Por Olavo de Carvalho em 05 de maio de 2008
Em seu livro America and the World Revolution (Oxford University Press 1962), transcrição de conferências pronunciadas na Universidade da Pennsylvania na primavera de 1961 (tradução brasileira pela Zahar, 1963), Arnold Toynbee escreveu:
“Se queremos evitar o suicídio em massa, precisamos ter o nosso Estado mundial rapidamente, e isto provavelmente significa que precisaremos instaurá-lo numa forma não democrática, para começar.”
Não era uma profecia, era uma proposta. Ou melhor, era a reafirmação de uma proposta que já vinha sendo trabalhada nos altos escalões do establishment anglo-americano pelo menos desde 1928, quando Herbert George Wells publicou a primeira versão popular do plano, sob o título altamente sugestivo The Open Conspiracy. Alguns historiadores fazem o projeto remontar a finais do século XIX e apontam sua presença já entre as causas da I Guerra Mundial, mas nós não precisamos ir tão longe. Os melhores estudos sobre a vida e obra de Wells (W. Warren Wagar, H. G. Wells and the World State , Yale University Press, 1961; Michael Foot, The History of Mr. Wells , Washington DC, Counterpoint, 1995) não deixam dúvidas quanto ao papel desempenhado pelo autor de A Guerra dos Mundos na transformação de uma idéia geral num projeto político viável. Tal como Wells, Toynbee não foi apenas um intelectual, mas um ativista, colaborador íntimo do governo britânico e dos círculos globalistas. Sua obra monumental A Study of History (1939-1961) fornece a visão unificada do desenvolvimento histórico mundial, indispensável à preparação do terreno para o advento do governo mundial.
O estado mais recente de implementação dos planos traçados por esses visionários pode ser avaliado pelos seguintes parágrafos publicados no Taipei Times de 21 de fevereiro de 2006 (v. State sovereignty must be altered in globalized era) , aos quais nenhum comentarista político brasileiro prestou muita atenção embora seu autor fosse nada menos que Richard Haas, presidente do CFR, Council on Foreign Relations , o mais poderoso think-tank dos EUA e praticamente uma ante-sala da Presidência americana:
“Na era da globalização… os Estados têm de estar preparados para ceder algumas parcelas da sua soberania aos órgãos mundiais... Isso já está acontecendo no comércio...
“Alguns governos estão preparados para desistir de elementos de soberania para enfrentar a ameaça da mudança global do clima. Por um desses acordos, o protocolo de Kyoto, que vigora até 2012, os signatários concordam em eliminar certas emissões específicas. O que é preciso agora é uma ampliação do acordo, pela qual um número maior de governos, incluindo o dos EUA, da China e da Índia, aceitem limites às emissões e adotem padrões comuns por reconhecer que seria pior se nenhum país o fizesse.
“A globalização, portanto, implica não somente que a soberania está se tornando mais fraca na realidade, mas que ela deve mesmo se tornar mais fraca... A soberania já não é um refúgio.”
Observações:
1. O apelo sucessivo aos exemplos do comércio e da “mudança global do clima” mostra que o plano do Estado mundial tanto pode se legitimar como resposta unificada a problemas de escala internacional, quanto pode espalhar ele próprio uma onda alarmista em torno de problemas inexistentes para se legitimar por meios postiços e fraudulentos. Em 2006 o slogan “aquecimento global” ainda podia parecer um aviso de amigo. Decorridos dois anos, não só milhares de cientistas contestam abertamente esse dogma, mas até crianças de escola estão aptas a desbancar a lenda imposta ao mundo pela campanha bilionária em que brilha como supremo garoto-propaganda o ex-vice-presidente americano Al Gore (v. “Al Gore's global warming debunked – by kids!”).
2. Os procedimentos usados para impor as reformas globalizantes contornam as vias democráticas normais por meio de decisões tomadas em discretas comissões tecno-científicas e administrativas cuja atividade o público mal pode compreender (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/030524globo.htm ). A rapidez mesma das mudanças torna impossível ao cidadão comum perceber o sentido dos acontecimentos. A “opinião pública”, que em geral já não passa mesmo de um conjunto de impressões vagas sem grande conexão com a realidade, torna-se então um mero instrumento para a implantação de mutações que ela própria não pode nem entender nem influenciar. O programa de Toynbee surge aí realizado da maneira mais clara: o Estado mundial não suprime a democracia, mas a engole. Ela continua existindo, mas como órgão de um corpo superior que a abrange e controla sem que ela tenha disso a menor idéia.
3. Se outros fatos que tenho citado em meus artigos não o comprovassem abundantemente, o caso do Protocolo de Kyoto basta para mostrar uma coisa óbvia que muitos dos nossos nacionalistas relutam em entender: que nem os centros de comando do poder globalista se encontram no governo americano, nem os interesses do Estado global se identificam no mais mínimo que seja com os do bom e velho “imperialismo ianque”. Da Califórnia à Nova Inglaterra, da Flórida ao Oregon, ninguém ignora que curvar-se à ampliação do Protocolo de Kyoto é destruir na base a economia americana, reduzindo os EUA à condição de potência de segunda classe. Nem escapa à atenção geral o fato de que outros projetos globalistas propugnados pelo CFR, como o Tratado da Lei do Mar ou a dissolução das Fronteiras com o México e o Canadá, completariam essa destruição e fariam da nação americana um capítulo encerrado da História. Curiosamente, o mais lúcido intelectual de esquerda no mundo, Antonio Negri, já explicou e repetiu mil vezes que “Império” e “Estados Unidos” não são a mesma coisa, que o Império global em formação é supranacional não somente nos objetivos mas na sua própria constituição interna (não que Negri tenha descoberto pioneiramente alguma coisa: com pequenas diferenças, o essencial da sua concepção do Império, publicada em 2000 pela Harvard University Press sob o título Empire , já estava todo no meu livro O Jardim das Aflições , de 1996). Mas o fato de que nem mesmo a palavra de um esquerdista ilustre baste para desfazer a confusão de globalismo e americanismo já mostra que muito do nacionalismo brasileiro é antes uma forma de atavismo doentio do que um patriotismo inteligente. A linguagem cotidiana da política reflete isso: embora o único Império que existe no mundo seja aquele a que se refere Negri, no Brasil usa-se o termo “Império” como sinônimo de “Estados Unidos”, seguindo nisso a retórica comunista de Fidel Castro (v. o artigo dele “Nuestro espiritu de sarificio y el chantaje del Imperio”, de 25 de abril). Com isso, o grande e verdadeiro Império, do qual a esquerda latino-americana é um dos principais instrumentos, fica a salvo da hostilidade pública, voltada contra uma nação em particular, a qual por ironia – mas não por coincidência – é justamente aquela que maiores obstáculos oferece às pretensões imperiais.
4. O esquema globalista apoiado pelo CFR não é o único que existe. Há um globalismo russo-chinês, consolidado no Pacto de Solidariedade de Shangai (v. http://www.olavodecarvalho.org/semana/060130dc.htm ), que atua principalmente por duas vias: o financiamento ao terrorismo e o domínio de nações inteiras por intermédio da mais formidável máquina de corrupção que já existiu no mundo. E há o globalismo islâmico, que se expande através da imigração usada como arma de guerra cultural, numa eficientíssima estratégia de ocupação por dentro. As relações entre esses três esquemas de dominação são extremamente complexas e sutis. O Pacto de Shangai, por exemplo, apresenta-se como reação de esquerda ao “globalismo imperialista”, mas na verdade não se opõe a ele de maneira alguma, e sim apenas aos EUA, ajudando portanto o globalismo a minar a resistência americana (o cacoete lingüístico brasileiro acima mencionado é amostra local desse fenômeno). O esquema islâmico e o russo-chinês podem, até certo ponto, ser vistos como concorrentes entre si, mas aí também uma rede de atenuações e ambigüidades torna proibitiva toda simplificação esquemática.
5. Nenhum país pode “enfrentar” o globalismo avassalador, mas cada um tem a obrigação de se integrar nele da maneira mais proveitosa para o seu povo, sem nada ceder dos seus interesses vitais. Para isso, no entanto, é preciso uma elite intelectual altamente preparada, capaz de orientar-se nos meandros da mais vasta e complexa mutação histórica de todos os tempos. No Brasil essa elite não existe de maneira alguma, e a presunção de que as nossas instituições de ensino “superior” possam prepará-la é tão ridícula que nem merece discussão. Nos cursos que não foram reduzidos à condição de escolinhas de militantes, predomina o praticismo econômico mais rasteiro ou então o formalismo acadêmico que só sabe raciocinar em termos de instituições e doutrinas, sem ir jamais às questões fundamentais. Que eu saiba, o único brasileiro que está preocupado em formar essa elite sou eu mesmo, mas, como os senhores não ignoram, só posso trabalhar em escala miúda, proporcional aos meus recursos, isto é, à falta de recursos. O Brasil parece destinado a atravessar esta grande e perigosa época sem compreender para onde vai nem saber quem o leva.
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