Quando o navio que trazia meus avós maternos atracou no porto de Santos, na primeira década do século XX, proveniente da bella Napoli, seus passageiros, quase em sua totalidade oriundos daqueles lindos lugarejos da Calábria - San Lúcido (a sua cidadezinha natal, conhecida como La Perla Del Tirreno Cosentino), Fuscaldo, Fiume Freddo, Paola, Catanzaro, Reggio Calábria e tantos outros encravados entre o mar e a Sila - a exemplo de milhares de outros imigrantes, guardavam de comum em seus corações , de um lado, a nostalgia do paese já então distante e que muitos deles jamais voltariam a ver e, de outro, a roupa do corpo e uma ou duas malas com alguns objetos que constituíam toda a sua riqueza. Tudo o mais ficara irremediavelmente para trás: as montanhas da Sila, as praias, as igrejinhas de suas cidadezinhas, muitos amigos de infância e até - e só quem nasceu e cresceu em uma família italiana sabe o que isso significa - a mamma, aquela figura de amor e zelo eternos e que, além do mais, todos os domingos preparava aqueles pratos de scchiaffituno com porpetas que só ela sabia preparar.
Ficara para trás, também – assim pensavam os que partiram - a pobreza que devastava o sul da Itália naquele tempo, tão grave a ponto de os levar a “fazer a América”, como se dizia então. Como lembrança da viagem naquele vapor tão desconfortável, apenas algumas novas amizades e aquela fita tricolor com que ainda no cais napolitano, cingiram a cintura, a exemplo dos demais passageiros, seguindo um hábito da época.
Daniel Bell, em uma obra bastante conhecida (2) , analisa as sociedades segundo os três grandes sistemas que as compõem: o sistema econômico, o sistema político e o sistema moral-cultural. Tais compartimentos possuem ritmos diferentes de evolução e seguem normas distintas, que legitimam formas de conduta diferentes e, não raro, contrastantes, sendo que as divergências e os conflitos entre esses três sistemas podem ser responsabilizados pelas várias contradições que se costumam verificar nas sociedades.
Os Problemas do Sistema Econômico
Desde a publicação, em 1936, da primeira edição da Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, de John Maynard Keynes, a quase totalidade dos economistas passou a acreditar nas chamadas políticas de “sintonia fina”, isto é, em uma pretensa capacidade dos governos de, mediante intervenções na ordem espontânea de mercado, evitar flutuações “indesejáveis” no emprego dos fatores de produção e, assim, impedir as oscilações na produção.
A solução, evidentemente, não está em reduzir a população, mas em fazer com que possam florescer as instituições necessárias para que a riqueza e a produção possam aumentar permanentemente. É crucial compreendermos, desde já, que o crescimento econômico é um processo de acumulação generalizada de capital e que uma das partes desse estoque é o capital humano, o qual, por sua vez, inclui o capital moral e o intelectual, as habilidades das mãos e do cérebro, assim como as do coração. Se as sociedades sabem como criar riqueza - e isto é sabido desde os tempos de Adam Smith - e não o fazem, então a pobreza é imoral.
Os resultados desse exaustivo trabalho são surpreendentes, para aqueles que costumam atribuir as mazelas econômicas e sociais de nosso país àquilo que denominam de “neoliberalismo”: no “ranking” dos cento e três países, de acordo com um “rating” médio variando entre zero (ausência completa de liberdade econômica) e dez (total liberdade econômica), o Brasil aparece em nonagésimo sétimo lugar, com uma média de apenas 2.8! Com menos liberdade econômica do que nós, cidadãos deste “país do futuro”, apenas os habitantes da Nicarágua (2.7), Síria (2.4), Algéria (2.1), Iran e Zaire (1.9) e Somália (perto de 0)! Este “ranking” refere-se ao período de 1993 a 1995 e, portanto, a pelo menos um ano e meio de altíssimas taxas de inflação, uma vez que o Real foi implantado em meados de 1994, o que, sem dúvida, contribuiu para a péssima classificação do Brasil. Mas, como o critério “moeda e inflação” é apenas um dentre os quatro utilizados, mesmo que ele fosse expurgado do índice, isto faria nosso “ranking” melhorar, na melhor das hipóteses, do nonagésimo sétimo para algo perto do septuagésimo lugar, o que, convenhamos, ainda nos coloca bem longe, já não diremos dos países líderes da classificação, como Hong Kong, Nova Zelândia, Singapura, Estados Unidos, Suíça, Reino Unido e Canadá (com médias entre 9 e 7.6), mas do bloco intermediário (com médias entre 6 e 5).
Um dos legados mais importantes que os denominados Founding Fathers - os fundadores da república federativa norte-americana - deixaram foi a preocupação com a possibilidade de uma maioria vir a exercer uma tirania, mediante o bloqueio dos canais de acesso ao poder por parte das minorias, na eventualidade destas, ao longo do tempo, transformarem-se em maioria (11). Hayek (12) também manifestou, por diversas vezes, a mesma preocupação, na medida em que sustentava que, sob o ponto de vista liberal, a democracia deveria ser encarada tão somente como um dos métodos de governo, que ele reconhecia ser o melhor, mas que deveria ser considerado como um simples meio para que os direitos fundamentais fossem sempre respeitados. De fato, existe uma grande diferença entre declarar-se democrata porque as maiorias têm sempre razão e defender a democracia enquanto instituição cuja finalidade precípua seja a contenção do poder.
A questão é bastante complexa, mas creio que a forma correta de analisá-la é a partir da estrutura de nossos partidos políticos, o que, sem maiores dificuldades, nos leva a observar que, apesar do pluripartidarismo existente, os partidos no Brasil não conseguem representar tendências doutrinárias claras, que se consubstanciem em programas definidos de acordo com essas tendências. Em outras palavras, não há, ainda, no nosso país, verdadeiros partidos políticos, embora existam cerca de trinta agremiações registradas como partidos. Na realidade, os partidos políticos brasileiros, que deveriam ser os centros de congregação das diversas posições doutrinárias que caracterizam o pluralismo democrático, muitas vezes não passam de meros centros autorizados a carimbar registros de candidatos aos diversos cargos legislativos e executivos que o sistema de pleitos periodicamente oferece.
- por uma inflação causada exclusivamente pelo governo. A propósito, qualquer livro elementar de Teoria Monetária rejeita veementemente aquilo ...
Paradoxalmente, chegávamos a um desfecho com o qual jamais poderíamos contar: um dia após a posse do primeiro presidente eleito pelo voto direto, depois de trinta anos, isto é, em plena euforia comemorativa do resgate final de nossa liberdade política, nossa liberdade econômica, ao arrepio do próprio Estado de Direito, nos era escamoteada, restando-nos os consolos de, primeiro, aguardar as próximas eleições e, segundo, de ainda dispor de cinqüenta mil cruzeiros, que foi a quantia mágica que nos sobrou. Afinal, caso o resultado do sorteio a respeito do valor do seqüestro - descrito posteriormente em livro, com a anuência de quem o executou - tivesse sido outro, poderia ter-nos restado ainda menos...
O caso do seqüestro de ativos é apenas um dos exemplos das deficiências embutidas em nosso sistema político. Houvesse partidos programáticos, houvesse representatividade, houvesse, enfim, mecanismos institucionais previamente elaborados para a contenção do poder, e não simplesmente voltados para um mero endeusamento da democracia, aquilo poderia ter sido evitado. (O fato de que aquilo não era tecnicamente necessário ficará assustadoramente claro na Segunda Parte deste livro).
Aprendemos, ao custo de uma demorada estagflação, que a liberdade política não é tudo e que as instituições políticas devem ser, além de garantidoras de nosso direito de eleger nossos representantes, elementos impeditivos do excesso de poder. Muito ainda precisa ser feito nesse sentido e temos a convicção de que será feito, embora lentamente, como é próprio nas democracias e, mais ainda, nas democracias incipientes como a nossa. Por exemplo, para termos uma pálida idéia do quanto ainda precisa ser feito, basta mencionarmos que a relação entre o número de medidas provisórias e o número de leis aprovadas pelo Congresso, entre janeiro de 1995 e março de 1997, atingiu o valor de quatro! É isso mesmo: quatro medidas provisórias por cada lei aprovada. Com efeito, é verdade que nossa democracia é incipiente, mas precisamos aperfeiçoá-la rapidamente.
Começa-se também a perceber em nosso país que os malefícios das restrições à liberdade econômica mais do que compensaram os inegáveis benefícios da liberdade política: tornamo-nos politicamente livres, mas economicamente prisioneiros do arbítrio das chamadas “equipes econômicas”. Isto vem ocorrendo ainda no final dos anos noventa, embora certamente sem aqueles malfadados congelamentos de preços: o Real sem dúvida foi um avanço nesse sentido, mas sua administração no dia a dia, em face da dificuldade de nosso sistema político de executar as transformações estruturais que mudem definitivamente o regime fiscal e possam consagrar definitivamente uma moeda forte, ainda revela cacoetes intervencionistas a esta altura dos acontecimentos imperdoáveis.
De qualquer forma, embora lentamente, nossa sociedade já vem ensaiando os primeiros e titubeantes passos para a construção de instituições que respaldem uma ordem espontânea. Resta-nos, contudo, entender que é preciso resgatar os valores éticos e morais fundamentais, para que o Brasil do futuro não seja reconstruído imprudentemente sobre a areia.
A Redescoberta da Ética
O desenvolvimento econômico autosustentado, escreveu o professor P.T. Bauer, da London School of Economics (16) , não depende fortemente da disponibilidade de vastos recursos naturais, pois Japão, Grã-Bretanha, Formosa e Singapura, por exemplo, não os possuem, ao passo que os países da África e da própria América, ricos em recursos naturais, permanecem mergulhados no subdesenvolvimento. Não depende, tampouco, de populações pequenas ou grandes, já que muitas nações densamente populosas, como Holanda, Coréia do Sul e Hong-Kong, de um lado, são bem sucedidas em suas atividades econômicas, ao passo que a China e a Índia, também superpopulosas, de outro lado, não possuem economias bem sucedidas. Nem decorre, muito menos, de “status” anticolonial, uma vez que diversas nações, hoje desenvolvidas, com os Estados Unidos sendo o maior exemplo, foram colônias até época recente, ou ainda são colônias. O desenvolvimento econômico depende, no dizer de Bauer, “de pessoas e das providências que tomam”, “de recursos humanos e da vontade de utilizá-los”, “de qualidades pessoais”, “de instituições sociais e morais “e “de acordos políticos”, fatores esses que - acrescentamos - quando são espontaneamente desencadeados, estimulam a germinação dos determinantes econômicos do crescimento, isto é, dos investimentos em capital físico, humano e tecnológico que aumentam a capacidade de geração de oferta das economias.
As observações - bastante pertinentes - de Bauer, são equivalentes, conforme notou Michael Novak, à afirmativa de que “o sistema moral-cultural é a principal força dinâmica por trás da ascensão tanto de um sistema político democrático quanto de um sistema econômico liberal. O sistema moral-cultural é o “sine qua non” do sistema político e do sistema econômico. Negligenciá-lo significa envenenar o organismo” (17) (negritos nossos).
Os homens não vivem apenas de pão e de circo. A imensa maioria dos seres humanos somente encontra lugar para a paz em suas consciências quando acredita que suas atividades econômicas e políticas revestem-se de significado moral. O trabalho duro, a perseverança nas dificuldades da vida, a frugalidade e o próprio sentimento da esperança só fazem sentido, enquanto possibilidade de bem-estar material (que faz parte da dignidade humana), quando encontram respaldo na força do sistema moral do qual se participa no seio da sociedade em que se vive.
Subitamente - e também, como conseqüência natural do fato de passarmos a viver, após muitos anos sob um regime fechado, em uma sociedade aberta - os brasileiros descobriram que o nível moral estava em baixa. E as sociedades correm riscos maiores de perecer pela perda da moralidade indispensável do que pelo enfraquecimento de seus sistemas político e econômico. A ética é o componente mais frágil da cadeia, eis o que queremos dizer ao leitor.
A crise ética e moral brasileira, a exemplo do que ocorreu em outros países, tem origens remotas e é proveniente de duas causas básicas: a primeira é o relativismo moral que, originado com a “morte de Deus”, decretada por Nietzsche na segunda metade do século XIX, transformou-se na grande chaga do século XX, na medida em que deu origem à “vontade de poder”, eleita como substituta dos valores judaico-cristãos anteriores, como observou magistralmente o jornalista, historiador e “scholar” Paul Johnson, em “Tempos Modernos” (18) . A segunda causa da deterioração dos valores morais é decorrente da primeira, mas merece ser destacada por suas dimensões e importância. Trata-se do fenômeno do crescimento do Estado, especialmente pelas repercussões que acarretou em termos da invasão que o sistema político passou a executar sobre o sistema econômico e que teve no keynesianismo seu pretenso respaldo “científico” e no nacionalismo sua grotesca faceta populista, em especial na América Latina.
Tanto o relativismo moral quanto o crescimento do Estado que ele desencadeou pareciam desconhecer que a capacidade destrutiva dos indivíduos, embora perversa, é insignificante diante da que o Estado, mesmo quando bem-intencionado, revelou possuir. Onde é grande o Estado, onde as instituições democráticas revelam incapacidade para conter o poder excessivo e sua concentração e onde os valores tradicionais sobre o que é bom ou mau são desdenhados - e, muitas vezes, ridicularizados - o componente de egoísmo que sempre caracterizou os seres humanos não encontra limites à sua expansão.
Este redespertar brasileiro para a importância da ética poderá dar bons frutos, pois, como vimos, os valores ético-morais, caso venham a ser revitalizados, desintoxicarão os tecidos econômicos e políticos. Voltaremos a este tema diversas vezes ao longo do livro, dada a sua importância. Por ora, desejamos esclarecer ao leitor que, seguindo a linha desenvolvida pelo economista argentino Alejandro Chafuen (19) , os termos moral e ética serão utilizados, ao longo do livro, como sinônimos. Ambas as palavras têm a mesma origem e derivam do termo costume (em latim, “mors”). Moral, enquanto ciência, significa uma filosofia dos costumes e “o ético foi-se identificando cada vez mais com o moral, chegando a significar que se ocupa dos objetos morais em todas as suas formas, a filosofia moral” (20) . Moral ou ética, para nós, será a ciência do dever ser, a ciência que trata do bem geral e das ações humanas no que diz respeito à sua bondade ou maldade.
A partir do ano de 1992, com o episódio do “impeachment” do presidente Collor e em diversos outros “escândalos” que se vão sucedendo ano após ano - e que só passaram a ser do conhecimento público quando nossa sociedade passou a ser aberta -, os brasileiros começaram a perceber a verdade da frase de Novak, na medida em que viram como o apodrecimento do sistema ético, que permaneceu oculto durante os anos em que nos afastamos da democracia, havia contaminado o sistema econômico e boa parcela do sistema político. Enquanto não perdermos definitivamente a vergonha de lutar pelos princípios morais insubstituíveis que a revolução relativista pouco a pouco sufocou e aprisionou, será impossível o resgate da dignidade nacional, nossa moeda dificilmente será definitivamente forte e a pobreza e a miséria continuarão a grassar.
Mas essa redescoberta da importância da ética é apenas o primeiro passo.
Exultavit ut Gigas
No saltério há um estranho verso em latim - “Exultavit ut gigas ad currendam viam”- cuja tradução livre é algo como: levantou-se alegre como um gigante e passou a percorrer com pressa o caminho (Sl. 18,6). É estranho porque, ao mesmo tempo que nos lembra o gigante adormecido eternamente de que nos fala o Hino Nacional, incita-nos também a ter esperança de que, finalmente, o gigante poderá deixar sua preguiça de cinco séculos de lado e ir à luta. Incita-nos, assim, a pelo menos desejar que o Brasil jogue fora os erros do passado e corra em busca de seu futuro, aquele risonho futuro em que meus avós, há quase cem anos, depositaram todas as suas esperanças.
Há pouco mais de vinte décadas, a renda total das treze colônias que mais tarde formariam os Estados Unidos da América era equivalente à das colônias fundadas por Espanha e Portugal na América do Sul. Como explicar que, já no final do século XIX, os Estados Unidos se tinham transformado na maior potência econômica mundial, enquanto alguns intelectuais brasileiros, já na porta de entrada do terceiro milênio, ainda continuam atribuindo nosso substancial atraso, entre outras “causas”, ao fato de termos sido “explorados pelo capital internacional”? Nunca é demais lembrarmo-nos de que, até 1776, as treze colônias do norte eram tão “exploradas” quanto as colônias do sul e de que, se os processos de colonização foram de fato diferentes, isto não impede que nos demos conta de que podemos romper as barreiras que nos impedem de crescer.
É que, sem dúvida, é bem mais fácil por a culpa nos outros: somos pobres porque os Estados Unidos são ricos e, portanto, nos exploraram e continuam a explorar, ou então porque fomos colonizados por portugueses, e não por outros povos... A propósito, vale ressaltar, primeiro, que Portugal, hoje, no contexto da União Européia, é uma sociedade moderna e próspera e, segundo, em defesa dos portugueses, que eles são um dos povos mais trabalhadores e mais moralmente corretos do mundo. A culpa da nossa pobreza não pode ser atribuída nem a americanos, nem a portugueses, nem a qualquer outro povo; ela é nossa, exclusivamente nossa!
Infelizmente, ainda circulam no Brasil os últimos resquícios da chamada “teoria da exploração”, de origem marxista: os países ricos exploram os pobres, os empresários exploram os trabalhadores, os banqueiros exploram o povo, os proprietários de terra exploram os sem-terra... e a esquerda brasileira explora a nossa paciência. Enquanto a “intelligentsia” tupiniquim teima em continuar seu alarido, a caravana dos investimentos geradores de empregos e de progresso segue passando sem parar, rumo às sociedades que conseguiram aglutinar, pelo menos mais do que a nossa, as condições gerais que Bauer apontou como os sustentáculos do desenvolvimento.
As “teorias da exploração” são o resultado natural do casamento da falta de conhecimento de teoria econômica que caracteriza a maioria dos intelectuais, com aquele traço do comportamento humano que, como Heródoto já observava cerca de quinhentos anos antes de Cristo, nasceu no homem desde o princípio: a inveja. Adam Smith, em seu magnífico livro “Teoria dos Sentimentos Morais” dedicou um capítulo inteiro a essa deformação moral. E os ataques de inveja - escreveu Zamora - “são os únicos em que o agressor preferiria, se pudesse, ocupar o papel de vítima” (21) . Quantos intelectuais, líderes sindicais, professores universitários, artistas e políticos que se autodenominam “progressistas” (mas que se revelam na prática quase sempre contra o progresso) não gostariam de estar no lugar dos famigerados capitalistas, dos executivos financeiros e dos empresários que são freqüentemente alvo de seus ataques...
Cremos que nossa sociedade chegou, mais por força da nova ordem liberal internacional do que por convicção doutrinária, à sua hora da verdade . Parece haver chegado finalmente o momento em que nós, cidadãos livres e conscientes, somos chamados a decidir se vamos de fato construir uma sociedade rica ou se vamos continuar a lançar nos outros as conseqüências de nossa incompetência. Por isso, precisamos refletir sobre alguns pontos importantes.
O primeiro é que devemos - se desejamos mesmo transformar o Brasil - abrir mão de toda e qualquer solução formulada por intelectuais. Uma leitura que, muito provavelmente, mostrará ao leitor o porque disso é o livro “Os Intelectuais”, de Paul Johnson (22) . Ao longo de seus treze capítulos, vão-se tornando extraordinária e assustadoramente claras as três grandes características da “intelligentsia”: o total desamor à verdade, o egocentrismo (fonte da inveja) e a pretensão de acreditar que as idéias valem mais do que as pessoas. Em nossa hora da verdade, devemos repelir a crueldade embutida em todas as ideologias, por sua suposição de que os seres humanos não apenas podem, mas devem adequar-se às idéias. O pior dos despotismos é a insensível tirania das idéias, eis a lição que nos deixa o século XX.
Um país rico deve ser construído por pessoas e pelas providências práticas que tomam, pela utilização de recursos humanos, de qualidades morais, por instituições políticas e econômicas que respeitam e incentivam a liberdade de escolha, por leis que não sejam meros comandos ou ordens, mas normas gerais de justa conduta, prospectivas, abstratas e impessoais e, portanto, aplicáveis a todos os habitantes, inclusive os que eventualmente estiverem ocupando o poder.
O segundo ponto a ser meditado é que, em função das considerações anteriores, a reconstrução do Brasil não deve ser confiada ao Estado, nem a este ou àquele partido político, nem a algum motorista iluminado que prometa, sozinho, levar o país ao progresso. Ela depende de nós, cidadãos, de nossa capacidade de descobrir instituições que garantam o funcionamento, de forma espontânea, dos três grandes sistemas que compõem a sociedade: o econômico, o político e o moral-cultural. Não cabe ao Brasil a decisão, mas aos brasileiros, porque o “Brasil” não pensa, quem pensa e age são seus cidadãos.
Procuramos, nesta Introdução, esboçar um quadro crítico da realidade do país na virada de século, um quadro que talvez o leitor julgue pessimista, mas que, na realidade, é uma crítica realista, objetiva e fria, sob a perspectiva liberal. Aliás, dizem que os otimistas, quando bem informados, transformam-se em realistas esperançosos.
Mostramos a hora da verdade que estes anos críticos nos colocam, dividindo a sociedade em três macro-sistemas e apontando as deficiências de cada um, bem como suas potencialidades. Precisamos lançar definitivamente fora o relativismo moral, perdendo de vez o receio de enfrentar o patrulhamento ideológico, que conseguiu transformar a expressão “moralismo” em autêntica ofensa e que procurou ridicularizar o exercício da autoridade, seja por parte de pais e professores, seja por parte dos governos, transformando esse exercício essencial em sinônimo de “autoritarismo”, gerando, assim, a permissividade. Já é tempo de sabermos que autoridade não é repressão e que repressão não é fascismo. Nossa sociedade ainda vive um estado que os sociólogos chamam de anomia, em que as violações de normas, pela clara ausência de sanções - e, quando estas existem, pela baixa probabilidade média de que venham a ser aplicadas - tendem a tornar-se a regra geral e não as exceções.
O Brasil é uma nação de origem cristã - o primeiro ato oficial aqui realizado foi a missa rezada por Frei Henrique Soares, de Coimbra -, que sempre valorizou a importância da família na formação do caráter moral dos seus cidadãos, de modo que negar isto, a pretexto do falso modernismo que mascara as posturas hedonistas, é renegar a própria brasilidade. Como observou Novak, “...é verdade obscura, embora importante em economia política, qua o ser é fundamentalmente familial, e só depois independente como indivíduo. Quando o ser basicamente familial vem a ser destruído de fato, a independência do indivíduo também se desintegra e do ser nada resta senão a vontade da comunidade” (23) . As práticas de sociedades totalitárias, como a Alemanha nazista, a ex-União Soviética e a ilha de Fidel, por exemplo, estão aí para mostrar a verificação universal desse princípio. Os intelectuais mentores do totalitarismo imaginaram, em todas aquelas tristes experiências, que seria possível fazer com que seres humanos, abandonando sua própria condição de homens, passassem a agir como os membros das sociedades gregárias, como as das abelhas, formigas ou cupins. O resgate do sistema moral brasileiro, que deve começar pelo estabelecimento claro do que é certo e do que é errado, à luz das tradições mais fortes de nosso povo, representa, portanto, algo muito mais profundo, de natureza inclusive espiritual, do que simplesmente colocar meia dúzia de corruptos na cadeia ou abrir CPIs para apurar escândalos, em meio a holofotes e achaques de puro sensacionalismo.
As ligações entre ética, política e economia tronam-se visíveis quando analisamos o papel do Estado na economia e serão aprofundadas no decorrer do livro, mas vale a pena convidar o leitor a refletir sobre as seguintes observações, recolhidas em uma encíclica de 1991 de João Paulo II e que retratam fielmente, sob o ponto de vista de um líder por definição descompromissado com qualquer doutrina humana, a posição de grandes liberais, desde John Locke e Adam Smith, passando por Fréderic Bastiat e Alexis de Tocqueville, a Mises e Hayek:
“A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não se pode realizar num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é, portanto, a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do próprio trabalho e, conseqüentemente, sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos e pela difusão de fontes impróprias de enriquecimento e de lucros fáceis fundados em atividades ilegais ou puramente especulativas é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica” (24) .
Estamos todos fartos de ouvir que o Brasil é o país do futuro, um futuro que parece nunca chegar. É hora de nortearmos nossas instituições políticas, econômicas e morais, de modo a que nosso amanhã comece a ser feito a partir de hoje, para que ele não se transforme, para nós, no advérbio dos vencidos. Para que sejamos bem-sucedidos, devemos buscar, emergindo da atual crise, construir instituições que favoreçam e garantam a economia de mercado, a democracia política com representatividade e a valorização do trabalho e da parcimônia, ao amparo de normas legais de conduta que sejam, de fato, justas e iguais para todos.
Na vida econômica em particular e na vida humana em geral, a primazia da moral é uma lei demonstrável e fundamental para a prosperidade, é um princípio filosófico e empírico que não pode ser violado. Quando isso ocorre, surgem os vícios morais, tão conhecidos pelos brasileiros, como a preguiça, a desonestidade, a corrupção, a coerção, a avareza e tantos outros que, como traças, corroem pouco a pouco a sociedade. “A revolução” - como afirmou o poeta Charles Peguy - “deve ser moral ou não será revolução” (25) .
Referências bibliográficas
* Josemaría Escrivá, Caminho, Quadrante, São Paulo, 7ª ed., 1989, nº 251, pág.77. Escrivá, ao formular este pensamento, tinha como objetivo chamar a atenção contra o mau hábito que constitui o adiamento dos bons propósitos.
1. Para uma excelente exposição - fartamente documentada - a respeito do fenômeno da politização dos problemas econômicos e morais, recomendo a leitura de "Tempos Modernos - o Mundo dos Anos Vinte aos Oitenta", de Paul Johnson, Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1990, bem como o livro de Michael Novak, "O Espírito do Capitalismo Democrático", Nordica, Rio de Janeiro, s/data, especialmente págs. 200 e segs.
2. Bell, Daniel, "The Cultural Contradictions of Capitalism", Basic Books, Nova York, 1976, págs. 10 e segs.
3. Novak, M., op. cit., pág.200.
4. Este foi o caso, por exemplo, dos anos do chamado "milagre brasileiro" (início dos anos setenta), em que o funcionamento relativamente satisfatório do sistema econômico e do sistema moral-cultural, malgrado o estado insatisfatório do sistema político, conseguiu garantir alguns anos de prosperidade.
5. Alguns autores sustentam que o keynesianismo prático, isto é, a geração de déficits fiscais financiados pela emissão de moeda com a finalidade de expandir o emprego e o produto (e, obviamente, vencer as eleições) é anterior ao livro de Keynes. Paul Johnson, por exemplo, sugere - e documenta fartamente com dados estatísticos - que a década de 20 nos Estados Unidos foi uma década keynesiana, caracterizada pelas políticas públicas expansionistas dos presidentes Harding, Coolidge e Hoover. Tais políticas, segundo Johnson - e não a tão propalada "insuficiência de demanda efetiva" - é que teriam paradoxalmente gerado a crise que durou do final dos anos 20 aos primeiros anos da década de 30. Ver Paul Johnson, op.cit., caps. 6 e 7.
6. Ver, por exemplo, Lucas, Robert, "Some International Evidence on Output-Inflation Tradeoffs", American Economic Review, Vol.63, nº 3, junho de 1973.
7. Mises, L. von, "The Theory of Money and Credit", Yale University Press, New Haven, 1953, publicado originalmente em 1912, em alemão, com o título "Theorie des Geldes und der Umlaufsmittel".
8. Ver, por exemplo, Hayek, F.A.,"Money, Capital & Fluctuations - Early Essays", coletânea dos primeiros ensaios de Hayek, The University of Chicago Press, Chicago, 1984.
9. Hayek, F.A., “Desemprego e Política Monetária", José Olympio/ Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1985.
10. Esta correlação negativa de curto prazo entre taxas de crescimento dos preços e taxa de desemprego é conhecida, na literatura macroecômica convencional, como Curva de Phillips.
11. Alexander Hamilton, John Jay e James Madison, "The Federalist", nº 51, Modern Library, New York, 1941, pág.339.
12. Ver, por exemplo, Hayek, F.A., "El Ideal Democrático y la Contención del Poder" in: Estudios Públicos, nº 1, Santiago, Dezembro de 1980.
13. A definição de Estado Mínimo tem sido objeto de extensa literatura. Devemos ressaltar que o "tamanho" ideal do Estado varia de acordo com cada sociedade. Por exemplo, o Estado brasileiro deve ser "maior" que o belga e menor que o chinês. Ver, por exemplo, Guy Sorman, "O Estado Mínimo", Instituto Liberal, Rio de Janeiro, 1988 e Robert Nozick, "Anarquia, Estado e Utopia", Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1991.
14. Popper, K., "La Sociedad Abierta y sus Enemigos", Paidós, Barcelona, 1982.
15. O partido que se diz defensor e representante dos trabalhadores, na realidade, tem conteúdo muito mais ideológico do que doutrinário, assim como aqueles cujas siglas contêm a palavra "liberal" têm revelado um caráter na maioria das vezes anti-liberal.
16. Bauer, P.T., "Dissent on Development", Weidenfeld and Nicolson, Londres, 1971.
17. Novak, M.,op. cit., pág. 216 e seguintes.
18. Johnson, P., op. cit., cap. 1.
19. Chafuen, A.A. "Christians for Freedom - Late Scholastic Economics", Ignatius Press, San Francisco, 1986, traduzido pelo próprio autor para o espanhol, com o título "Economia y Etica - Raíces Cristianas de la Economia de Libre Mercado", Rialp, Madri, 1991.
20. Ferrater Mora, J., "Diccionario de Filosofia", Sudamericana, Buenos Aires, 1975, tomo II, págs. 232-235 (citado por Chafuen, pág. 38).
21. Alcalá Zamora, "Pensamentos e Citações".
22. Johnson, P., "Os Intelectuais", Imago, Rio de Janeiro, 1990.
23. Novak, M., op. cit. pág. 193.
24. João Paulo II, Carta Encíclica "Centesimus Annus", Loyola, São Paulo, 1991, nº 48, pág. 65.
25. Citado por Michael Novak, "This Hemisphere of Liberty: A Philosophy of the Americas", AEI Press, Washington, 1992, pág.85.