde já, que o crescimento econômico é um processo de acumulação generalizada de capital e que uma das partes desse estoque é o capital humano, o qual, por sua vez, inclui o capital moral e o intelectual, as habilidades das mãos e do cérebro, assim como as do coração. Se as sociedades sabem como criar riqueza - e isto é sabido desde os tempos de Adam Smith - e não o fazem, então a pobreza é imoral.

Poucas pessoas dão-se conta de quão absurdo é contar-se o nascimento de uma vaca como uma adição ao estoque de capital de uma nação, ao mesmo tempo em que, incoerentemente, se conta o nascimento (ou a garantia do nascimento) de uma criança - que é a fonte primeira de mais criatividade - como uma diminuição naquele estoque! Trata-se de um caso típico de dois pesos e duas medidas. O simples fato de que os seres humanos são feitos à imagem e semelhança do Criador implica que todos os homens e mulheres, durante o tempo que lhes é concedido no mundo, não apenas podem, como são moralmente obrigados a criar mais do que consomem. Nisto reside toda a esperança no progresso econômico.

Nenhuma economia cresce o que se quer que ela cresça, mas apenas o que ela pode crescer. E o que ela pode crescer depende, de um lado, de um ambiente de preços estáveis e, de outro, de instituições que estimulem a criatividade dos agentes econômicos. Esses são os dois pontos mais importantes de nossa agenda para os próximos anos. O primeiro deles, o da construção e manutenção de uma moeda forte, começou a ser cumprido com a implementação do plano Real. A inflação, de fato, foi contida, mas isto não é tudo. O Real precisa ainda ser consolidado como uma moeda permanentemente forte, o que só será possível mediante a realização de profundas alterações nas funções e no tamanho do Estado brasileiro, que conduzam a uma alteração permanente no regime fiscal. O segundo, que está bastante relacionado com o primeiro, é a questão institucional. A economia brasileira ainda é uma das menos livres do mundo. O intervencionismo e o estatismo precisam ser rapidamente erradicados de nosso país, sob pena de nossa moeda voltar a deteriorar-se e de nossa situação social continuar no vergonhoso estado em que se encontra.

Os professores James Gwartney, Robert Lawson e Walter Block, em um livro editado em 1996 pelo Fraser Institute de Vancouver - “Economic Freedom of the World - 1975-1995”, demonstram o que acabamos de afirmar. Partindo do fato de que os elementos centrais do conceito de liberdade econômica são a liberdade pessoal de escolha, a proteção à propriedade privada e a liberdade de negociar, os referidos economistas construíram um índice com dezessete componentes, que pudesse proporcionar uma medida empírica dos diferentes graus de liberdade econômica em cento e três países. Os componentes do índice foram agrupados em quatro grandes áreas: (a) moeda e inflação; (b) regulamentações e operações do governo; (c) desindexações, confiscos e taxações discriminatórios e (d) restrições ao comércio internacional.
Os resultados desse exaustivo trabalho são surpreendentes, para aqueles que costumam atribuir as mazelas econômicas e sociais de nosso país àquilo que denominam de “neoliberalismo”: no “ranking” dos cento e três países, de acordo com um “rating” médio variando entre zero (ausência completa de liberdade econômica) e dez (total liberdade econômica), o Brasil aparece em nonagésimo sétimo lugar, com uma média de apenas 2.8! Com menos liberdade econômica do que nós, cidadãos deste “país do futuro”, apenas os habitantes da Nicarágua (2.7), Síria (2.4), Algéria (2.1), Iran e Zaire (1.9) e Somália (perto de 0)! Este “ranking” refere-se ao período de 1993 a 1995 e, portanto, a pelo menos um ano e meio de altíssimas taxas de inflação, uma vez que o Real foi implantado em meados de 1994, o que, sem dúvida, contribuiu para a péssima classificação do Brasil. Mas, como o critério “moeda e inflação” é apenas um dentre os quatro utilizados, mesmo que ele fosse expurgado do índice, isto faria nosso “ranking” melhorar, na melhor das hipóteses, do nonagésimo sétimo para algo perto do septuagésimo lugar, o que, convenhamos, ainda nos coloca bem longe, já não diremos dos países líderes da classificação, como Hong Kong, Nova Zelândia, Singapura, Estados Unidos, Suíça, Reino Unido e Canadá (com médias entre 9 e 7.6), mas do bloco intermediário (com médias entre 6 e 5).

Isto significa, pelo menos, que, primeiro, o tão mal falado “neoliberalismo” sequer chegou ao Brasil e, segundo, que ainda precisamos avançar muito para construir aqui uma verdadeira ordem liberal, que venha a desonerar nosso sistema econômico da carga inacreditável que nossa cultura estatizante vem fazendo pesar sobre ele, a bem da verdade, desde que Pedro Alvares Cabral desembarcou na Bahia, há cinco séculos. Nossos problemas econômicos, em sua grande maioria, devem ser atribuídos exatamente ao oposto do que se costuma afirmar nos círculos pretensamente intelectuais do país: precisamos, com muito tempo de atraso, romper definitivamente com o mercantilismo, o intervencionismo, o cartorialismo e todos os “ismos” estatizantes que, até aqui, após quinhentos anos de história, só nos têm feito empurrar o futuro para a frente.


Os Problemas de Nosso Sistema Político


Um dos legados mais importantes que os denominados Founding Fathers - os fundadores da república federativa norte-americana - deixaram foi a preocupação com a possibilidade de uma maioria vir a exercer uma tirania, mediante o bloqueio dos canais de acesso ao poder por parte das minorias, na eventualidade destas, ao longo do tempo, transformarem-se em maioria (11). Hayek (12) também manifestou, por diversas vezes, a mesma preocupação, na medida em que sustentava que, sob o ponto de vista liberal, a democracia deveria ser encarada tão somente como um dos métodos de governo, que ele reconhecia ser o melhor, mas que deveria ser considerado como um simples meio para que os direitos fundamentais fossem sempre respeitados. De fato, existe uma grande diferença entre declarar-se democrata porque as maiorias têm sempre razão e defender a democracia enquanto instituição cuja finalidade precípua seja a contenção do poder.

Deve o leitor, portanto, estar apto para distinguir a importante diferença entre a visão, derivada de Rousseau, que vê a democracia como um fim, quase que como um sacramento, e a postura liberal, que a considera, pura e simplesmente, como um meio de governo. A primeira pode ser denominada de ideologia democrática ou democratismo, ao passo que a segunda constitui-se em uma doutrina democrática.

Os liberais são democratas não por julgarem que a maioria não cometa erros, mas porque as tradições democráticas são as menos ruins que a humanidade conhece. Daí, sua preocupação com a questão da contenção do poder. Quando ocorre uma expansão desmedida do Estado, as conseqüências são invariavelmente - uma vez que a natureza humana tem sido a mesma desde os tempos de Adão - o abuso do poder e a sujeição de toda a sociedade, não aos desígnios infalíveis de Deus, mas ao arbítrio falível dos homens que detêm o Estado. Portanto, o crescimento do Estado mostra-se incompatível com a preservação das liberdades individuais. Em função disso é que os liberais aceitam o Estado, mas com a importante ressalva de que, para ser aceitável, ele deve ser mínimo (13) .

Um dos maiores pensadores do século XX - Sir Karl Popper - chamou a atenção para o fato de que o poder é sempre uma tentação, colocando-se contra a tese, derivada de Platão, da soberania popular incontrolada. Para ele, a pergunta a que se deve responder não é a daquele filósofo grego (“quem deve governar o Estado” ?), mas: de que forma as instituições políticas devem ser organizadas, para que os maus governantes, ou os menos capazes, ou os mal-intencionados, não possam causar danos em demasia ? (14)

Esses temas serão explorados com mais pormenores ao longo do livro. Sua menção aqui deve-se ao fato de que são importantes para o objetivo desta seção, que é o de ressaltar os problemas do sistema político brasileiro.

A questão que nos interessa responder é se o sistema político brasileiro atende aos requisitos anteriores, isto é, se nossa democracia, da forma como está moldada, consegue proscrever o abuso do poder, evitando a sujeição dos cidadãos ao arbítrio do Estado. Em outras palavras, se o Estado brasileiro não chegou a crescer tanto, a ponto de ameaçar as liberdades individuais ou, ainda, se nossas instituições políticas estão organizadas de forma a impedir que os maus governantes causem danos demasiados. Além disso, devemos perguntar-nos se nosso sistema político é, de fato, representativo dos interesses dos eleitores.

Infelizmente, as respostas a todas essas importantes questões são negativas. Daí, nossa afirmativa de que há uma enorme necessidade de aperfeiçoamento do sistema político brasileiro.
A questão é bastante complexa, mas creio que a forma correta de analisá-la é a partir da estrutura de nossos partidos políticos, o que, sem maiores dificuldades, nos leva a observar que, apesar do pluripartidarismo existente, os partidos no Brasil não conseguem representar tendências doutrinárias claras, que se consubstanciem em programas definidos de acordo com essas tendências. Em outras palavras, não há, ainda, no nosso país, verdadeiros partidos políticos, embora existam cerca de trinta agremiações registradas como partidos. Na realidade, os partidos políticos brasileiros, que deveriam ser os centros de congregação das diversas posições doutrinárias que caracterizam o pluralismo democrático, muitas vezes não passam de meros centros autorizados a carimbar registros de candidatos aos diversos cargos legislativos e executivos que o sistema de pleitos periodicamente oferece.

A ausência de identidade doutrinária dentro de cada partido faz com que o eleitor brasileiro, via de regra, vote muito mais em nomes do que em programas definidos, na esperança de que esses nomes, muitos dos quais costumam apresentar-se como pretensos salvadores da pátria, uma vez investidos em seus cargos pela concessão do seu voto, confirmem suas expectativas. A frustração que se costuma seguir decorre muito menos da incapacidade ou, mesmo, da má-fé dos que se elegeram, do que da ausência de programas doutrinários claros, que possam garantir de antemão ao eleitor saber, não em quem, mas em que está votando.

A falta do grau necessário de representatividade expressa-se em decorrência de dois fatores. O primeiro é a aludida falta de conteúdo doutrinário de nossas agremiações partidárias (15) . O segundo é o sistema eleitoral brasileiro, que é baseado inteiramente no voto proporcional, o que, sem dúvida, impede a fluidez da representatividade. Nesse sistema, o eleitor, sendo colocado, necessariamente, a uma distância física e temporal dos candidatos em que votou bem maior do que a distância em que o colocaria o sistema de voto distrital, fica impedido - pelo tempo e pelo espaço - de exigir daqueles que pediram e obtiveram o seu voto e, portanto, a sua confiança, o cumprimento do que foi prometido e estabelecido durante a campanha. Aliás, os inefáveis “horários eleitorais gratuitos” que nos são “democraticamente” impingidos pelos tribunais eleitorais, mais se parecem com programas humorísticos, daqueles de baixa qualidade. Assim, o eleitor é forçado a aguardar até as próximas eleições para, mediante seu voto, aprovar ou não a atuação daqueles que ajudou a eleger. No sistema distrital, a fiscalização torna-se necessariamente mais freqüente, pela necessidade que esse sistema impõe aos políticos de uma presença maior junto aos eleitores de seus respectivos distritos.

Outra impropriedade de nosso sistema eleitoral é que ele trata igualmente estados que são desiguais: com efeito, estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, responsáveis por cerca de duas terças partes do que a economia brasileira produz, possuem no Congresso a mesma representatividade que os pequenos estados, o que, evidentemente, dado que os últimos são em maior número que os primeiros, dá margem a práticas que deturpam o que seria uma verdadeira representatividade.

Nossa história política tem sido recheada, desde os tempos do Império e especialmente na fase republicana, de períodos de obstrução parcial dos mecanismos democráticos e de interrupção completa da democracia. Entre estes, o mais recente foi o período compreendido entre 1964 e 1985, o das chamadas ditaduras militares. Foram, a exemplo do que ocorrera entre 1930 e 1945 (especialmente a partir de 1937), vinte e um anos - isto é, uma geração - em que os brasileiros foram privados de suas liberdades individuais na esfera política, que só foram recuperadas lenta e progressivamente. Todos nos lembramos da união nacional em torno das “Diretas Já”, cujo efeito foi o restabelecimento da plena liberdade política, com as eleições de 1989.

No entanto - e pouca gente se deu conta disso - na medida em que, a partir do final dos anos setenta, nossa liberdade política ia sendo pouco a pouco resgatada, nossa liberdade econômica foi sendo paulatinamente surrupiada, desde meados daquela mesma década. Os cidadãos brasileiros não conseguiam perceber que sem liberdade econômica não pode haver crescimento autosustentado, de modo que a recuperação da liberdade política não seria por si só condição necessária e suficiente para a reconstrução da sociedade brasileira em moldes modernos. Na realidade, trocamos a primeira pela segunda, de maneira radical, por ocasião do “plano” Cruzado e dos outros que se lhe seguiram durante o governo de transição do presidente Sarney e, de modo ainda mais violento, quando da decretação do “plano” Collor, quando nossa liberdade de escolha na esfera econômica, além de ser novamente maculada por novo congelamento de preços, foi violentamente agredida pelo seqüestro perpetrado sobre os ativos financeiros. Foi o maior erro de nossa história econômica, em que pessoas que haviam passado suas vidas economizando para a velhice, foram compelidas a pagar um preço absurdamente alto - o desmoronamento de seus sonhos
- por uma inflação causada exclusivamente pelo governo. A propósito, qualquer livro elementar de Teoria Monetária rejeita veementemente aquilo ...
Paradoxalmente, chegávamos a um desfecho com o qual jamais poderíamos contar: um dia após a posse do primeiro presidente eleito pelo voto direto, depois de trinta anos, isto é, em plena euforia comemorativa do resgate final de nossa liberdade política, nossa liberdade econômica, ao arrepio do próprio Estado de Direito, nos era escamoteada, restando-nos os consolos de, primeiro, aguardar as próximas eleições e, segundo, de ainda dispor de cinqüenta mil cruzeiros, que foi a quantia mágica que nos sobrou. Afinal, caso o resultado do sorteio a respeito do valor do seqüestro - descrito posteriormente em livro, com a anuência de quem o executou - tivesse sido outro, poderia ter-nos restado ainda menos...
O caso do seqüestro de ativos é apenas um dos exemplos das deficiências embutidas em nosso sistema político. Houvesse partidos programáticos, houvesse representatividade, houvesse, enfim, mecanismos institucionais previamente elaborados para a contenção do poder, e não simplesmente voltados para um mero endeusamento da democracia, aquilo poderia ter sido evitado. (O fato de que aquilo não era tecnicamente necessário ficará assustadoramente claro na Segunda Parte deste livro).
Aprendemos, ao custo de uma demorada estagflação, que a liberdade política não é tudo e que as instituições políticas devem ser, além de garantidoras de nosso direito de eleger nossos representantes, elementos impeditivos do excesso de poder. Muito ainda precisa ser feito nesse sentido e temos a convicção de que será feito, embora lentamente, como é próprio nas democracias e, mais ainda, nas democracias incipientes como a nossa. Por exemplo, para termos uma pálida idéia do quanto ainda precisa ser feito, basta mencionarmos que a relação entre o número de medidas provisórias e o número de leis aprovadas pelo Congresso, entre janeiro de 1995 e março de 1997, atingiu o valor de quatro! É isso mesmo: quatro medidas provisórias por cada lei aprovada. Com efeito, é verdade que nossa democracia é incipiente, mas precisamos aperfeiçoá-la rapidamente.
Começa-se também a perceber em nosso país que os malefícios das restrições à liberdade econômica mais do que compensaram os inegáveis benefícios da liberdade política: tornamo-nos politicamente livres, mas economicamente prisioneiros do arbítrio das chamadas “equipes econômicas”. Isto vem ocorrendo ainda no final dos anos noventa, embora certamente sem aqueles malfadados congelamentos de preços: o Real sem dúvida foi um avanço nesse sentido, mas sua administração no dia a dia, em face da dificuldade de nosso sistema político de executar as transformações estruturais que mudem definitivamente o regime fiscal e possam consagrar definitivamente uma moeda forte, ainda revela cacoetes intervencionistas a esta altura dos acontecimentos imperdoáveis.
De qualquer forma, embora lentamente, nossa sociedade já vem ensaiando os primeiros e titubeantes passos para a construção de instituições que respaldem uma ordem espontânea. Resta-nos, contudo, entender que é preciso resgatar os valores éticos e morais fundamentais, para que o Brasil do futuro não seja reconstruído imprudentemente sobre a areia.

A Redescoberta da Ética

O desenvolvimento econômico autosustentado, escreveu o professor P.T. Bauer, da London School of Economics (16) , não depende fortemente da disponibilidade de vastos recursos naturais, pois Japão, Grã-Bretanha, Formosa e Singapura, por exemplo, não os possuem, ao passo que os países da África e da própria América, ricos em recursos naturais, permanecem mergulhados no subdesenvolvimento. Não depende, tampouco, de populações pequenas ou grandes, já que muitas nações densamente populosas, como Holanda, Coréia do Sul e Hong-Kong, de um lado, são bem sucedidas em suas atividades econômicas, ao passo que a China e a Índia, também superpopulosas, de outro lado, não possuem economias bem sucedidas. Nem decorre, muito menos, de “status” anticolonial, uma vez que diversas nações, hoje desenvolvidas, com os Estados Unidos sendo o maior exemplo, foram colônias até época recente, ou ainda são colônias. O desenvolvimento econômico depende, no dizer de Bauer, “de pessoas e das providências que tomam”, “de recursos humanos e da vontade de utilizá-los”, “de qualidades pessoais”, “de instituições sociais e morais “e “de acordos políticos”, fatores esses que - acrescentamos - quando são espontaneamente desencadeados, estimulam a germinação dos determinantes econômicos do crescimento, isto é, dos investimentos em capital físico, humano e tecnológico que aumentam a capacidade de geração de oferta das economias.
As observações - bastante pertinentes - de Bauer, são equivalentes, conforme notou Michael Novak, à afirmativa de que “o sistema moral-cultural é a principal força dinâmica por trás da ascensão tanto de um sistema político democrático quanto de um sistema econômico liberal. O sistema moral-cultural é o “sine qua non” do sistema político e do sistema econômico. Negligenciá-lo significa envenenar o organismo” (17) (negritos nossos).
Os homens não vivem apenas de pão e de circo. A imensa maioria dos seres humanos somente encontra lugar para a paz em suas consciências quando acredita que suas atividades econômicas e políticas revestem-se de significado moral. O trabalho duro, a perseverança nas dificuldades da vida, a frugalidade e o próprio sentimento da esperança só fazem sentido, enquanto possibilidade de bem-estar material (que faz parte da dignidade humana), quando encontram respaldo na força do sistema moral do qual se participa no seio da sociedade em que se vive.
Subitamente - e também, como conseqüência natural do fato de passarmos a viver, após muitos anos sob um regime fechado, em uma sociedade aberta - os brasileiros descobriram que o nível moral estava em baixa. E as sociedades correm riscos maiores de perecer pela perda da moralidade indispensável do que pelo enfraquecimento de seus sistemas político e econômico. A ética é o componente mais frágil da cadeia, eis o que queremos dizer ao leitor.
A crise ética e moral brasileira, a exemplo do que ocorreu em outros países, tem origens remotas e é proveniente de duas causas básicas: a primeira é o relativismo moral que, originado com a “morte de Deus”, decretada por Nietzsche na segunda metade do século XIX, transformou-se na grande chaga do século XX, na medida em que deu origem à “vontade de poder”, eleita como substituta dos valores judaico-cristãos anteriores, como observou magistralmente o jornalista, historiador e “scholar” Paul Johnson, em “Tempos Modernos” (18) . A segunda causa da deterioração dos valores morais é decorrente da primeira, mas merece ser destacada por suas dimensões e importância. Trata-se do fenômeno do crescimento do Estado, especialmente pelas repercussões que acarretou em termos da invasão que o sistema político passou a executar sobre o sistema econômico e que teve no keynesianismo seu pretenso respaldo “científico” e no nacionalismo sua grotesca faceta populista, em especial na América Latina.
Tanto o relativismo moral quanto o crescimento do Estado que ele desencadeou pareciam desconhecer que a capacidade destrutiva dos indivíduos, embora perversa, é insignificante diante da que o Estado, mesmo quando bem-intencionado, revelou possuir. Onde é grande o Estado, onde as instituições democráticas revelam incapacidade para conter o poder excessivo e sua concentração e onde os valores tradicionais sobre o que é bom ou mau são desdenhados - e, muitas vezes, ridicularizados - o componente de egoísmo que sempre caracterizou os seres humanos não encontra limites à sua expansão.
Este redespertar brasileiro para a importância da ética poderá dar bons frutos, pois, como vimos, os valores ético-morais, caso venham a ser revitalizados, desintoxicarão os tecidos econômicos e políticos. Voltaremos a este tema diversas vezes ao longo do livro, dada a sua importância. Por ora, desejamos esclarecer ao leitor que, seguindo a linha desenvolvida pelo economista argentino Alejandro Chafuen (19) , os termos moral e ética serão utilizados, ao longo do livro, como sinônimos. Ambas as palavras têm a mesma origem e derivam do termo costume (em latim, “mors”). Moral, enquanto ciência, significa uma filosofia dos costumes e “o ético foi-se identificando cada vez mais com o moral, chegando a significar que se ocupa dos objetos morais em todas as suas formas, a filosofia moral” (20) . Moral ou ética, para nós, será a ciência do dever ser, a ciência que trata do bem geral e das ações humanas no que diz respeito à sua bondade ou maldade.
A partir do ano de 1992, com o episódio do “impeachment” do presidente Collor e em diversos outros “escândalos” que se vão sucedendo ano após ano - e que só passaram a ser do conhecimento público quando nossa sociedade passou a ser aberta -, os brasileiros começaram a perceber a verdade da frase de Novak, na medida em que viram como o apodrecimento do sistema ético, que permaneceu oculto durante os anos em que nos afastamos da democracia, havia contaminado o sistema econômico e boa parcela do sistema político. Enquanto não perdermos definitivamente a vergonha de lutar pelos princípios morais insubstituíveis que a revolução relativista pouco a pouco sufocou e aprisionou, será impossível o resgate da dignidade nacional, nossa moeda dificilmente será definitivamente forte e a pobreza e a miséria continuarão a grassar.
Mas essa redescoberta da importância da ética é apenas o primeiro passo.

Exultavit ut Gigas

No saltério há um estranho verso em latim - “Exultavit ut gigas ad currendam viam”- cuja tradução livre é algo como: levantou-se alegre como um gigante e passou a percorrer com pressa o caminho (Sl. 18,6). É estranho porque, ao mesmo tempo que nos lembra o gigante adormecido eternamente de que nos fala o Hino Nacional, incita-nos também a ter esperança de que, finalmente, o gigante poderá deixar sua preguiça de cinco séculos de lado e ir à luta. Incita-nos, assim, a pelo menos desejar que o Brasil jogue fora os erros do passado e corra em busca de seu futuro, aquele risonho futuro em que meus avós, há quase cem anos, depositaram todas as suas esperanças.
Há pouco mais de vinte décadas, a renda total das treze colônias que mais tarde formariam os Estados Unidos da América era equivalente à das colônias fundadas por Espanha e Portugal na América do Sul. Como explicar que, já no final do século XIX, os Estados Unidos se tinham transformado na maior potência econômica mundial, enquanto alguns intelectuais brasileiros, já na porta de entrada do terceiro milênio, ainda continuam atribuindo nosso substancial atraso, entre outras “causas”, ao fato de termos sido “explorados pelo capital internacional”? Nunca é demais lembrarmo-nos de que, até 1776, as treze colônias do norte eram tão “exploradas” quanto as colônias do sul e de que, se os processos de colonização foram de fato diferentes, isto não impede que nos demos conta de que podemos romper as barreiras que nos impedem de crescer.
É que, sem dúvida, é bem mais fácil por a culpa nos outros: somos pobres porque os Estados Unidos são ricos e, portanto, nos exploraram e continuam a explorar, ou então porque fomos colonizados por portugueses, e não por outros povos... A propósito, vale ressaltar, primeiro, que Portugal, hoje, no contexto da União Européia, é uma sociedade moderna e próspera e, segundo, em defesa dos portugueses, que eles são um dos povos mais trabalhadores e mais moralmente corretos do mundo. A culpa da nossa pobreza não pode ser atribuída nem a americanos, nem a portugueses, nem a qualquer outro povo; ela é nossa, exclusivamente nossa!
Infelizmente, ainda circulam no Brasil os últimos resquícios da chamada “teoria da exploração”, de origem marxista: os países ricos exploram os pobres, os empresários exploram os trabalhadores, os banqueiros exploram o povo, os proprietários de terra exploram os sem-terra... e a esquerda brasileira explora a nossa paciência. Enquanto a “intelligentsia” tupiniquim teima em continuar seu alarido, a caravana dos investimentos geradores de empregos e de progresso segue passando sem parar, rumo às sociedades que conseguiram aglutinar, pelo menos mais do que a nossa, as condições gerais que Bauer apontou como os sustentáculos do desenvolvimento.
As “teorias da exploração” são o resultado natural do casamento da falta de conhecimento de teoria econômica que caracteriza a maioria dos intelectuais, com aquele traço do comportamento humano que, como Heródoto já observava cerca de quinhentos anos antes de Cristo, nasceu no homem desde o princípio: a inveja. Adam Smith, em seu magnífico livro “Teoria dos Sentimentos Morais” dedicou um capítulo inteiro a essa deformação moral. E os ataques de inveja - escreveu Zamora - “são os únicos em que o agressor preferiria, se pudesse, ocupar o papel de vítima” (21) . Quantos intelectuais, líderes sindicais, professores universitários, artistas e políticos que se autodenominam “progressistas” (mas que se revelam na prática quase sempre contra o progresso) não gostariam de estar no lugar dos famigerados capitalistas, dos executivos financeiros e dos empresários que são freqüentemente alvo de seus ataques...
Cremos que nossa sociedade chegou, mais por força da nova ordem liberal internacional do que por convicção doutrinária, à sua hora da verdade . Parece haver chegado finalmente o momento em que nós, cidadãos livres e conscientes, somos chamados a decidir se vamos de fato construir uma sociedade rica ou se vamos continuar a lançar nos outros as conseqüências de nossa incompetência. Por isso, precisamos refletir sobre alguns pontos importantes.
O primeiro é que devemos - se desejamos mesmo transformar o Brasil - abrir mão de toda e qualquer solução formulada por intelectuais. Uma leitura que, muito provavelmente, mostrará ao leitor o porque disso é o livro “Os Intelectuais”, de Paul Johnson (22) . Ao longo de seus treze capítulos, vão-se tornando extraordinária e assustadoramente claras as três grandes características da “intelligentsia”: o total desamor à verdade, o egocentrismo (fonte da inveja) e a pretensão de acreditar que as idéias valem mais do que as pessoas. Em nossa hora da verdade, devemos repelir a crueldade embutida em todas as ideologias, por sua suposição de que os seres humanos não apenas podem, mas devem adequar-se às idéias. O pior dos despotismos é a insensível tirania das idéias, eis a lição que nos deixa o século XX.
Um país rico deve ser construído por pessoas e pelas providências práticas que tomam, pela utilização de recursos humanos, de qualidades morais, por instituições políticas e econômicas que respeitam e incentivam a liberdade de escolha, por leis que não sejam meros comandos ou ordens, mas normas gerais de justa conduta, prospectivas, abstratas e impessoais e, portanto, aplicáveis a todos os habitantes, inclusive os que eventualmente estiverem ocupando o poder.
O segundo ponto a ser meditado é que, em função das considerações anteriores, a reconstrução do Brasil não deve ser confiada ao Estado, nem a este ou àquele partido político, nem a algum motorista iluminado que prometa, sozinho, levar o país ao progresso. Ela depende de nós, cidadãos, de nossa capacidade de descobrir instituições que garantam o funcionamento, de forma espontânea, dos três grandes sistemas que compõem a sociedade: o econômico, o político e o moral-cultural. Não cabe ao Brasil a decisão, mas aos brasileiros, porque o “Brasil” não pensa, quem pensa e age são seus cidadãos.
Procuramos, nesta Introdução, esboçar um quadro crítico da realidade do país na virada de século, um quadro que talvez o leitor julgue pessimista, mas que, na realidade, é uma crítica realista, objetiva e fria, sob a perspectiva liberal. Aliás, dizem que os otimistas, quando bem informados, transformam-se em realistas esperançosos.
Mostramos a hora da verdade que estes anos críticos nos colocam, dividindo a sociedade em três macro-sistemas e apontando as deficiências de cada um, bem como suas potencialidades. Precisamos lançar definitivamente fora o relativismo moral, perdendo de vez o receio de enfrentar o patrulhamento ideológico, que conseguiu transformar a expressão “moralismo” em autêntica ofensa e que procurou ridicularizar o exercício da autoridade, seja por parte de pais e professores, seja por parte dos governos, transformando esse exercício essencial em sinônimo de “autoritarismo”, gerando, assim, a permissividade. Já é tempo de sabermos que autoridade não é repressão e que repressão não é fascismo. Nossa sociedade ainda vive um estado que os sociólogos chamam de anomia, em que as violações de normas, pela clara ausência de sanções - e, quando estas existem, pela baixa probabilidade média de que venham a ser aplicadas - tendem a tornar-se a regra geral e não as exceções.
O Brasil é uma nação de origem cristã - o primeiro ato oficial aqui realizado foi a missa rezada por Frei Henrique Soares, de Coimbra -, que sempre valorizou a importância da família na formação do caráter moral dos seus cidadãos, de modo que negar isto, a pretexto do falso modernismo que mascara as posturas hedonistas, é renegar a própria brasilidade. Como observou Novak, “...é verdade obscura, embora importante em economia política, qua o ser é fundamentalmente familial, e só depois independente como indivíduo. Quando o ser basicamente familial vem a ser destruído de fato, a independência do indivíduo também se desintegra e do ser nada resta senão a vontade da comunidade” (23) . As práticas de sociedades totalitárias, como a Alemanha nazista, a ex-União Soviética e a ilha de Fidel, por exemplo, estão aí para mostrar a verificação universal desse princípio. Os intelectuais mentores do totalitarismo imaginaram, em todas aquelas tristes experiências, que seria possível fazer com que seres humanos, abandonando sua própria condição de homens, passassem a agir como os membros das sociedades gregárias, como as das abelhas, formigas ou cupins. O resgate do sistema moral brasileiro, que deve começar pelo estabelecimento claro do que é certo e do que é errado, à luz das tradições mais fortes de nosso povo, representa, portanto, algo muito mais profundo, de natureza inclusive espiritual, do que simplesmente colocar meia dúzia de corruptos na cadeia ou abrir CPIs para apurar escândalos, em meio a holofotes e achaques de puro sensacionalismo.
As ligações entre ética, política e economia tronam-se visíveis quando analisamos o papel do Estado na economia e serão aprofundadas no decorrer do livro, mas vale a pena convidar o leitor a refletir sobre as seguintes observações, recolhidas em uma encíclica de 1991 de João Paulo II e que retratam fielmente, sob o ponto de vista de um líder por definição descompromissado com qualquer doutrina humana, a posição de grandes liberais, desde John Locke e Adam Smith, passando por Fréderic Bastiat e Alexis de Tocqueville, a Mises e Hayek:
“A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, conseqüentemente, sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica” (24) .
Estamos todos fartos de ouvir que o Brasil é o país do futuro, um futuro que parece nunca chegar. É hora de nortearmos nossas instituições políticas, econômicas e morais, de modo a que nosso amanhã comece a ser feito a partir de hoje, para que ele não se transforme, para nós, no advérbio dos vencidos. Para que sejamos bem-sucedidos, devemos buscar, emergindo da atual crise, construir instituições que favoreçam e garantam a economia de mercado, a democracia política com representatividade e a valorização do trabalho e da parcimônia, ao amparo de normas legais de conduta que sejam, de fato, justas e iguais para todos.
Na vida econômica em particular e na vida humana em geral, a primazia da moral é uma lei demonstrável e fundamental para a prosperidade, é um princípio filosófico e empírico que não pode ser violado. Quando isso ocorre, surgem os vícios morais, tão conhecidos pelos brasileiros, como a preguiça, a desonestidade, a corrupção, a coerção, a avareza e tantos outros que, como traças, corroem pouco a pouco a sociedade. “A revolução” - como afirmou o poeta Charles Peguy - “deve ser moral ou não será revolução” (25) .





Referências bibliográficas



* Josemaría Escrivá, Caminho, Quadrante, São Paulo, 7ª ed., 1989, nº 251, pág.77. Escrivá, ao formular este pensamento, tinha como objetivo chamar a atenção contra o mau hábito que constitui o adiamento dos bons propósitos.

1. Para uma excelente exposição - fartamente documentada - a respeito do fenômeno da politização dos problemas econômicos e morais, recomendo a leitura de "Tempos Modernos - o Mundo dos Anos Vinte aos Oitenta", de Paul Johnson, Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1990, bem como o livro de Michael Novak, "O Espírito do Capitalismo Democrático", Nordica, Rio de Janeiro, s/data, especialmente págs. 200 e segs.

2. Bell, Daniel, "The Cultural Contradictions of Capitalism", Basic Books, Nova York, 1976, págs. 10 e segs.

3. Novak, M., op. cit., pág.200.

4. Este foi o caso, por exemplo, dos anos do chamado "milagre brasileiro" (início dos anos setenta), em que o funcionamento relativamente satisfatório do sistema econômico e do sistema moral-cultural, malgrado o estado insatisfatório do sistema político, conseguiu garantir alguns anos de prosperidade.

5. Alguns autores sustentam que o keynesianismo prático, isto é, a geração de déficits fiscais financiados pela emissão de moeda com a finalidade de expandir o emprego e o produto (e, obviamente, vencer as eleições) é anterior ao livro de Keynes. Paul Johnson, por exemplo, sugere - e documenta fartamente com dados estatísticos - que a década de 20 nos Estados Unidos foi uma década keynesiana, caracterizada pelas políticas públicas expansionistas dos presidentes Harding, Coolidge e Hoover. Tais políticas, segundo Johnson - e não a tão propalada "insuficiência de demanda efetiva" - é que teriam paradoxalmente gerado a crise que durou do final dos anos 20 aos primeiros anos da década de 30. Ver Paul Johnson, op.cit., caps. 6 e 7.

6. Ver, por exemplo, Lucas, Robert, "Some International Evidence on Output-Inflation Tradeoffs", American Economic Review, Vol.63, nº 3, junho de 1973.

7. Mises, L. von, "The Theory of Money and Credit", Yale University Press, New Haven, 1953, publicado originalmente em 1912, em alemão, com o título "Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel".

8. Ver, por exemplo, Hayek, F.A.,"Money, Capital & Fluctuations - Early Essays", coletânea dos primeiros ensaios de Hayek, The University of Chicago Press, Chicago, 1984.

9. Hayek, F.A., “Desemprego e Política Monetária", José Olympio/ Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1985.

10. Esta correlação negativa de curto prazo entre taxas de crescimento dos preços e taxa de desemprego é conhecida, na literatura macroecômica convencional, como Curva de Phillips.

11. Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, "The Federalist", nº 51, Modern Library, New York, 1941, pág.339.

12. Ver, por exemplo, Hayek, F.A., "El Ideal Democrático y la Contención del Poder" in: Estudios Públicos, nº 1, Santiago, Dezembro de 1980.

13. A definição de Estado Mínimo tem sido objeto de extensa literatura. Devemos ressaltar que o "tamanho" ideal do Estado varia de acordo com cada sociedade. Por exemplo, o Estado brasileiro deve ser "maior" que o belga e menor que o chinês. Ver, por exemplo, Guy Sorman, "O Estado Mínimo", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1988 e Robert Nozick, "Anarquia, Estado e Utopia", Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991.

14. Popper, K., "La Sociedad Abierta y sus Enemigos", Paidós, Barcelona, 1982.

15. O partido que se diz defensor e representante dos trabalhadores, na realidade, tem conteúdo muito mais ideológico do que doutrinário, assim como aqueles cujas siglas contêm a palavra "liberal" têm revelado um caráter na maioria das vezes anti-liberal.

16. Bauer, P.T., "Dissent on Development", Weidenfeld and Nicolson, Londres, 1971.

17. Novak, M.,op. cit., pág. 216 e seguintes.

18. Johnson, P., op. cit., cap. 1.

19. Chafuen, A.A. "Christians for Freedom - Late Scholastic Economics", Ignatius Press, San Francisco, 1986, traduzido pelo próprio autor para o espanhol, com o título "Economia y Etica - Raíces Cristianas de la Economia de Libre Mercado", Rialp, Madri, 1991.

20. Ferrater Mora, J., "Diccionario de Filosofia", Sudamericana, Buenos Aires, 1975, tomo II, págs. 232-235 (citado por Chafuen, pág. 38).

21. Alcalá Zamora, "Pensamentos e Citações".

22. Johnson, P., "Os Intelectuais", Imago, Rio de Janeiro, 1990.

23. Novak, M., op. cit. pág. 193.

24. João Paulo II, Carta Encíclica "Centesimus Annus", Loyola, São Paulo, 1991, nº 48, pág. 65.


25. Citado por Michael Novak, "This Hemisphere of Liberty: A Philosophy of the Americas", AEI Press, Washington, 1992, pág.85.

AS CAUSAS DA GRANDE DEPRESSÃO: MITO E REALIDADE

Ubiratan Iorio


I. INTRODUÇÃO


Uma das opiniões mais difundidas entre economistas e leigos é a de que a Grande Depressão do final dos anos 20 e início dos anos 30 do século passado teria sido provocada por “gastos de menos e poupança demais”. Na verdade, embora esse diagnóstico tivesse prevalecido sobre os demais - o que se deve ao extraordinário poder de persuasão de Lord Keynes e ao verdadeiro petisco que sua terapia de aumentar os gastos públicos significou (e sempre significará) para políticos de todos os matizes-, há uma outra teoria, da mesma época - para não mencionarmos um terceiro, formulado por Milton Friedman nos anos 50 -, desenvolvido por Hayek, com base na tradição vienense de Carl Menger, na “Escola Sueca” de Knut Wicksell e em um abrangente tratado de Teoria Monetária publicado por Mises, em 1912.

Para Hayek e os economistas “austríacos”, a Grande Depressão não fora provocada por “gastos de menos e poupança demais”, mas exatamente pelo oposto, isto é, “gastos demais e poupança de menos”.

Serão loucos – ou incompetentes – os economistas, a ponto de dois dos mais famosos de sua época sustentarem cada um que aquilo que o outro apontava como causa era na verdade efeito e o que o colega apontava como efeito é que seria a verdadeira causa? Bem há economistas loucos e há economistas incompetentes (especialmente, quando formados na Unicamp)... Mas não se pode dizer nem uma coisa nem outra tanto de Hayek como de Keynes (por mais que discordemos do último).

A questão crucial está na abrangência do conceito de tempo subjacente a cada teoria: Keynes, na Teoria Geral, olhou o curto prazo, em que de fato o setor privado gastava pouco, ao passo que Hayek, quando falava em “sobreinvestimentos”, estava se reportando aos imensos gastos realizados pelos governos nos anos 20, especialmente após o fim da Primeira Guerra Mundial, comparando-os a um excesso de comida que, fatalmente, haveriam de provocar a “indigestão” da Grande Depressão.

Poucas frases foram tão infelizes e provocaram efeitos tão devastadores quanto aquela de Keynes, uma verdadeira condenação à vida das formigas e exaltação à das cigarras, segundo a qual “no longo prazo, todos estaremos mortos”... Para compreender por que, voltemos setenta e cinco anos na máquina do tempo que é a História do Pensamento Econômico.

No início dos anos trinta, o Prof. Hayek foi convidado pelo próprio Keynes para proferir uma série de três conferências na London School of Economics. O material daquelas palestras, então publicado sob o título de “Prices and Production” , representa sua primeira tentativa de elaborar uma teoria dos ciclos econômicos, combinando a análise de Knut Wicksell das relações entre moeda e taxa de juros com a teoria do capital de Eugene von Böhm-Bawerk, na tradição iniciada em 1912 por Mises, no capítulo 19 de sua “Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel”. As palestras de Hayek foram pontuadas por triângulos, de uma espécie que sua platéia - que incluía, entre outros, John Hicks, Nicolas Kaldor e Joan Robinson - jamais tinha visto anteriormente e que, talvez por esse motivo, não tenha compreendido.

Este artigo tem os objetivos de, explicando o que Hayek pretendia representar com seus triângulos, apresentar de maneira conceitual a alternativa dos economistas que adotam a metodologia austríaca às teorias da inflação dos modelos macroeconômicos convencionais.

A teoria austríaca dos ciclos, atribuída a Hayek, procura explicar de que maneira os distúrbios monetários provocam descoordenações intertemporais nas atividades econômicas (os “booms” artificiais), como essas descoordenações, ao serem descobertas, provocam recessão (os “busts”) e que ajustamentos elas desencadeiam no sentido da reestruturação da economia.

Trata-se de uma tentativa de conciliar elementos wicksellianos e böhm-bawerkianos, tal como já o fizera Mises em seu tratado de 1912. Além disso, Hayek enriqueceu-a com as influências de David Ricardo e John Stuart Mill, bem como, é claro, com seus próprios “insights”. O resultado é uma integração magistral das teorias dos preços, da moeda e do capital. Os diversos elementos da teoria hayekiana - que são isolados a seguir para facilitar a compreensão e a análise do leitor - estão conectados por uma forte complementaridade, a tal ponto de não podermos rejeitar qualquer um deles sem que a teoria como um todo fique comprometida.

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Salvando a mentira

Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 19 de setembro de 2008

O New York Times, como ninguém ignora, torce – e distorce – para a esquerda. Notícias que maculem gravemente a imagem dos ídolos do esquerdismo só saem lá em último caso, quando a porcaria é grande ou notória demais para ser escondida. Se é contra a direita, contra os EUA ou contra Israel, qualquer picuinha vai logo para a primeira página. No entanto, o enviezamento ideológico do velho diário não passa muito além desse ponto. Vexames colossais de outras épocas, como as matérias estalinistas do arqui-embrulhão Walter Duranty (modelo de jornalismo da “Hora do Povo”), a campanha dos anos 50 para convencer os americanos de que Fidel Castro era um grande líder pró-ocidental ou a imensa foto de primeira página do árabe agredido pela polícia israelense que era na verdade um judeu agredido por árabes, jamais se repetiram. A mentira completa e proposital passou a ser evitada sempre que possível, ao menos para dar às distorções sutis uma credibilidade jornalística que elas não teriam, digamos, num semanário do MST.

No jornalismo brasileiro, porém, essas precauções já foram para o beleléu faz muito tempo. Com exceções infinitesimais que só servem para sublinhar a generalidade onipresente da regra, a grande mídia nacional transformou-se num eco passivo dos debates internos da esquerda, onde só são admitidas as opiniões e notícias que possam, sem escândalo, ser lidas do alto do pódio numa assembléia geral do Foro de São Paulo (aqui e aqui). O leitor leigo pode se deixar impressionar pelas freqüentes acusações de direitismo lançadas pelos jornalistas uns contra os outros, mas, como nunca viu direitismo de verdade, não tem meios de comparação e não percebe, portanto, que o teor dessas acusações é precisamente idêntico ao daquelas que se poderiam ouvir, em tumultos estudantis dos anos 60, atiradas pela AP contra o PCB ou vice-versa. O que aí se denuncia é um direitismo figurado, de segundo grau, que não consiste em adesão firme e coerente a qualquer proposta liberal ou conservadora, mas em simples contaminação parcial, em concessão por fraqueza, em fidelidade imperfeita ao ideário esquerdista. A veemência crescente do tom em que essas acusações são proferidas, dando a falsa impressão de que há uma direita em ascensão no país, revela na verdade que mesmo esse direitismo metafórico e diluído já é cada vez menos tolerado. A esquerda lucra duas vezes com isso: fortalece sua posição na mídia e mantém a militância naquele estado de temerosa expectativa de uma investida inimiga, necessário para a maior disciplina, lealdade e coesão.

Nessa confortável posição de controle absoluto, ela está livre para mandar às favas os últimos escrúpulos de idoneidade jornalística e deixar que a imaginação militante assuma o lugar do que possa ter sido um dia o senso de realidade, mesmo atrofiado e mínimo.

Isso acontece em todos os maiores jornais do país, mas a Folha e o Globo são aqueles onde a obliteração da consciência jornalística é mais visível.

Vejam por exemplo a matéria que saiu no New York Times sob o título “Personagem do caso Rosenberg confessa ter espionado para os soviéticos”. Reproduzida na Folha, transformou-se na seguinte coisa: “Ethel Rosenberg era inocente, diz ex-réu”.

Como é possível transformar uma confissão de culpa na proclamação de um erro judiciário, na denúncia de uma condenação iniquamente imposta a pessoa inocente? É o milagre jornalístico dos títulos. Com quatro ou cinco palavras você inverte o sentido de uma matéria inteira. Como a maior parte dos leitores só lê os títulos, o impacto da notícia real é neutralizado e é o contrário dela que permanece na memória geral. Repitam esse processo uns milhares de vezes e as mais estúpidas histórias da carochinha se tornam verdades de evangelho.

Isso é o que no Brasil de hoje se chama “jornalismo”.

Vale a pena examinar o caso com mais atenção.

Segundo o despacho do NYT, Morris Sobell, condenado à prisão em 1951 por espionagem atômica enquanto seus cúmplices Julius e Ethel Rosenberg iam para a cadeira elétrica em Sing Sing, continuou alegando inocência obstinadamente, até que, aos 91 anos, desistiu e confessou que ele e Julius eram mesmo espiões soviéticos. 

A culpa deles é monstruosa: passaram aos russos segredos essenciais de construção da bomba atômica, transformando a falida URSS numa potência ameaçadora, colocando o mundo sob risco de guerra nuclear e inaugurando a era da Guerra Fria.

A confissão derruba uma das maiores e mais persistentes mentiras do calendário litúrgico esquerdista. 

Durante mais de meio século, a intelectualidade e o jornalismo de esquerda proclamaram a inocência de Sobell e dos Rosenbergs. Ainda em 1988 centenas de artistas e escritores esquerdistas participaram do “Rosenberg Era Art Project” (v. Rob A. Okun, ed., The Rosenbergs: Collected Visions of Artists and Writers, Universe Books, 1988), uma rodada de exposições e conferências, repetida nas mais famosas galerias de arte dos EUA em homenagem aos Rosenbergs, ali apresentados como mártires inocentes, vítimas de perseguição macartista e – é claro – de anti-semitismo (Arnaldo Jabor adora essas coisas).

As provas em contrário, no entanto, continuaram se acumulando e acabaram por se tornar irrespondíveis após a abertura dos Arquivos de Moscou e a decifração, pelo exército americano, dos códigos Venona, comunicações secretas entre o Kremlin e a embaixada soviética nos EUA

A bibliografia a respeito é abundante e, por ironia, quase toda produzida por autores judeus (por exemplo, Ronald Radosh, The Rosenberg File, Yale Univ. Press. 1997; John Earl Haynes and Harvey Klehr, Venona: Decoding Soviet Espionage in America, id., 1999; Herbert Rommerstein and Eric Breindel, The Venona Secrets: Exposing Soviet Espionage and America’s Traitors, Regnery, 2000). Para cúmulo, o próprio agente soviético que serviu de ligação entre Moscou e os Rosenbergs, Alexander Feklisov, contou tudo no seu livro de memórias (The Man Behind the Rosenbergs, Enigma Books, 2001).

Se ainda faltasse lançar a pá de cal sobre uma das mais vastas, dispendiosas e obstinadas campanhas de desinformação comunista, a entrevista de Sobell fez precisamente isso. O debate está encerrado e, mais uma vez, comprovada a mendacidade esquerdista que produziu as mais extraordinárias falsificações históricas do século XX.

A consciência moral da Folha, porém, não podia aceitar calada uma injustiça tão grande. A verdade vencera? Que horror! Era preciso dar um jeito nisso, restabelecer o equilíbrio, salvar ao menos um pedacinho da mentira moribunda. Felizmente, a própria entrevista de Sobell dava margem a isso. Confessando o crime dele e de Julius Rosenberg, o espião aposentado acrescentava que Ethel, a mulher do seu cúmplice, sabia de tudo mas não teve grande participação na rede de espionagem. Era tudo o que a Folha precisava para transfigurar a confissão de crime em denúncia de erro judiciário, jogando a essência comprovada da notícia para baixo do tapete e puxando para o título o detalhe menor e duvidoso.

Mais que duvidoso, na verdade.

A ocultação proposital de um ato de espionagem que coloca a segurança de um país em risco é parte integrante da própria espionagem. Ethel não encobriu só o marido: encobriu a operação inteira, que transformou o inimigo inerme em ameaça temível contra os EUA. 

Em nenhum tribunal do mundo ela seria considerada “inocente”. Só no título da Folha e, daí por diante, na imaginação dos otários que acreditam nela.

A técnica jornalística mais elementar ensina que o título deve resumir a parte mais importante e confirmada da notícia, ficando para o corpo do texto os detalhes complementares, sobretudo se não comprovados. A confissão de Sobell é em si um fato, e de importância histórica inegável. Sua declaração sobre Ethel é mera opinião, contraditada aliás pelo testemunho do próprio Feklisov. Mesmo se admitida como verdadeira não provaria nenhuma “inocência” de Ethel Rosenberg.

A Folha não se vexa de inverter o preceito básico do noticiário jornalístico, para atenuar o impacto de uma notícia que poderia pegar mal – ó horror! – para a reputação ilibada dos comunistas.

Episódios como esse repetem-se praticamente todo dia naquele e em outros jornais brasileiros, mostrando que ali a prioridade não é o jornalismo: 

é a manipulação esquerdista deliberada, mendaz, perversa e incansável. 

O que me pergunto é por que tantos leitores, assinantes e anunciantes aceitam passivamente ser ludibriados com tal persistência e nem mesmo fazem uma queixa à Delegacia do Consumidor.

O PROER E A ESTABILIDADE ECONÔMICA

Do portal do NIVALDO CORDEIRO
30/09/2008

Li e reli o artigo do senador Marco Maciel, publicado hoje no Estadão (“O PROER blindou o sistema bancário brasileiro”). Li de novo. Eu não poderia concordar com a tese central, de que o PROER teve efeito miraculoso e a ele poderia até mesmo serem creditados os evidentes benefícios do Plano Real, um grande exagero. Mas como fugir ao senso comum? Como argumentar contra o artigo do senador? Como tirar o véu que esconde a realidade?

Vejamos seu primeiro parágrafo: “A atual crise mundial dos mercados financeiros e de capitais, cujos enfrentamentos estão sendo adotados pelo governo dos Estados Unidos, confirma o quanto estava certo o presidente Fernando Henrique Cardoso ao criar o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional (Proer), implementado no Brasil de 1995 a 2000”.

O que teria sido sem o PROER? Difícil contar a história do que poderia ter sido, mas nunca devemos esquecer dos fatos maiúsculos que aconteceram no período e que o senador convenientemente se esqueceu de se lembrar. O primeiro deles é o salto espantoso na carga tributária, para mim o verdadeiro sustentáculo da estabilização de preços, em meio a gastos elevados e crescentes do governo.

O imposto inflacionário foi simplesmente substituído por tributação explícita, marcando de forma indelével a guinada do Brasil para o campo das economias de feição socialista.

Outro fato importatante – e que persiste até hoje – foi a elevadíssima taxa de juros, que transferiu ganhos gigantescos do Tesouro, grande devedor da economia, para os banqueiros privados. Boa parte da elevação da carga tributária transformou-se em receita nominal dos bancos. Podemos dizer, sem margem para errar, que os custos do PROER foram elevadíssimos para o contribuinte brasileiro, que arcou não apenas com a expansão da dívida, como também com seu elevado custo de carregamento.

O artigo afirma: “A última operação de financiamento do Proer foi concluída em meados de 1997. A implementação do programa custou, no total, R$ 20,4 bilhões, valores da época, cerca de 2,7% do produto interno bruto (PIB) médio do triênio 1995-1997. Os valores atualizados são, evidentemente, maiores, mas a indicação do porcentual do PIB dá uma boa noção de que o programa teve custos relativamente baixos”. Isso não me parece correto, pois a conta deveria incluir os lucros extraordinários oriundos das elevadíssimas taxas de juros. É preciso que se computem os custos extraodinários do endividamento do setor público, muito acima das taxas verificadas no mercado internacional. Esta conta está para ser feita ainda. O cidadão brasileiro que paga impostos arcou integralmente com esses custos do ajuste dos bancos e disso o senador não fala.

Deve-se registrar também que o governo FHC deu outra grande soma de recursos aos banqueiros ao reconher como válidas as ditas moedas “podres”, como as TDAs, que por décadas eram ativos ilíquidos. Por simples decreto esses títulos foram igualados aos demais de emissão do Banco Central, fazendo a fortuna, do dia para a noite, daqueles que os tinham em carteira, naturalmente os banqueiros. Nunca descobri o montande dessa doação. Essa história ainda precisa ser melhor contada. Não é coisa gratuita, esse reconhecimento, pois agigantou a dívida pública e engordou a receita dos balanços dos bancos de forma permanente.

Outro efeito desastroso do PROER foi cartelizar ainda mais o mercado bancário brasileiro, que se concentrou enormemente, tornando-se o setor mais impermeável à competição. O sistema bancário brasileiro é um gigantesco cartório ou um restrito clube que não admite novos sócios. Não é possível mensurar o mal que uma cartelização dessa envergadura tem causado à economia brasileira. Penso que as taxas raquíticas de crescimento da economia verificadas nas últimas décadas se deve, em muito, à inadequação da intermediação financeira para apoiar o desenvolvimento. Banqueiro gosta mesmo é de financiar o governo.

As coisas deram certo para o Brasil depois do PROER, sobretudo pela grande expansão da economia mundial nos últimos tempos, fatos que não guardam relação de causa e efeito. Sobrou liquidez no mundo, afastando o eterno fantasma da insuficiência de moeda forte entre nós. E também nunca exportamos tanto. Então os fenômenos se misturam e aquilo que é ruim pode parecer o seu oposto ao observador desavisado. Posso não me tornar muito popular por dizer que o PROER foi uma gigantesca doação de recursos, seguida de cartelização e de uma superremuneração da dívida pública, mas é essa a dura realidade. Terá sido algo bom? Foi bom o crescimento da carga tributária como proporção do PIB? Um estadista poderia ter feito diferente, como agora o Congresso dos EUA ousou fazer, dizendo um “não” sonoro à aventura semelhante por lá tentada. Tudo somado o governo FHC tornou os bancos grandes estruturas, ricas e sólidas, impermeáveis à concorrência. Não é possível haver quebra com receitas elevadas e sólidas e sem ter competição.

O fato é que os banqueiros estão devorando, há décadas, o orçamento público, ao cobrar os juros abusivos que cobram sobre a dívida pública

Algum cínico poderá dizer que o governo não é obrigado a tomar dinheiro emprestado. Mas 

quando se sabe do “mensalão” e de quem o pagou é que vemos como funcionam as engrenagens do poder

Toda a classe política brasileira, da esquerda ora no poder à direita apeada, tornou-se patrona dos banqueiros, ou cliente, dependendo do ponto de vista. Por isso que 

banqueiros como Olavo Setúbal, de saudosa memória, defendem monstrengos como a CPMF. Afinal, a destinação principal dos impostos tem sido pagar os juros da dívida pública. 

Não é mesmo um negócio perfeito, ser banqueiro no Brasil? Viva o PROER!

Há algo de trágico na história de Portugal

Do portal do OLAVO DE CARVALHO


Bruno Garschagen entrevista Olavo de Carvalho
Revista Atlântico, janeiro de 2008

 

Nos anos 90 do fim do século passado, o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho inaugurou uma nova fase na filosofia e no debate intelectual do Brasil. Ao lançar obras filosóficas como Aristóteles em Nova Perspectiva e O Jardim das Aflições: De Epicuro à Ressurreição de César, entre outras, imprimiu no pensamento filosófico brasileiro um rumo completamente diverso da dominação doutrinária impingida pelos autoproclamados pensadores que eram (e são), apenas, professores universitários de esquerda. Na esfera pública, Olavo seguia (e segue), como já declarou, na tentativa de formar uma elite intelectual mediante aulas, cursos e divulgação de ideias pelos jornais, revistas e sites (www.olavodecarvalho.org www.midiasemmascara.org). Aos 60 anos, o filósofo mora com a família desde 2005 em Richmond, Estados Unidos, onde desenvolve os seus estudos, principalmente, sobre a mente revolucionária e a paralaxe cognitiva. 

O que é e há quanto tempo desenvolve os estudos sobre a mente revolucionária? 
É uma longa história. Esse estudo surgiu da confluência mais ou menos acidental de duas investigações independentes que eu vinha desenvolvendo desde os anos 80. A primeira diz respeito às definições de direita e esquerda. Por um lado, havia uma tendência, na mídia e nos debates públicos em geral, de minimizar ou até negar explicitamente a diferença entre direita e esquerda. Essa tendência tornou-se ainda mais forte depois da queda da URSS. Por outro lado, a esquerda assumia cada vez mais orgulhosamente sua identidade, ao mesmo tempo em que a sua influência política se tornava cada vez mais dominante. A direita, por seu lado, se encolhia numa timidez abjecta, negando sua própria existência, escondendo-se sob o rótulo de “centro” e copiando cada vez mais o vocabulário e a forma mentis da esquerda. Era claro que aí havia um problema, principalmente porque os mais obstinados negadores da diferença entre esquerda e direita eram provenientes da direita. O problema colocava-se, portanto, em dois níveis. Primeiro: o empenho de dissolver as diferenças entre dois discursos ideológicos não impedia que pelo menos uma das forças políticas correspondentes continuasse existindo historicamente como força actuante e perfeitamente identificável. Segundo: se a negação da diferença tencionava esvaziar a esquerda, diluindo a força atractiva do comunismo num vago e inofensivo “progressismo”, foi a própria direita que por meio desse artifício acabou se tornando vaga e inofensiva. Se era assim, ficava claro um desnível entre a discussão pública e as reais forças políticas subjacentes. A pergunta que surgia era: em que consistem a direita e a esquerda como forças históricas objectivas, para além de seus respectivos discursos de autodefinição ideológica? Logo, tornou-se impossível definir direita e esquerda em função de seus objectivos proclamados, que não só eram mutáveis, mas intercambiáveis. 

E o que fez para avançar na investigação? 
A ideia que me ocorreu então foi atacar o problema num nível mais profundo, buscando diferenças estruturais de percepção da realidade, das quais os sucessivos discursos historicamente registrados como de direita e esquerda pudessem desenvolver-se com toda a sua variedade interna alucinante, sem prejuízo das estruturas básicas. Se eu conseguisse descobrir essas duas estruturas permanentes, a direita e a esquerda estariam delineadas por diferenças objectivas muito além do horizonte de consciência dos indivíduos e organizações que personificavam essas correntes. Descobri várias dessas diferenças. A principal é a diferença na percepção do tempo histórico. A esquerda – toda a esquerda, sem excepção – enxerga o tempo histórico às avessas: supõe um futuro hipotético e o toma como premissa fundante da compreensão do passado. Em seguida, usa essa inversão como princípio legitimador das suas acções no presente. Como o futuro hipotético permanece sempre futuro, e por isso mesmo sempre hipotético, toda certeza alegada pelo movimento esquerdista num dado momento pode ser mudada ou invertida no momento seguinte, sem prejuízo, seja da continuidade do movimento, seja do sentimento de coerência por baixo das mais alucinantes incoerências. Somando a isso a descoberta de Jules Monnerot de que a cada geração é a esquerda quem aponta e delimita a direita, nomeando como tal aqueles que lhe resistem, a direita aparecia, portanto, como o conjunto daqueles que, por mil motivos variados, resistem à inversão da razão histórica. Podem fazê-lo, por exemplo, por ser cristãos e acreditar que o “fim da história” é uma passagem para a eternidade e não um capítulo da história profana. Mas podem fazê-lo também por ser ateus de mentalidade científica que preferem moldar as hipóteses segundo os factos e não alterar os factos conforme as hipóteses. A segunda investigação foi da “paralaxe cognitiva”.

E a paralaxe cognitiva? 
Denomino paralaxe cognitiva o deslocamento, às vezes radical, entre o eixo da construção teórica de um pensador e o eixo da sua experiência humana real, tal como ele mesmo a relata ou tal como a conhecemos por outras fontes fidedignas. Raro e excepcional na Antiguidade e na Idade Média, esse deslocamento começa a aparecer com frequência cada vez mais notável a partir do século XVI, dando a algumas das filosofias modernas a aparência cómica de gesticulações sonambúlicas totalmente alheias ao ambiente real em que se desenvolvem. Um exemplo claro é a teoria de Kant sobre a incognoscibilidade da “coisa em si”. Se não conhecemos a substância das coisas materiais, mas somente a sua aparência fenoménica, que esperança podemos ter de atingir um dia, a partir de indícios materiais, isto é, letras impressas numa folha de papel, a substância da filosofia de Immanuel Kant? Certamente o filósofo de Koenigsberg não se contentaria se apreendêssemos somente a aparência fenoménica da sua filosofia, a qual filosofia, nesse sentido, é radicalmente incompatível com o acto de escrever livros – e olhem que Kant os escreveu em profusão. Por mais coerente que seja consigo mesma, a filosofia de Kant é incoerente com a sua própria existência de obra publicada. Outro exemplo: Karl Marx diz que só o proletariado pode apreender o movimento real da história, porque as classes que o precedem vivem aprisionadas na fantasia subjectiva das suas respectivas ideologias de classe. Mas, se é assim, por que o primeiro a perceber isso e a apreender o movimento alegadamente real da história foi o próprio Karl Marx, que não era proletário, não tinha nenhuma experiência da vida proletária e até a idade madura só conhecia os proletários por meio de leituras? Ou a ideologia de classe é inerente à posição social real do sujeito, ou é de livre escolha independentemente da posição social, mas neste último caso não é ideologia de classe de maneira alguma e sim apenas ideologia pessoal projetada ex post facto sobre uma classe, também de livre escolha. Os exemplos desse tipo são tantos, mas tantos, que não espero senão recensear uma ínfima amostragem deles. Inevitavelmente, a semelhança estrutural entre a paralaxe cognitiva e a inversão do tempo tinha de se tornar clara um dia, por mais obtusa que fosse a minha cabeça.

Como conseguiu? 
Substituí, no meu estudo, os termos “esquerda” e “direita” pelos de “revolução” e “reacção”. Daí para diante, foi ficando cada vez mais evidente para mim a unidade histórica do movimento revolucionário desde as rebeliões messiânicas estudadas por Norman Cohn em The Pursuit of the Millennium. [Revolutionary messianism in medieval and Reformation Europe and its bearing on modern totalitarian movements (1957-61)] até o Fórum Social Mundial. E aí foi que se tornou também claro, mesmo para o meu cérebro cansado e obscurecido, o centro da confusão entre os termos “direita” e “esquerda” – porque muitos movimentos tidos popularmente como “de direita” operavam, de facto, na clave revolucionária e não reaccionária. De uma maneira ou de outra, esses movimentos acabavam jogando lenha na fogueira da revolução, e trabalhando, portanto, contra seus próprios ideais declarados. Captar e descrever a unidade do movimento revolucionário é desenhar claramente, perante os olhos dos homens “de direita”, a verdadeira natureza do seu inimigo permanente. É desfazer uma infinidade de confusões catastróficas, que determinaram, ao longo do tempo, outras tantas políticas suicidas. Se eu conseguir lançar nesse matagal toda a claridade que pretendo, creio que terei feito alguma coisa de útil, pelo menos para dar a Nosso Senhor Jesus Cristo um pretexto que ele possa alegar em minha defesa no Juízo Final.

Seus estudos mostram como operou a mentalidade revolucionária em Portugal? 
Para responder a essa pergunta seria preciso sondar mais cuidadosamente o antigo regime. O salazarismo foi uma estranha mistura de conservadorismo cristão com elementos extraídos do fascismo, o qual é, sem a menor sombra de dúvida, uma ideologia revolucionária. A característica das ideologias revolucionárias é ter um “projecto de sociedade”, em vez de respeitar a sociedade existente e tentar aperfeiçoá-la na medida modesta das possibilidades humanas e com a cautela que a prudência recomenda. 
Qualquer nação que se tenha infectado profundamente da mentalidade revolucionária e tenha dado aos seus valores conservadores uma formulação política revolucionária corre o risco de estar sempre à mercê de novos projectos revolucionários, pelo simples fato de que perdeu de vista a noção de “ordem espontânea”, que é a essência mesma da democracia e do conservadorismo. Que é ordem espontânea? É o conjunto de soluções aprendidas ao longo do tempo. É uma ordem espontânea porque não foi imposta por ninguém. É ordem porque tem um senso arraigado da própria integridade e rejeita instintivamente toda mudança radical. Mas é também aprendizado, isto é, absorção criativa das situações novas por um conjunto que permanece conscientemente idêntico a si mesmo ao longo dos tempos, por meio de símbolos tradicionais constantemente readaptados para abranger novos significados. Examinem bem e verão que ordem democrática é precisamente isso e nada mais. Se, ao contrário, um grupo imbuído do amor a valores tradicionais tenta deter a mudança, ele está introduzindo na ordem espontânea uma mudança tão radical quanto o grupo revolucionário que deseja virar tudo de pernas para o ar, pois o que esse alegado conservadorismo deseja é imortalizar no ar um momento estático de perfeição hipotética. Se esse momento, na imaginação dele, expressa os valores do passado, isso não vem ao caso, porque na prática política esse ideal será um “projecto de futuro” tanto quanto o ideal revolucionário. Uma sociedade só embarca no projecto revolucionário quando perdeu todo o respeito por si mesma. Um respeito que, entre outras coisas, implica o amor aos valores do passado como instrumentos de compreensão e acção no presente, não como símbolos estereotipados de uma perfeição ideal no céu das utopias.

E onde entra o salazarismo nessa história? 
Não tenho a menor dúvida de que António de Oliveira Salazar foi um homem honesto e um grande administrador. Mas o salazarismo foi infectado da mesma ambição de controlo burocrático total, que é característica do movimento revolucionário. Quatro décadas desse regime, e Portugal não tinha mais conservadores genuínos em número suficiente. Os poucos que havia fizeram um esforço heróico para dar à nação a verdadeira estabilidade democrática, mas a ânsia das soluções totais estava, por assim dizer, no ar — e, dissolvido o salazarismo, só quem podia tirar proveito dela era a esquerda. 
Não desejo dar palpites na política interna de um país que da minha parte só merece aquele amor cheio de reverência que a gente tem por um avô navegante e guerreiro. Não levem a mal essa minha análise, que é só um esboço sem pretensões. Espero um dia poder estudar mais profundamente a história de Portugal e tirar um pouco das minhas dúvidas.

Há alguma particularidade sobre o que aconteceu aqui? 
Há algo de trágico na história de Portugal, pois os filósofos escolásticos portugueses foram os primeiros a compreender a verdadeira natureza do capitalismo, séculos antes de Adam Smith, mas, quando se inaugurou a temporada de caça aos escolásticos, com o iluminismo, ela não trouxe consigo a modernização capitalista, e sim um burocratismo centralizador sufocante. Por uma triste ironia, os adversários do centralismo pombalino eram os jesuítas, eles também revolucionários, que sonhavam com uma república socialista de índios na América do Sul. Posso estar enganado, mas o drama de Portugal é o mesmo de A Montanha Mágica de Thomas Mann: um jovem bom e promissor aprisionado entre dois falsos gurus: um iluminista autoritário com discurso modernizador e um jesuíta comunista.

Você tem sido um crítico do liberalismo e, concomitantemente, um defensor do conservadorismo. Esse conservadorismo que você defende é herança do moderno modelo inglês inaugurado por Edmund Burke? 
Eu não diria só inglês, mas anglo-americano. A Inglaterra e os EUA foram os países do Ocidente que mais profundamente se impregnaram do sentimento de respeito pelas tradições, o qual no fim das contas é respeito pelo povo. É verdade que mesmo nesses dois países os planeadores alucinados de sociedades perfeitas estão tentando, e com frequência conseguindo, destruir esse sentimento. Não sei em que medida os ingleses percebem o mal revolucionário que os vem acometendo nos últimos anos, mas os americanos estão acordadíssimos. Ainda que sem uma clareza suficiente quanto à unidade histórica do movimento revolucionário, os conservadores americanos sabem mais ou menos onde está o mal. E, o que é melhor ainda, pouquíssimos entre eles se deixam levar pela tentação do que poderíamos chamar de “conservadorismo revolucionário”. Eles nunca leram o brasileiro Jackson de Figueiredo, mas se o lessem endossariam com entusiasmo esta fórmula dele: “O de que precisamos não é uma contra-revolução. É o contrário de uma revolução”.

Lembro você ter escrito que, ao dialogar com alguns liberais, ao final da conversa constata que o sujeito é conservador com ideias liberais. Qual o problema essencial do liberalismo? 
Isso nasce de um vício de linguagem. Como a mídia brasileira chama de “conservadores” os grupos de interesses sem nenhuma ideologia própria, o que é totalmente errado, a direita corrigiu um erro com outro erro, dizendo-se “liberal” em vez de conservadora. Da minha parte, uso sempre o termo “liberalismo” no seu sentido histórico de um capítulo do movimento revolucionário. Às vezes, quando critico o liberalismo nesse sentido, alguns conservadores brasileiros acham que estou falando mal deles. O liberalismo, no sentido em que uso o termo, acredita que a liberdade é um princípio fundante da política, mas a liberdade é apenas uma regra formal, que, elevada à condição de princípio, resulta no esvaziamento relativista de todos os valores, fomentando a mutação revolucionária e a extinção da própria liberdade. A diferença entre princípio substantivo e regra formal é que o primeiro pode ter sua aplicação estendida indefinidamente sem levar a contradições, ao passo que a regra formal, se aplicada além de um certo limite, acaba por se negar a si mesma. A liberdade é uma regra formal, porque ela sempre necessita de outras que a definam e não funciona fora delas. Os liberais – no sentido em que uso o termo – não entendem isso.