Por Richard Weaver em sábado, 23 de setembro de 2006
Nota inicial: Richard M. Weaver (1910-1963) foi professor de inglês na Universidade de Chicago. Apesar de sua curta vida, foi um expoente do pensamento conservador americano e sua obra é extensa (basta digitar seu nome na Amazon.com para se ter uma idéia de suas obras ainda editadas). Ele é, contudo, praticamente desconhecido no Brasil. Arriscando-me a cometer alguma injustiça, afirmo nunca ter visto referência a seu nome em obras em português.
Em 1948, ele escreveu um pequeno livro de 187 páginas intitulado “Ideas Have Consequences” que até hoje é editado pela editora da Universidade de Chicago, do qual traduzo seu capítulo introdutório. O livro é um extraordinário diagnóstico da situação da queda do homem ocidental. Na contra-capa do livro, Robert Nisbet, outro grande conservador americano, afirma que “este livro profundamente profético não só iniciou a renascença do conservadorismo filosófico neste país [EUA], como também, no processo, nos forneceu um arsenal de insights sobre as doenças que acometem nossa nação e é tão atual hoje, como quando de sua primeira edição.”
Que esse livro nunca tenha sido traduzido para o português e editado no Brasil é só mais uma confirmação do que nos ensina, insistentemente, Olavo de Carvalho. É necessário que libertemos nosso país da sinecura acadêmica em que se transformou a universidade brasileira.
Este é um outro livro sobre a dissolução do Ocidente. Eu tento fazer duas coisas pouco comuns na crescente literatura sobre o assunto. Primeiro, apresento uma avaliação do declínio baseada não em analogia, mas em dedução. O ponto de partida é a suposição de que o mundo é inteligível, que o homem é livre e que as conseqüências que, agora, expiamos são o produto de uma escolha não inteligente e não de necessidade biológica ou de outra natureza qualquer. Em segundo lugar, subjaz em minha proposta – senão de solução, pelo menos de início de solução – a crença de que o homem não deve utilizar-se de uma análise científica como pretexto por sua impotência moral.
Considerando o mundo a que essas questões são endereçadas, tenho me surpreendido com a dificuldade de admissão de certos fatos iniciais. Essa dificuldade é devida, em parte, à prevalecente teoria Whig da história[1] – com a sua crença de que o ponto mais avançado no tempo representa o ponto mais elevado de desenvolvimento – que é, sem dúvida, auxiliada pelas teorias da evolução que sugerem ao desatento a existência de um tipo de passagem necessária do simples ao complexo. No entanto, o problema real se encontra numa camada mais profunda. Trata-se do espantoso problema, quando casos reais são enfrentados, de fazer os homens distinguirem entre o melhor e o pior. Têm as pessoas, atualmente, uma escala de valores suficientemente racional para avaliar esses predicados com inteligência? Há fundamento para se declarar que o homem moderno se tornou um idiota moral. São tão poucos os que se preocupam em examinar suas próprias vidas, ou conseguem suportar a censura diante da constatação de que nosso estado presente pode ser um estado de queda, que se pode perguntar se as pessoas, hoje, entendem o que significa a superioridade de um ideal. Pode-se esperar que haja uma perda da capacidade do raciocínio abstrato; mas o que dizer quando afirmações do tipo mais concreto são feitas e as pessoas não conseguem perceber diferenças ou tirar uma conclusão? Por quatro séculos, todo homem tem sido não só seu próprio sacerdote, mas também seu próprio professor de ética, e a conseqüência é uma anarquia que ameaça até o consenso mínimo de valores necessário à existência do estado político.
Certamente temos razão em dizer, de nossa época: se procuras um monumento à nossa tolice, olha para ti. Nestes dias que passam, temos visto cidades obliteradas e fés antigas atacadas. Podemos perguntar, com as palavras de Mateus, se não estamos enfrentando “a tribulação” que “será tão grande como nunca foi vista, desde o começo do mundo.”[2] Por muitos anos, temos nos movido com uma imprudente confiança de que o homem atingiu uma posição de independência, que tornou desnecessários os antigos limites. Agora, na primeira metade do século XX, no topo do progresso moderno, contemplamos surtos inigualáveis de ódio e violência; vemos nações inteiras desoladas pela guerra e transformadas em campos de concentração por seus conquistadores; descobrimos que metade da humanidade considera a outra metade criminosa. Por todo lado, ocorrem sintomas de psicose coletiva. Mais portentoso ainda é que surgem fundamentos divergentes de valores, de forma que nosso globo planetário único é escarnecido por mundos com diferentes entendimentos. Esses sinais de desintegração despertam o medo e o medo leva a esforços unilaterais desesperados de sobrevivência, que só fazem avançar o progresso.
Como Macbeth, o homem ocidental tomou uma má decisão, que se tornou a causa eficiente e final de outras más decisões. Já nos esquecemos de nosso encontro com as bruxas na charneca? Ele aconteceu no século XIV e o que as bruxas disseram ao protagonista desse drama foi que o homem poderia realizar-se mais integralmente se ele, simplesmente, abandonasse sua crença na existência dos transcendentais. Os poderes da escuridão estavam trabalhando sutilmente, como sempre, e eles expressaram essa proposição como uma, aparentemente, inofensiva forma de ataque aos universais. A derrota do realismo lógico no grande debate medieval foi o evento crucial da histórica da cultura ocidental; disso seguem aqueles atos que nos trás, agora, à moderna decadência.
Pode-se acusar essa descrição de simplificar excessivamente o processo histórico, mas tenho para mim que as políticas conscientes de homens e governos não são meras racionalizações que surgem como resultado de incontáveis forças. Elas são, ao contrário, deduções a partir de nossas mais básicas idéias sobre o destino humano, e elas têm o poder, não inteiramente desobstruído, de determinar o curso de nossa história.
Por essa razão, volto-me para Guilherme de Occam como o melhor representante de uma alteração surgida na concepção do homem sobre a realidade, naquele momento histórico. Foi Guilherme de Occam quem propôs a fatídica doutrina do nominalismo, que nega que os universais tenham uma existência real. Seu triunfo resultou em que os termos universais são meros nomes que podem servir à nossa conveniência. A questão de fundo envolve saber se existe uma fonte da verdade superior ao, e independente do, homem; e a resposta a essa questão é decisiva para qualquer visão da natureza e do destino da humanidade. O resultado prático da filosofia nominalista é banir a realidade que é percebida pelo intelecto e postular como realidade a que é percebida pelos sentidos. Com essa mudança na afirmação do que é real, toda a orientação da cultura se desviou e estamos trilhando, agora, o caminho do moderno empirismo.
É fácil deixar de enxergar a significância de uma mudança por ela apresentar um caráter abstrato e ter acontecido no passado remoto. Aqueles que não descobriram que a visão-de-mundo é a coisa mais importante em relação ao homem – quando, por exemplo, ele constrói uma cultura – devem considerar a cadeia de circunstâncias que, com perfeita lógica, seguiu-se ao nominalismo. A negação dos universais leva consigo a negação de toda experiência transcendente. A negação de toda a experiência transcendente significa inevitavelmente – apesar de se terem encontrado formas de subterfúgios – à negação da verdade. Com a negação da verdade objetiva não há como escapar do relativismo – “do homem como medida de todas as coisas”. As bruxas falaram com a habitual ambigüidade dos oráculos, quando disseram ao homem que pela escolha fácil ele poderia se realizar mais inteiramente, pois, elas estavam iniciando um percurso que isola o homem da realidade. Assim começou a “abominação da desolação” que aparece hoje como uma sensação de alienação de toda realidade fixa.
Como a alteração de uma crença tão profunda acaba por influenciar todo o arcabouço conceitual, depois de muito tempo, surgiu uma nova doutrina sobre a natureza. Enquanto anteriormente a natureza tinha sido considerada uma imitação de um modelo transcendental, constituindo uma realidade imperfeita, agora, ela era vista como contendo os princípios de sua própria constituição e comportamento. Tal revisão teve duas importantes conseqüências para indagação filosófica. Primeira, ela encorajou um estudo cuidadoso da natureza, estudo que veio a ser conhecido como ciência, na suposição de que pelos seus atos (da natureza), ela revelava sua essência. Segunda, e pelo mesmo motivo, ela pôs de lado a doutrina das formas imperfeitamente realizadas. Aristóteles reconheceu um elemento de ininteligibilidade no mundo, mas a visão da natureza como um mecanismo racional expulsou este elemento. A expulsão do elemento de ininteligibilidade na natureza foi acompanhada pelo abandono da doutrina do pecado original. Se a natureza física é a totalidade e se o homem é apenas natureza, é impossível pensar que ele sofra de um mal constitucional; seus defeitos devem ser, agora, atribuídos simplesmente a sua ignorância ou a algum tipo de privação social. Chega-se assim, por uma límpida dedução, ao corolário da bondade natural do homem.[3]
E isso não é tudo. Se a natureza é um mecanismo auto-operante e o homem um animal racional adequado a suas necessidades, a próxima coisa a fazer é elevar o racionalismo ao posto de uma filosofia. Como o homem propunha, então, não ir além do mundo, seria apropriado que ele considerasse como sua mais alta vocação o desenvolvimento de métodos de interpretação dos dados supridos pelos seus sentidos. Seguiu-se a transição para Hobbes e Locke e os racionalistas do século XVIII, que ensinaram que o homem precisava apenas alimentar a razão com as evidências da natureza. A questão sobre a constituição do mundo se tornava, a partir de agora, sem sentido, pois, formulá-la pressuporia algo anterior à natureza, na ordem da existência. Assim, não é o misterioso fato da existência do mundo que interessa ao novo homem, mas as explicações de como ele funciona. Essa é a base racional da moderna ciência, cuja sistematização dos fenômenos é, como Bacon declarou em Nova Atlântida, um meio de domínio.
Nesse momento, a religião começa a assumir uma dignidade ambígua e a questão sobre se ela vai continuar a existir num mundo de racionalismo e ciência deve ser enfrentada. Uma solução é o deísmo, que faz de Deus o resultado de uma leitura racional da natureza. Mas essa religião, como todas as que negam uma verdade anterior, foi impotente para unir os homens; ela apenas permite cada homem livre interpretar o mundo dos sentidos como lhe aprouver. Seguiram-se referências à “natureza e à natureza de Deus,” e a anomalia de uma religião “humanizada”.
O materialismo nos espreitava no horizonte, pois, ele estava implícito no que já tinha sido acordado. Assim, ele logo se tornou imperativo para explicar o homem por meio de seu ambiente, que foi o trabalho de Darwin e outros no século XIX (e ainda mais significativo sobre o grau de penetração de tais mudanças é o fato de que outros estavam chegando a explicações semelhantes, quando Darwin as publicou em 1859). Se o homem entrou no século XIX em nuvens de glória transcendental, ele estava, agora, reduzido a um nível que satisfazia aos positivistas.
Com o ser humano assim firmemente abrigado na natureza, se tornou imediatamente necessário perguntar sobre o caráter fundamental de sua motivação. Necessidade biológica, resultado da sobrevivência do mais adaptado, foi oferecida como a causa causans, depois que a importante questão a respeito da origem humana foi decidida em favor do materialismo científico.
Após ter se tornado corrente a idéia de que o homem é moldado inteiramente por pressões ambientais, é obrigatório estender a mesma teoria da casualidade às suas instituições. Os filósofos sociais do século XIX encontraram em Darwin um poderoso apoio para suas teses sobre os seres humanos sempre agirem a partir de incentivos econômicos, e foram esses filósofos que completaram a abolição da liberdade da volição humana. O grande cenário da história ficou, assim, reduzido a empreendimentos econômicos de indivíduos e classes; e prognósticos elaborados foram construídos sobre a teoria do conflito econômico e sua resolução. O homem, criado à imagem de Deus, o protagonista de um grande drama em que sua alma corre perigo, foi substituído por um animal consumidor à procura de riqueza.
Finalmente, surgia a psicologia comportamental, que negava não somente a liberdade da vontade, mas até daqueles meios de orientação que são os instintos. Por causa da natureza escandalosa dessa teoria ter ficado logo aparente, ela fracassou em ganhar adeptos em número semelhante às outras teorias; mesmo assim, ela é somente uma extensão lógica delas e deveria ser adotada pelos defensores da causação material. Essencialmente, ela é uma redução ao absurdo da linha de raciocínio que começou quando o homem deu um alegre adeus ao conceito de transcendência.
Não há termo adequado para descrever a condição a que o homem foi deixado, exceto “abismalidade”. Ele está num abismo negro e profundo e não há nada que possa tirá-lo de lá. Sua vida é prática sem teoria. À medida que os problemas sobre ele se acumulam, ele aprofunda a confusão, por enfrentá-los com políticas ad hoc. Secretamente, ele anseia pela verdade, mas se consola com o pensamento de que a vida deve ser experimental. Ele vê suas instituições se desmoronando e racionaliza com uma conversa sobre emancipação. Guerras têm de ser travadas, aparentemente com crescente freqüência; portanto ele revive velhos ideais – ideais que suas atuais suposições tornam sem significado – e, por meio da máquina do estado, os força, novamente, a fazer o serviço. Ele luta contra um paradoxo: sua total imersão na matéria o torna inadaptado para tratar os problemas da matéria.
Seu declínio pode ser representado como uma longa série de abdicações. Ele foi encontrando cada vez menos fundamento para a autoridade, ao mesmo tempo em que pensava estar se consolidando como o centro da autoridade no universo; de fato, parece haver aqui um processo dialético que tira poder do homem na proporção em que ele considera que sua independência o habilita a tal poder.
Essa estória é eloqüentemente refletida nas alterações que aconteceram na educação. O deslocamento da verdade do intelecto para os fatos da experiência aconteceu decisivamente após o encontro com as feiticeiras. Um pequeno sinal aparece, “uma nuvem menor que uma mão humana”, numa modificação que surgiu no estudo da lógica no século XIV – o século de Occam. A lógica se tornou gramatizada, passando de uma ciência que ensinava aos homens o vere loqui para uma que os ensinava o recte loqui ou de uma divisão ontológica por categorias a um estudo das significações, com o inevitável foco nos significados históricos. Aqui começa o ataque à definição: se as palavras não correspondem mais a realidades objetivas, parece não ser errado tomar certas liberdades com as palavras. Desse ponto em diante, a fé na linguagem como um meio de alcançar a verdade enfraquece, até que a nossa época, repleta de um agudo sentimento de dúvida, procura por uma solução na nova ciência da semântica.
O mesmo aconteceu com a educação. A Renascença adaptou, de modo crescente, o seu curso de forma a produzir um bem-sucedido homem do mundo, apesar de não deixá-lo sem filosofia e sem as Graças, pois, o mundo era ainda, por herança pelo menos, idealista e, portanto, próximo o bastante das concepções transcendentais para perceber os efeitos desumanizantes da especialização. No século XVII, as descobertas físicas pavimentaram o caminho para a incorporação das ciências, a despeito de que não tenha sido antes do século XIX que estas começassem a desafiar a própria existência das antigas disciplinas intelectuais. E nesse período, a mudança ganhou ímpeto, auxiliada por dois desenvolvimentos de imensa influência. O primeiro foi o patente aumento do domínio do homem sobre a natureza, que deslumbrou a todos, excluindo-se apenas os mais atentos; e o segundo foi a crescente exigência de educação popular. O último desenvolvimento poderia ter sido positivo, mas ele foi arruinado pelo insolúvel problema da autoridade numa democracia igualitária: ninguém tinha o mandato para dizer quais das múltiplas aspirações deveriam ser atendidas. Finalmente, numa abjeta capitulação à situação, numa abdicação da autoridade do conhecimento, surgiu o sistema eletivo. Seguiu-se então um carnaval de especialismo, profissionalismo e vocacionalismo, freqüentemente estimulado e protegido por estranhos instrumentos burocráticos, de tal forma que sob o honrado nome de universidade se abrigou uma extraordinária confluência de interesses – não poucos desses, anti-intelectuais até em suas pretensões. Instituições de ensino não contrabalançaram, mas contribuíram para o declínio, por perderem o interesse no Homo sapiens e desenvolverem o Homo faber.
Estudos se transformam em hábitos e é fácil ver essas mudanças refletidas no tipo dominante de líder de época para época. No século XVII o líder foi, de um lado, o monarquista e o defensor erudito da fé e, de outro, intelectuais aristocráticos do porte de John Milton e teocratas puritanos que se assentaram na Nova Inglaterra. O século seguinte assistiu a dominação dos Whigs na Inglaterra e o advento dos enciclopedistas e românticos no Continente, homens a quem não faltava preparo intelectual mas que, assiduamente, cortavam as cordas que nos uniam à realidade, na medida em que sucumbiam à ilusão de que o homem é bom por natureza. A repreensão de Frederico, o Grande, a um sentimentalista, “Ach, mein lieber Sulzer, er kennt nicht diese verdammte Rasse,” resume a diferença dos dois cenários. O período subseqüente testemunhou o surgimento do líder popular e demagogo, o típico inimigo do privilégio, que ampliou o direito do voto na Inglaterra, forjou a revolução no Continente, e nos EUA substituiu a ordem social vislumbrada pelos Pais Fundadores pelo demagogismo e pela máquina política urbana. O século XX introduziu o líder das massas, apesar de que neste ponto ocorreu uma fissura, cujo profundo significado teremos ocasião de comentar. Os novos profetas da reforma se dividem nitidamente em humanitários sentimentais e um grupo de elite de teóricos desapiedados que se orgulham de sua imunidade ao sentimentalismo. Odiando este mundo que eles não criaram, depois de sua devassidão de séculos, os modernos comunistas – revolucionários e lógicos – se movem em direção ao rigor intelectual. Nessa decisão reside a mais nítida devassidão originada na deserção do intelecto do homem renascentista e seus sucessores. Nada há de mais perturbador para o homem moderno do Ocidente que a claridade lógica com que os comunistas enfrentam todos os problemas. Quem dirá que esse sentimento não nasce de uma profunda apreensão do fato de que aqui se encontram os primeiros realistas em centenas de anos, e que não há caminho intermediário que salvará o liberalismo ocidental?
A história da passagem do homem pelo transcendentalismo religioso ou filosófico já foi contada muitas vezes e, como ela tem sido contada como uma história de progresso, é extremamente difícil hoje fazer as pessoas, em qualquer número, verem implicações contrárias. Mesmo assim, estabelecer a decadência como um fato é a tarefa mais urgente de nosso tempo, pois, até que demonstremos que o declínio cultural é um fato histórico – que pode ser confirmado – e que o homem moderno tem esbanjado a herança dos antepassados, não poderemos combater aqueles que caíram presas do otimismo histérico.
Tal é a tarefa. Seu mais sério obstáculo é que as pessoas que trilham o caminho do declínio desenvolvem uma insensibilidade que aumenta sua degradação. A perda é percebida mais claramente no início; depois que o hábito se implantou, nota-se a anômala situação da apatia se instalando à medida que a crise moral se aprofunda. Quando os primeiros e tênues alertas aparecem é que se tem as melhores chances de salvação; e isso, desconfio, explica porque os pensadores medievais ficavam extremamente agitados sobre questões que nos parecem, hoje, sem nenhuma relevância. Se se avança, as vozes de alerta se tornam inaudíveis e não é impossível atingir-se o estado em que se perde completamente a orientação moral. Então, em face da enorme brutalidade de nosso tempo, parecemos incapazes de dar as respostas apropriadas às perversões da verdade e aos atos de bestialidade. Variadas situações mostram nossa complacência em presença de contradições que negam a herança da Grécia e de uma insensibilidade ao sofrimento que nega o espírito do Cristianismo. Particularmente, desde as grandes guerras observamos essa situação. Aproximamo-nos de uma condição em que seremos amorais sem a capacidade para percebê-lo e degradados sem os meios de medir nossa queda.
Essa é a razão pela qual, quando refletimos sobre os cataclismos de nosso tempo, ficamos profundamente impressionados com os fracassos do homem frente a seus desafios. No passado, grandes calamidades exigiram, senão grandes virtudes, pelo menos posturas heróicas; mas depois dos tremendos julgamentos pronunciados contra os homens e as nações nas décadas recentes, detectamos notas de trivialidade e paródia. Uma estranha disparidade se desenvolveu entre o drama dessas ações e a conduta dos protagonistas, e temos a impressão de assistir atores que não compreendem seus papéis.
O otimismo histérico persistirá até que o mundo admita a existência da tragédia novamente, e ele não poderá admitir a existência da tragédia até que ele, de novo, distinga o bem do mal. A esperança da restauração depende da recuperação da “cerimônia da inocência,” daquela clareza de visão e conhecimento da forma que nos capacita a perceber o que é hostil e destrutivo, o que não se adequa a nossa ambição moral. O tempo da busca é agora, antes que adquiramos a despreocupação daqueles que preferem a perdição. Pois, com o passar do tempo, o movimento se torna centrífugo; regozijaremos em nosso abandono e nada nos dará um maior senso de realização do que a destruição de algum baluarte de nossa cultura.
Nessas circunstâncias, não é surpresa que, quando sugerimos às pessoas que considerem a mera possibilidade da decadência, só encontramos incredulidade e ressentimento. Devemos considerar que estamos, de fato, pedindo uma confissão de culpa e uma aceitação de uma obrigação austera; estamos fazendo exigências em nome do ideal ou do supra-pessoal, e não podemos esperar uma recepção mais cordial da que receberam, em outros tempos, os perturbadores da complacência. Ao contrário, nossa recepção será pior hoje, pois um século e meio de ascendência burguesa produziu um tipo de mentalidade altamente refratária a pensamentos perturbadores. Somado a isso vem o egoísmo do homem moderno, alimentado de muitas formas, que dificilmente possibilitará a humildade necessária à autocrítica.
Os apóstolos do modernismo começam, usualmente, sua réplica mordaz com uma lista das modernas realizações, não percebendo que, assim, eles dão testemunha de sua imersão em particulares. Devemos lembrá-los que não podemos começar a enumerar até que tenhamos definido o que se busca ou o que se tenta provar. Não será suficiente apontar as invenções e processos de nosso século, a menos que se possa mostrar que eles são mais que uma esplêndida florescência da queda. Qualquer um que queira louvar alguma realização moderna deve esperar até que possa relacioná-la aos professados objetivos de nossa civilização, tão rigorosamente quanto o escolástico relacionava um corolário à sua doutrina da natureza de Deus. Sem isso, todas as demonstrações são inúteis.
Se concordarmos, contudo, de que devemos falar de fins antes que de meios, podemos começar por algumas questões perfeitamente triviais a respeito da condição do homem moderno. Comecemos, em primeiro lugar, por perguntar se ele sabe mais ou é, no geral, mais sábio que seus predecessores.
Essa é uma grave consideração e se a alegação moderna do maior saber é correta, nossa crítica desmorona, pois dificilmente pode-se imaginar que um povo cujo conhecimento tenha aumentado ao longo dos séculos, venha a escolher um curso nocivo.
Naturalmente, tudo depende do que queremos dizer por conhecimento. Apoio-me aqui na proposição clássica de que não há conhecimento no nível da sensação, que, portanto, o conhecimento é conhecimento de universais e o que quer que conheçamos, nos habilita a predizer. O processo de aprendizagem envolve interpretação e quanto menos particulares exigimos para chegar a nossas generalizações, mais aptos estudantes seremos na escola da sabedoria.
Toda a tendência do moderno pensamento – pode-se dizer, todo o seu impulso moral – é de manter o indivíduo ocupado com intermináveis induções. Desde o tempo de Bacon, o mundo tem se afastado, e não se aproximado, dos primeiros princípios, de tal forma que, em nível verbal, vemos o “fato” substituindo a “verdade”, e em nível filosófico, testemunhamos o ataque às idéias abstratas e ao questionamento especulativo. A suposição oculta do empirismo é que a experiência nos dirá o que estamos experimentando. Na arena popular, pode-se dizer, a partir de certas colunas jornalísticas e de certos programas de rádio, que o homem médio se imbuiu dessa noção e imagina que uma cuidadosa aquisição de particulares o transformará num homem de conhecimento. Com essa patética confiança, ele recita suas crenças! Foi dito a ele que conhecimento é poder e que conhecimento se constitui de um grande número de pequenas coisas.
Dessa forma, o deslocamento do questionamento especulativo para a investigação da experiência tem deixado o homem moderno tão encharcado de multiplicidades que ele não consegue mais vislumbrar seu caminho. Entendemos, assim, o dictum de Goethe que diz que só podemos dizer que sabemos mais, na medida em que sabemos pouco. Se nosso contemporâneo tem uma profissão, ele será capaz de descrever alguma parte ínfima do mundo com minuciosa fidelidade, mas lhe faltará ainda a compreensão. Não pode haver verdade num programa de ciências isoladas, e o pensamento de nosso especialista será invalidado assim que relações ab extra são introduzidas.
O mundo do conhecimento “moderno” é como o universo de Eddington, que se expande por difusão até que se aproxima do ponto de nulidade.
O que os defensores da presente civilização querem dizer quando afirmam que o homem moderno é mais instruído que seus antepassados é que ele é alfabetizado em grandes números. A alfabetização pode ser demonstrada; mesmo assim, pode-se questionar se houve, em alguma época, panacéia tão decepcionante, e somos compelidos, depois de cem anos de experiência, a ecoar a observação amarga de Nietzsche: “Todo aquele que aprende a ler, arruína, a longo prazo, não somente a escrita, mas também o pensamento.” Não é o que o indivíduo consegue ler; é o que ele realmente lê – e o que ele pode, por todos os meios imagináveis, aprender com o que lê –, que determina a questão deste nobre experimento. Desenvolvemos a técnica de aquisição; quão confortáveis podemos estar com a forma de as pessoas empregarem essa técnica? Numa sociedade onde a expressão é livre e a popularidade é recompensada, elas lêem principalmente o que as perverte, e estão continuamente expostas à manipulação pelos controladores das máquinas de imprimir. Pode-se duvidar que uma pessoa, em três, consiga extrair o que se possa considerar conhecimento de suas leituras livremente escolhidas. O impressionante número de fatos a que o homem moderno tem, hoje, acesso serve apenas para afastá-lo dos primeiros princípios, de tal forma que sua orientação se torna periférica. E pairando sobre tudo, como um lembrete dessa tolice, está a tragédia da Alemanha moderna, uma nação totalmente alfabetizada.
Aqueles que são baconianos e preferem sapatos à filosofia, responderão que esse é um argumento ocioso, pois a verdadeira glória da moderna civilização é que o homem aperfeiçoou seu legado a tal ponto que agora ele pode dele se beneficiar. E é provável se encontrarem estatísticas mostrando que o homem médio atual, em países que não foram devastados pela guerra, tenha mais coisas a consumir que seus antepassados. Sobre isso, contudo, há dois comentários importantes a fazer.
O primeiro é que como o homem moderno ainda não definiu sua forma de vida, ele deu o primeiro de uma séria interminável de passos quando entrou na luta por uma vida “adequada”. Uma das mais estranhas disparidades da história é a encontrada entre o sentimento de abundância das sociedades mais antigas e simples e o sentimento de escassez das sociedades atuais, ostensivamente ricas. Charles Péguy referiu-se ao sentimento de um “vagaroso estrangulamento econômico” do homem moderno, o sentimento de nunca ter o suficiente para as exigências que seu padrão de vida o impõe. Padrões de consumo que ele não pode manter, e que ele não precisa manter, surgem virtualmente disfarçados de obrigações. Como a abundância da vida simples é substituída pela escassez da vida complexa, parece que, de alguma forma inexplicável, idealizamos a prosperidade até que, para a maioria, ela fosse apenas uma ficção. Certamente os baconianos ainda não podem declarar vitória até que fique provado que a substituição da desambição pela cobiça e das exigências estáveis das necessidades pela espiral crescente dos desejos, leva a uma condição de maior felicidade.
Suponha, contudo, que ignoremos esse sentimento de frustração e voltemos nossa atenção para o fato de que, em comparação, o homem moderno possua mais bens. Essa mesma circunstância instala um conflito, pois é uma lei permanente da natureza humana o fato de que quanto mais o homem se delicia com o que tem, menos se dispõe a suportar a disciplina do trabalho árduo – isso equivale a dizer, menos desejoso está de produzir aquilo que será depois consumido. O trabalho deixa de ter uma função na vida; torna-se algo que é relutantemente trocado por aquela competência ou por aquela superfluidade a que todos têm “direito”. Uma sociedade mimada dessa forma pode ser comparada com o alcoólatra: quanto mais ele se embebeda, menos capaz ele se torna de trabalhar e de adquirir os meios para manter seu hábito. Um alto nível de vida, pela sua própria tentação à luxúria, incapacita quem o possui para o trabalho necessário a mantê-lo, fato que tem sido observado em incontáveis épocas nas histórias de indivíduos e nações.
Mas, deixemos de lado todas as considerações particulares desse tipo e perguntemos se o homem moderno, por razões aparentes ou obscuras, se sente crescentemente feliz. Evitemos concepções superficiais sobre esse estado e nos voltemos para algo fundamental. Considero aqui na definição de Aristóteles: “sentimento de vitalidade consciente”. O homem moderno se sente bem com a vida, ele a contempla como um homem forte aguarda uma competição?
Primeiro, precisa-se levar em conta a profunda ansiedade psíquica, a extraordinária permanência da neurose, que torna único o nosso tempo. O homem moderno típico tem o olhar de uma presa. Ele sente que perdemos o pulso da realidade. Isso, por sua vez, produz uma desintegração, e a desintegração torna impossível aquele tipo de predição razoável por meio da qual os homens, em eras de sanidade, são capazes de ordenar suas vidas. E o medo disso advindo, liberta a grande força desorganizadora do ódio, de forma que estados são ameaçados e guerras se sucedem. Poucos homens hoje confiam que a guerra não exterminará a herança de seus filhos; e, mesmo que esse mal seja contido, o indivíduo não se confortará, pois ele sabe que a tecnologia Juggernaut[4] pode distorcer e destruir o padrão de vida que ele construiu para si mesmo. Uma criatura destinada a olhar para trás e para frente descobre que a primeira ação se tornou fora de moda e a segunda, impossível.
Além disso, há outra privação. O homem é constantemente assegurado de que ele tem, hoje, mais poder do em qualquer tempo anterior, mas sua experiência diária é de incapacidade. Olhe para ele na confusão de uma grande cidade. Se ele trabalha em uma empresa, há grandes chances de que ele tenha sacrificado todo tipo de independência por aquela dúbia independência dita financeira. As organizações corporativas modernas fazem da independência uma coisa muito cara; de fato, elas podem fazer da integridade um luxo proibitivo para o homem comum, como mostrou Stuart Chase.[5] Esse homem não é só um provável escravo em seu trabalho diário, mas ele está também cercado, tolhido e confinado de incontáveis formas, muitas delas sendo apenas instrumentos que tornam fisicamente possível o viver na multidão. Pelo fato de que essas são privações do que é legítimo, o resultado é a frustração, daí o olhar, no rosto daqueles cujas almas ainda não se apequenaram, de penúria e infelicidade.
Essas são algumas questões que devem ser apresentadas aos defensores do progresso. Objetar-se-á certamente que a decadência da época atual é uma das permanentes ilusões da humanidade; será dito que cada geração sente em relação à próxima o mesmo que os pais sentem em relação aos filhos, não acreditando que eles sejam capazes de tratar com o imenso mundo. Em reposta devemos afirmar que, dadas as condições descritas, cada geração sucessiva mostra, realmente, um declínio no sentido de que ela dá um passo a mais na direção do abismo. Quando uma mudança está acontecendo, cada geração para ela contribuirá, e o fato de que algumas culturas passaram de um alto grau de organização para a dissolução pode ser demonstrado tão objetivamente quanto qualquer outro fato na história. Pense apenas na Grécia, em Veneza, na Alemanha. A asserção de que mudanças de geração a geração são ilusórias e de que existem apenas ciclos de reprodução biológica é outra forma de negação de padrões e, em última análise, de negação do conhecimento, que é a fonte de nossa degradação.
A civilização tem sido um fenômeno intermitente; a essa verdade temos nos permitido ficar cegos pela insolência do sucesso material. Muitas sociedades mostraram, em seu entardecer, um brilho pirotécnico e uma capacidade para refinadas sensações, muito além de qualquer coisa vista em seus dias de vigor. Que tais coisas existam e ainda trabalhem contra o caráter mesmo da escolha, que é a âncora da sociedade, é a grande lição a ser aprendida.
Em última análise, nosso problema é como recuperar a integridade intelectual que permitirá ao homem perceber a ordem do bem.
[1] Whig theory of history – teoria histórica associada a estudiosos da era Vitoriana e Eduardiana, tais como Henry Maine e Thomas Macaulay. O traço fundamental dessa teoria é a consideração de que a história humana vai da selvageria ao progresso, da ignorância à paz, história de prosperidade e ciência. (N. do T.)
[2] Mat 24, 21 (N. do T.)
[3] Ver Os inimigos do conservadorismo segundo Edmund Burke. (N. do T)
[4] Do Hindu, JagannAth, literalmente, senhor do mundo, título de Vishnu. O termo é usado aqui como sinônimo de força inexorável que atropela tudo em seu caminho. (N. do T.)
[5] Ver “The luxury of integrity”(O luxo da integridade), de Stuart Chase
Nota inicial: Richard M. Weaver (1910-1963) foi professor de inglês na Universidade de Chicago. Apesar de sua curta vida, foi um expoente do pensamento conservador americano e sua obra é extensa (basta digitar seu nome na Amazon.com para se ter uma idéia de suas obras ainda editadas). Ele é, contudo, praticamente desconhecido no Brasil. Arriscando-me a cometer alguma injustiça, afirmo nunca ter visto referência a seu nome em obras em português.
Em 1948, ele escreveu um pequeno livro de 187 páginas intitulado “Ideas Have Consequences” que até hoje é editado pela editora da Universidade de Chicago, do qual traduzo seu capítulo introdutório. O livro é um extraordinário diagnóstico da situação da queda do homem ocidental. Na contra-capa do livro, Robert Nisbet, outro grande conservador americano, afirma que “este livro profundamente profético não só iniciou a renascença do conservadorismo filosófico neste país [EUA], como também, no processo, nos forneceu um arsenal de insights sobre as doenças que acometem nossa nação e é tão atual hoje, como quando de sua primeira edição.”
Que esse livro nunca tenha sido traduzido para o português e editado no Brasil é só mais uma confirmação do que nos ensina, insistentemente, Olavo de Carvalho. É necessário que libertemos nosso país da sinecura acadêmica em que se transformou a universidade brasileira.
***
Este é um outro livro sobre a dissolução do Ocidente. Eu tento fazer duas coisas pouco comuns na crescente literatura sobre o assunto. Primeiro, apresento uma avaliação do declínio baseada não em analogia, mas em dedução. O ponto de partida é a suposição de que o mundo é inteligível, que o homem é livre e que as conseqüências que, agora, expiamos são o produto de uma escolha não inteligente e não de necessidade biológica ou de outra natureza qualquer. Em segundo lugar, subjaz em minha proposta – senão de solução, pelo menos de início de solução – a crença de que o homem não deve utilizar-se de uma análise científica como pretexto por sua impotência moral.
Considerando o mundo a que essas questões são endereçadas, tenho me surpreendido com a dificuldade de admissão de certos fatos iniciais. Essa dificuldade é devida, em parte, à prevalecente teoria Whig da história[1] – com a sua crença de que o ponto mais avançado no tempo representa o ponto mais elevado de desenvolvimento – que é, sem dúvida, auxiliada pelas teorias da evolução que sugerem ao desatento a existência de um tipo de passagem necessária do simples ao complexo. No entanto, o problema real se encontra numa camada mais profunda. Trata-se do espantoso problema, quando casos reais são enfrentados, de fazer os homens distinguirem entre o melhor e o pior. Têm as pessoas, atualmente, uma escala de valores suficientemente racional para avaliar esses predicados com inteligência? Há fundamento para se declarar que o homem moderno se tornou um idiota moral. São tão poucos os que se preocupam em examinar suas próprias vidas, ou conseguem suportar a censura diante da constatação de que nosso estado presente pode ser um estado de queda, que se pode perguntar se as pessoas, hoje, entendem o que significa a superioridade de um ideal. Pode-se esperar que haja uma perda da capacidade do raciocínio abstrato; mas o que dizer quando afirmações do tipo mais concreto são feitas e as pessoas não conseguem perceber diferenças ou tirar uma conclusão? Por quatro séculos, todo homem tem sido não só seu próprio sacerdote, mas também seu próprio professor de ética, e a conseqüência é uma anarquia que ameaça até o consenso mínimo de valores necessário à existência do estado político.
Certamente temos razão em dizer, de nossa época: se procuras um monumento à nossa tolice, olha para ti. Nestes dias que passam, temos visto cidades obliteradas e fés antigas atacadas. Podemos perguntar, com as palavras de Mateus, se não estamos enfrentando “a tribulação” que “será tão grande como nunca foi vista, desde o começo do mundo.”[2] Por muitos anos, temos nos movido com uma imprudente confiança de que o homem atingiu uma posição de independência, que tornou desnecessários os antigos limites. Agora, na primeira metade do século XX, no topo do progresso moderno, contemplamos surtos inigualáveis de ódio e violência; vemos nações inteiras desoladas pela guerra e transformadas em campos de concentração por seus conquistadores; descobrimos que metade da humanidade considera a outra metade criminosa. Por todo lado, ocorrem sintomas de psicose coletiva. Mais portentoso ainda é que surgem fundamentos divergentes de valores, de forma que nosso globo planetário único é escarnecido por mundos com diferentes entendimentos. Esses sinais de desintegração despertam o medo e o medo leva a esforços unilaterais desesperados de sobrevivência, que só fazem avançar o progresso.
Como Macbeth, o homem ocidental tomou uma má decisão, que se tornou a causa eficiente e final de outras más decisões. Já nos esquecemos de nosso encontro com as bruxas na charneca? Ele aconteceu no século XIV e o que as bruxas disseram ao protagonista desse drama foi que o homem poderia realizar-se mais integralmente se ele, simplesmente, abandonasse sua crença na existência dos transcendentais. Os poderes da escuridão estavam trabalhando sutilmente, como sempre, e eles expressaram essa proposição como uma, aparentemente, inofensiva forma de ataque aos universais. A derrota do realismo lógico no grande debate medieval foi o evento crucial da histórica da cultura ocidental; disso seguem aqueles atos que nos trás, agora, à moderna decadência.
Pode-se acusar essa descrição de simplificar excessivamente o processo histórico, mas tenho para mim que as políticas conscientes de homens e governos não são meras racionalizações que surgem como resultado de incontáveis forças. Elas são, ao contrário, deduções a partir de nossas mais básicas idéias sobre o destino humano, e elas têm o poder, não inteiramente desobstruído, de determinar o curso de nossa história.
Por essa razão, volto-me para Guilherme de Occam como o melhor representante de uma alteração surgida na concepção do homem sobre a realidade, naquele momento histórico. Foi Guilherme de Occam quem propôs a fatídica doutrina do nominalismo, que nega que os universais tenham uma existência real. Seu triunfo resultou em que os termos universais são meros nomes que podem servir à nossa conveniência. A questão de fundo envolve saber se existe uma fonte da verdade superior ao, e independente do, homem; e a resposta a essa questão é decisiva para qualquer visão da natureza e do destino da humanidade. O resultado prático da filosofia nominalista é banir a realidade que é percebida pelo intelecto e postular como realidade a que é percebida pelos sentidos. Com essa mudança na afirmação do que é real, toda a orientação da cultura se desviou e estamos trilhando, agora, o caminho do moderno empirismo.
É fácil deixar de enxergar a significância de uma mudança por ela apresentar um caráter abstrato e ter acontecido no passado remoto. Aqueles que não descobriram que a visão-de-mundo é a coisa mais importante em relação ao homem – quando, por exemplo, ele constrói uma cultura – devem considerar a cadeia de circunstâncias que, com perfeita lógica, seguiu-se ao nominalismo. A negação dos universais leva consigo a negação de toda experiência transcendente. A negação de toda a experiência transcendente significa inevitavelmente – apesar de se terem encontrado formas de subterfúgios – à negação da verdade. Com a negação da verdade objetiva não há como escapar do relativismo – “do homem como medida de todas as coisas”. As bruxas falaram com a habitual ambigüidade dos oráculos, quando disseram ao homem que pela escolha fácil ele poderia se realizar mais inteiramente, pois, elas estavam iniciando um percurso que isola o homem da realidade. Assim começou a “abominação da desolação” que aparece hoje como uma sensação de alienação de toda realidade fixa.
Como a alteração de uma crença tão profunda acaba por influenciar todo o arcabouço conceitual, depois de muito tempo, surgiu uma nova doutrina sobre a natureza. Enquanto anteriormente a natureza tinha sido considerada uma imitação de um modelo transcendental, constituindo uma realidade imperfeita, agora, ela era vista como contendo os princípios de sua própria constituição e comportamento. Tal revisão teve duas importantes conseqüências para indagação filosófica. Primeira, ela encorajou um estudo cuidadoso da natureza, estudo que veio a ser conhecido como ciência, na suposição de que pelos seus atos (da natureza), ela revelava sua essência. Segunda, e pelo mesmo motivo, ela pôs de lado a doutrina das formas imperfeitamente realizadas. Aristóteles reconheceu um elemento de ininteligibilidade no mundo, mas a visão da natureza como um mecanismo racional expulsou este elemento. A expulsão do elemento de ininteligibilidade na natureza foi acompanhada pelo abandono da doutrina do pecado original. Se a natureza física é a totalidade e se o homem é apenas natureza, é impossível pensar que ele sofra de um mal constitucional; seus defeitos devem ser, agora, atribuídos simplesmente a sua ignorância ou a algum tipo de privação social. Chega-se assim, por uma límpida dedução, ao corolário da bondade natural do homem.[3]
E isso não é tudo. Se a natureza é um mecanismo auto-operante e o homem um animal racional adequado a suas necessidades, a próxima coisa a fazer é elevar o racionalismo ao posto de uma filosofia. Como o homem propunha, então, não ir além do mundo, seria apropriado que ele considerasse como sua mais alta vocação o desenvolvimento de métodos de interpretação dos dados supridos pelos seus sentidos. Seguiu-se a transição para Hobbes e Locke e os racionalistas do século XVIII, que ensinaram que o homem precisava apenas alimentar a razão com as evidências da natureza. A questão sobre a constituição do mundo se tornava, a partir de agora, sem sentido, pois, formulá-la pressuporia algo anterior à natureza, na ordem da existência. Assim, não é o misterioso fato da existência do mundo que interessa ao novo homem, mas as explicações de como ele funciona. Essa é a base racional da moderna ciência, cuja sistematização dos fenômenos é, como Bacon declarou em Nova Atlântida, um meio de domínio.
Nesse momento, a religião começa a assumir uma dignidade ambígua e a questão sobre se ela vai continuar a existir num mundo de racionalismo e ciência deve ser enfrentada. Uma solução é o deísmo, que faz de Deus o resultado de uma leitura racional da natureza. Mas essa religião, como todas as que negam uma verdade anterior, foi impotente para unir os homens; ela apenas permite cada homem livre interpretar o mundo dos sentidos como lhe aprouver. Seguiram-se referências à “natureza e à natureza de Deus,” e a anomalia de uma religião “humanizada”.
O materialismo nos espreitava no horizonte, pois, ele estava implícito no que já tinha sido acordado. Assim, ele logo se tornou imperativo para explicar o homem por meio de seu ambiente, que foi o trabalho de Darwin e outros no século XIX (e ainda mais significativo sobre o grau de penetração de tais mudanças é o fato de que outros estavam chegando a explicações semelhantes, quando Darwin as publicou em 1859). Se o homem entrou no século XIX em nuvens de glória transcendental, ele estava, agora, reduzido a um nível que satisfazia aos positivistas.
Com o ser humano assim firmemente abrigado na natureza, se tornou imediatamente necessário perguntar sobre o caráter fundamental de sua motivação. Necessidade biológica, resultado da sobrevivência do mais adaptado, foi oferecida como a causa causans, depois que a importante questão a respeito da origem humana foi decidida em favor do materialismo científico.
Após ter se tornado corrente a idéia de que o homem é moldado inteiramente por pressões ambientais, é obrigatório estender a mesma teoria da casualidade às suas instituições. Os filósofos sociais do século XIX encontraram em Darwin um poderoso apoio para suas teses sobre os seres humanos sempre agirem a partir de incentivos econômicos, e foram esses filósofos que completaram a abolição da liberdade da volição humana. O grande cenário da história ficou, assim, reduzido a empreendimentos econômicos de indivíduos e classes; e prognósticos elaborados foram construídos sobre a teoria do conflito econômico e sua resolução. O homem, criado à imagem de Deus, o protagonista de um grande drama em que sua alma corre perigo, foi substituído por um animal consumidor à procura de riqueza.
Finalmente, surgia a psicologia comportamental, que negava não somente a liberdade da vontade, mas até daqueles meios de orientação que são os instintos. Por causa da natureza escandalosa dessa teoria ter ficado logo aparente, ela fracassou em ganhar adeptos em número semelhante às outras teorias; mesmo assim, ela é somente uma extensão lógica delas e deveria ser adotada pelos defensores da causação material. Essencialmente, ela é uma redução ao absurdo da linha de raciocínio que começou quando o homem deu um alegre adeus ao conceito de transcendência.
Não há termo adequado para descrever a condição a que o homem foi deixado, exceto “abismalidade”. Ele está num abismo negro e profundo e não há nada que possa tirá-lo de lá. Sua vida é prática sem teoria. À medida que os problemas sobre ele se acumulam, ele aprofunda a confusão, por enfrentá-los com políticas ad hoc. Secretamente, ele anseia pela verdade, mas se consola com o pensamento de que a vida deve ser experimental. Ele vê suas instituições se desmoronando e racionaliza com uma conversa sobre emancipação. Guerras têm de ser travadas, aparentemente com crescente freqüência; portanto ele revive velhos ideais – ideais que suas atuais suposições tornam sem significado – e, por meio da máquina do estado, os força, novamente, a fazer o serviço. Ele luta contra um paradoxo: sua total imersão na matéria o torna inadaptado para tratar os problemas da matéria.
Seu declínio pode ser representado como uma longa série de abdicações. Ele foi encontrando cada vez menos fundamento para a autoridade, ao mesmo tempo em que pensava estar se consolidando como o centro da autoridade no universo; de fato, parece haver aqui um processo dialético que tira poder do homem na proporção em que ele considera que sua independência o habilita a tal poder.
Essa estória é eloqüentemente refletida nas alterações que aconteceram na educação. O deslocamento da verdade do intelecto para os fatos da experiência aconteceu decisivamente após o encontro com as feiticeiras. Um pequeno sinal aparece, “uma nuvem menor que uma mão humana”, numa modificação que surgiu no estudo da lógica no século XIV – o século de Occam. A lógica se tornou gramatizada, passando de uma ciência que ensinava aos homens o vere loqui para uma que os ensinava o recte loqui ou de uma divisão ontológica por categorias a um estudo das significações, com o inevitável foco nos significados históricos. Aqui começa o ataque à definição: se as palavras não correspondem mais a realidades objetivas, parece não ser errado tomar certas liberdades com as palavras. Desse ponto em diante, a fé na linguagem como um meio de alcançar a verdade enfraquece, até que a nossa época, repleta de um agudo sentimento de dúvida, procura por uma solução na nova ciência da semântica.
O mesmo aconteceu com a educação. A Renascença adaptou, de modo crescente, o seu curso de forma a produzir um bem-sucedido homem do mundo, apesar de não deixá-lo sem filosofia e sem as Graças, pois, o mundo era ainda, por herança pelo menos, idealista e, portanto, próximo o bastante das concepções transcendentais para perceber os efeitos desumanizantes da especialização. No século XVII, as descobertas físicas pavimentaram o caminho para a incorporação das ciências, a despeito de que não tenha sido antes do século XIX que estas começassem a desafiar a própria existência das antigas disciplinas intelectuais. E nesse período, a mudança ganhou ímpeto, auxiliada por dois desenvolvimentos de imensa influência. O primeiro foi o patente aumento do domínio do homem sobre a natureza, que deslumbrou a todos, excluindo-se apenas os mais atentos; e o segundo foi a crescente exigência de educação popular. O último desenvolvimento poderia ter sido positivo, mas ele foi arruinado pelo insolúvel problema da autoridade numa democracia igualitária: ninguém tinha o mandato para dizer quais das múltiplas aspirações deveriam ser atendidas. Finalmente, numa abjeta capitulação à situação, numa abdicação da autoridade do conhecimento, surgiu o sistema eletivo. Seguiu-se então um carnaval de especialismo, profissionalismo e vocacionalismo, freqüentemente estimulado e protegido por estranhos instrumentos burocráticos, de tal forma que sob o honrado nome de universidade se abrigou uma extraordinária confluência de interesses – não poucos desses, anti-intelectuais até em suas pretensões. Instituições de ensino não contrabalançaram, mas contribuíram para o declínio, por perderem o interesse no Homo sapiens e desenvolverem o Homo faber.
Estudos se transformam em hábitos e é fácil ver essas mudanças refletidas no tipo dominante de líder de época para época. No século XVII o líder foi, de um lado, o monarquista e o defensor erudito da fé e, de outro, intelectuais aristocráticos do porte de John Milton e teocratas puritanos que se assentaram na Nova Inglaterra. O século seguinte assistiu a dominação dos Whigs na Inglaterra e o advento dos enciclopedistas e românticos no Continente, homens a quem não faltava preparo intelectual mas que, assiduamente, cortavam as cordas que nos uniam à realidade, na medida em que sucumbiam à ilusão de que o homem é bom por natureza. A repreensão de Frederico, o Grande, a um sentimentalista, “Ach, mein lieber Sulzer, er kennt nicht diese verdammte Rasse,” resume a diferença dos dois cenários. O período subseqüente testemunhou o surgimento do líder popular e demagogo, o típico inimigo do privilégio, que ampliou o direito do voto na Inglaterra, forjou a revolução no Continente, e nos EUA substituiu a ordem social vislumbrada pelos Pais Fundadores pelo demagogismo e pela máquina política urbana. O século XX introduziu o líder das massas, apesar de que neste ponto ocorreu uma fissura, cujo profundo significado teremos ocasião de comentar. Os novos profetas da reforma se dividem nitidamente em humanitários sentimentais e um grupo de elite de teóricos desapiedados que se orgulham de sua imunidade ao sentimentalismo. Odiando este mundo que eles não criaram, depois de sua devassidão de séculos, os modernos comunistas – revolucionários e lógicos – se movem em direção ao rigor intelectual. Nessa decisão reside a mais nítida devassidão originada na deserção do intelecto do homem renascentista e seus sucessores. Nada há de mais perturbador para o homem moderno do Ocidente que a claridade lógica com que os comunistas enfrentam todos os problemas. Quem dirá que esse sentimento não nasce de uma profunda apreensão do fato de que aqui se encontram os primeiros realistas em centenas de anos, e que não há caminho intermediário que salvará o liberalismo ocidental?
A história da passagem do homem pelo transcendentalismo religioso ou filosófico já foi contada muitas vezes e, como ela tem sido contada como uma história de progresso, é extremamente difícil hoje fazer as pessoas, em qualquer número, verem implicações contrárias. Mesmo assim, estabelecer a decadência como um fato é a tarefa mais urgente de nosso tempo, pois, até que demonstremos que o declínio cultural é um fato histórico – que pode ser confirmado – e que o homem moderno tem esbanjado a herança dos antepassados, não poderemos combater aqueles que caíram presas do otimismo histérico.
Tal é a tarefa. Seu mais sério obstáculo é que as pessoas que trilham o caminho do declínio desenvolvem uma insensibilidade que aumenta sua degradação. A perda é percebida mais claramente no início; depois que o hábito se implantou, nota-se a anômala situação da apatia se instalando à medida que a crise moral se aprofunda. Quando os primeiros e tênues alertas aparecem é que se tem as melhores chances de salvação; e isso, desconfio, explica porque os pensadores medievais ficavam extremamente agitados sobre questões que nos parecem, hoje, sem nenhuma relevância. Se se avança, as vozes de alerta se tornam inaudíveis e não é impossível atingir-se o estado em que se perde completamente a orientação moral. Então, em face da enorme brutalidade de nosso tempo, parecemos incapazes de dar as respostas apropriadas às perversões da verdade e aos atos de bestialidade. Variadas situações mostram nossa complacência em presença de contradições que negam a herança da Grécia e de uma insensibilidade ao sofrimento que nega o espírito do Cristianismo. Particularmente, desde as grandes guerras observamos essa situação. Aproximamo-nos de uma condição em que seremos amorais sem a capacidade para percebê-lo e degradados sem os meios de medir nossa queda.
Essa é a razão pela qual, quando refletimos sobre os cataclismos de nosso tempo, ficamos profundamente impressionados com os fracassos do homem frente a seus desafios. No passado, grandes calamidades exigiram, senão grandes virtudes, pelo menos posturas heróicas; mas depois dos tremendos julgamentos pronunciados contra os homens e as nações nas décadas recentes, detectamos notas de trivialidade e paródia. Uma estranha disparidade se desenvolveu entre o drama dessas ações e a conduta dos protagonistas, e temos a impressão de assistir atores que não compreendem seus papéis.
O otimismo histérico persistirá até que o mundo admita a existência da tragédia novamente, e ele não poderá admitir a existência da tragédia até que ele, de novo, distinga o bem do mal. A esperança da restauração depende da recuperação da “cerimônia da inocência,” daquela clareza de visão e conhecimento da forma que nos capacita a perceber o que é hostil e destrutivo, o que não se adequa a nossa ambição moral. O tempo da busca é agora, antes que adquiramos a despreocupação daqueles que preferem a perdição. Pois, com o passar do tempo, o movimento se torna centrífugo; regozijaremos em nosso abandono e nada nos dará um maior senso de realização do que a destruição de algum baluarte de nossa cultura.
Nessas circunstâncias, não é surpresa que, quando sugerimos às pessoas que considerem a mera possibilidade da decadência, só encontramos incredulidade e ressentimento. Devemos considerar que estamos, de fato, pedindo uma confissão de culpa e uma aceitação de uma obrigação austera; estamos fazendo exigências em nome do ideal ou do supra-pessoal, e não podemos esperar uma recepção mais cordial da que receberam, em outros tempos, os perturbadores da complacência. Ao contrário, nossa recepção será pior hoje, pois um século e meio de ascendência burguesa produziu um tipo de mentalidade altamente refratária a pensamentos perturbadores. Somado a isso vem o egoísmo do homem moderno, alimentado de muitas formas, que dificilmente possibilitará a humildade necessária à autocrítica.
Os apóstolos do modernismo começam, usualmente, sua réplica mordaz com uma lista das modernas realizações, não percebendo que, assim, eles dão testemunha de sua imersão em particulares. Devemos lembrá-los que não podemos começar a enumerar até que tenhamos definido o que se busca ou o que se tenta provar. Não será suficiente apontar as invenções e processos de nosso século, a menos que se possa mostrar que eles são mais que uma esplêndida florescência da queda. Qualquer um que queira louvar alguma realização moderna deve esperar até que possa relacioná-la aos professados objetivos de nossa civilização, tão rigorosamente quanto o escolástico relacionava um corolário à sua doutrina da natureza de Deus. Sem isso, todas as demonstrações são inúteis.
Se concordarmos, contudo, de que devemos falar de fins antes que de meios, podemos começar por algumas questões perfeitamente triviais a respeito da condição do homem moderno. Comecemos, em primeiro lugar, por perguntar se ele sabe mais ou é, no geral, mais sábio que seus predecessores.
Essa é uma grave consideração e se a alegação moderna do maior saber é correta, nossa crítica desmorona, pois dificilmente pode-se imaginar que um povo cujo conhecimento tenha aumentado ao longo dos séculos, venha a escolher um curso nocivo.
Naturalmente, tudo depende do que queremos dizer por conhecimento. Apoio-me aqui na proposição clássica de que não há conhecimento no nível da sensação, que, portanto, o conhecimento é conhecimento de universais e o que quer que conheçamos, nos habilita a predizer. O processo de aprendizagem envolve interpretação e quanto menos particulares exigimos para chegar a nossas generalizações, mais aptos estudantes seremos na escola da sabedoria.
Toda a tendência do moderno pensamento – pode-se dizer, todo o seu impulso moral – é de manter o indivíduo ocupado com intermináveis induções. Desde o tempo de Bacon, o mundo tem se afastado, e não se aproximado, dos primeiros princípios, de tal forma que, em nível verbal, vemos o “fato” substituindo a “verdade”, e em nível filosófico, testemunhamos o ataque às idéias abstratas e ao questionamento especulativo. A suposição oculta do empirismo é que a experiência nos dirá o que estamos experimentando. Na arena popular, pode-se dizer, a partir de certas colunas jornalísticas e de certos programas de rádio, que o homem médio se imbuiu dessa noção e imagina que uma cuidadosa aquisição de particulares o transformará num homem de conhecimento. Com essa patética confiança, ele recita suas crenças! Foi dito a ele que conhecimento é poder e que conhecimento se constitui de um grande número de pequenas coisas.
Dessa forma, o deslocamento do questionamento especulativo para a investigação da experiência tem deixado o homem moderno tão encharcado de multiplicidades que ele não consegue mais vislumbrar seu caminho. Entendemos, assim, o dictum de Goethe que diz que só podemos dizer que sabemos mais, na medida em que sabemos pouco. Se nosso contemporâneo tem uma profissão, ele será capaz de descrever alguma parte ínfima do mundo com minuciosa fidelidade, mas lhe faltará ainda a compreensão. Não pode haver verdade num programa de ciências isoladas, e o pensamento de nosso especialista será invalidado assim que relações ab extra são introduzidas.
O mundo do conhecimento “moderno” é como o universo de Eddington, que se expande por difusão até que se aproxima do ponto de nulidade.
O que os defensores da presente civilização querem dizer quando afirmam que o homem moderno é mais instruído que seus antepassados é que ele é alfabetizado em grandes números. A alfabetização pode ser demonstrada; mesmo assim, pode-se questionar se houve, em alguma época, panacéia tão decepcionante, e somos compelidos, depois de cem anos de experiência, a ecoar a observação amarga de Nietzsche: “Todo aquele que aprende a ler, arruína, a longo prazo, não somente a escrita, mas também o pensamento.” Não é o que o indivíduo consegue ler; é o que ele realmente lê – e o que ele pode, por todos os meios imagináveis, aprender com o que lê –, que determina a questão deste nobre experimento. Desenvolvemos a técnica de aquisição; quão confortáveis podemos estar com a forma de as pessoas empregarem essa técnica? Numa sociedade onde a expressão é livre e a popularidade é recompensada, elas lêem principalmente o que as perverte, e estão continuamente expostas à manipulação pelos controladores das máquinas de imprimir. Pode-se duvidar que uma pessoa, em três, consiga extrair o que se possa considerar conhecimento de suas leituras livremente escolhidas. O impressionante número de fatos a que o homem moderno tem, hoje, acesso serve apenas para afastá-lo dos primeiros princípios, de tal forma que sua orientação se torna periférica. E pairando sobre tudo, como um lembrete dessa tolice, está a tragédia da Alemanha moderna, uma nação totalmente alfabetizada.
Aqueles que são baconianos e preferem sapatos à filosofia, responderão que esse é um argumento ocioso, pois a verdadeira glória da moderna civilização é que o homem aperfeiçoou seu legado a tal ponto que agora ele pode dele se beneficiar. E é provável se encontrarem estatísticas mostrando que o homem médio atual, em países que não foram devastados pela guerra, tenha mais coisas a consumir que seus antepassados. Sobre isso, contudo, há dois comentários importantes a fazer.
O primeiro é que como o homem moderno ainda não definiu sua forma de vida, ele deu o primeiro de uma séria interminável de passos quando entrou na luta por uma vida “adequada”. Uma das mais estranhas disparidades da história é a encontrada entre o sentimento de abundância das sociedades mais antigas e simples e o sentimento de escassez das sociedades atuais, ostensivamente ricas. Charles Péguy referiu-se ao sentimento de um “vagaroso estrangulamento econômico” do homem moderno, o sentimento de nunca ter o suficiente para as exigências que seu padrão de vida o impõe. Padrões de consumo que ele não pode manter, e que ele não precisa manter, surgem virtualmente disfarçados de obrigações. Como a abundância da vida simples é substituída pela escassez da vida complexa, parece que, de alguma forma inexplicável, idealizamos a prosperidade até que, para a maioria, ela fosse apenas uma ficção. Certamente os baconianos ainda não podem declarar vitória até que fique provado que a substituição da desambição pela cobiça e das exigências estáveis das necessidades pela espiral crescente dos desejos, leva a uma condição de maior felicidade.
Suponha, contudo, que ignoremos esse sentimento de frustração e voltemos nossa atenção para o fato de que, em comparação, o homem moderno possua mais bens. Essa mesma circunstância instala um conflito, pois é uma lei permanente da natureza humana o fato de que quanto mais o homem se delicia com o que tem, menos se dispõe a suportar a disciplina do trabalho árduo – isso equivale a dizer, menos desejoso está de produzir aquilo que será depois consumido. O trabalho deixa de ter uma função na vida; torna-se algo que é relutantemente trocado por aquela competência ou por aquela superfluidade a que todos têm “direito”. Uma sociedade mimada dessa forma pode ser comparada com o alcoólatra: quanto mais ele se embebeda, menos capaz ele se torna de trabalhar e de adquirir os meios para manter seu hábito. Um alto nível de vida, pela sua própria tentação à luxúria, incapacita quem o possui para o trabalho necessário a mantê-lo, fato que tem sido observado em incontáveis épocas nas histórias de indivíduos e nações.
Mas, deixemos de lado todas as considerações particulares desse tipo e perguntemos se o homem moderno, por razões aparentes ou obscuras, se sente crescentemente feliz. Evitemos concepções superficiais sobre esse estado e nos voltemos para algo fundamental. Considero aqui na definição de Aristóteles: “sentimento de vitalidade consciente”. O homem moderno se sente bem com a vida, ele a contempla como um homem forte aguarda uma competição?
Primeiro, precisa-se levar em conta a profunda ansiedade psíquica, a extraordinária permanência da neurose, que torna único o nosso tempo. O homem moderno típico tem o olhar de uma presa. Ele sente que perdemos o pulso da realidade. Isso, por sua vez, produz uma desintegração, e a desintegração torna impossível aquele tipo de predição razoável por meio da qual os homens, em eras de sanidade, são capazes de ordenar suas vidas. E o medo disso advindo, liberta a grande força desorganizadora do ódio, de forma que estados são ameaçados e guerras se sucedem. Poucos homens hoje confiam que a guerra não exterminará a herança de seus filhos; e, mesmo que esse mal seja contido, o indivíduo não se confortará, pois ele sabe que a tecnologia Juggernaut[4] pode distorcer e destruir o padrão de vida que ele construiu para si mesmo. Uma criatura destinada a olhar para trás e para frente descobre que a primeira ação se tornou fora de moda e a segunda, impossível.
Além disso, há outra privação. O homem é constantemente assegurado de que ele tem, hoje, mais poder do em qualquer tempo anterior, mas sua experiência diária é de incapacidade. Olhe para ele na confusão de uma grande cidade. Se ele trabalha em uma empresa, há grandes chances de que ele tenha sacrificado todo tipo de independência por aquela dúbia independência dita financeira. As organizações corporativas modernas fazem da independência uma coisa muito cara; de fato, elas podem fazer da integridade um luxo proibitivo para o homem comum, como mostrou Stuart Chase.[5] Esse homem não é só um provável escravo em seu trabalho diário, mas ele está também cercado, tolhido e confinado de incontáveis formas, muitas delas sendo apenas instrumentos que tornam fisicamente possível o viver na multidão. Pelo fato de que essas são privações do que é legítimo, o resultado é a frustração, daí o olhar, no rosto daqueles cujas almas ainda não se apequenaram, de penúria e infelicidade.
Essas são algumas questões que devem ser apresentadas aos defensores do progresso. Objetar-se-á certamente que a decadência da época atual é uma das permanentes ilusões da humanidade; será dito que cada geração sente em relação à próxima o mesmo que os pais sentem em relação aos filhos, não acreditando que eles sejam capazes de tratar com o imenso mundo. Em reposta devemos afirmar que, dadas as condições descritas, cada geração sucessiva mostra, realmente, um declínio no sentido de que ela dá um passo a mais na direção do abismo. Quando uma mudança está acontecendo, cada geração para ela contribuirá, e o fato de que algumas culturas passaram de um alto grau de organização para a dissolução pode ser demonstrado tão objetivamente quanto qualquer outro fato na história. Pense apenas na Grécia, em Veneza, na Alemanha. A asserção de que mudanças de geração a geração são ilusórias e de que existem apenas ciclos de reprodução biológica é outra forma de negação de padrões e, em última análise, de negação do conhecimento, que é a fonte de nossa degradação.
A civilização tem sido um fenômeno intermitente; a essa verdade temos nos permitido ficar cegos pela insolência do sucesso material. Muitas sociedades mostraram, em seu entardecer, um brilho pirotécnico e uma capacidade para refinadas sensações, muito além de qualquer coisa vista em seus dias de vigor. Que tais coisas existam e ainda trabalhem contra o caráter mesmo da escolha, que é a âncora da sociedade, é a grande lição a ser aprendida.
Em última análise, nosso problema é como recuperar a integridade intelectual que permitirá ao homem perceber a ordem do bem.
[1] Whig theory of history – teoria histórica associada a estudiosos da era Vitoriana e Eduardiana, tais como Henry Maine e Thomas Macaulay. O traço fundamental dessa teoria é a consideração de que a história humana vai da selvageria ao progresso, da ignorância à paz, história de prosperidade e ciência. (N. do T.)
[2] Mat 24, 21 (N. do T.)
[3] Ver Os inimigos do conservadorismo segundo Edmund Burke. (N. do T)
[4] Do Hindu, JagannAth, literalmente, senhor do mundo, título de Vishnu. O termo é usado aqui como sinônimo de força inexorável que atropela tudo em seu caminho. (N. do T.)
[5] Ver “The luxury of integrity”(O luxo da integridade), de Stuart Chase
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