Por Ipojuca Pontes em 06 de maio de 2008
Resumo: Ao invés de criar um “novo homem”, velha pretensão totalitária, o sistema comunista gerou um ser desfibrado, coisificado, tangido pelo temor e a autocensura – em suma, um sub-homem.
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A revolução comunista, em vez do “novo homem”, criou o sub-homem.
A London Paperback divulga o lançamento da 2ª edição, na Europa, do novo livro do historiador inglês Orlando Figes, “The Whisperers” (0s Sussurros), sobre os intermináveis horrores da Era Stalinista. Figes tem formado, ao lado de Paul Johnson, o duo de especialistas voltados para a reconstituição e análise da funesta experiência comunista na Rússia Soviética. Seu relato “A People’s tragedy – the russian revolution 1881-1924” (A Tragédia de um povo – A Revolução Russa 1881-1824 - Editora Record, Rio, 1996) – se inscreve, pelo rigor da pesquisa cuidadosamente estruturada, como leitura obrigatória para todos aqueles que desejam saber como a serpente expeliu o ovo e formou o tentacular monstro comunista.
Com acesso direto aos arquivos de Moscou, ou pelo menos parte deles, Figes, na transição deste século, se transferiu para a capital russa e entrevistou um sem-número de sobreviventes do stalinismo. Houve resistência, alguns depoentes, em pânico, tentaram se esquivar de qualquer conversa com o historiador pensando que ele não passava de um agente da KGB. No entanto, ainda que temerosos, eles contaram como, há mais de meio século, funcionava a vida privada do homem comum sob a repressão do Estado soviético.
Uma vida, de resto, levada aos “sussurros” por causa do vizinho que, por qualquer indício de “desigualdade”, denunciava ao agente do Partido Comunista mais próximo (“comissário do povo”) o que se passava por trás das paredes dos apartamentos comunais soviéticos, onde fermentavam, ao mesmo tempo, a carência, a dor, a inveja, o medo e a delação. O simples ato de comer uma batata a mais, dentro de um modelo social baseado no princípio da igualdade na pobreza, poderia levar o indivíduo e sua família ao degredo e à desgraça.
São centenas de relatos escabrosos, em que as vítimas do sistema repressivo, em meio à violência e a miséria moral, perderam por completo o auto-respeito, os parâmetros e o próprio sentido da existência; pessoas tomadas pelo conformismo e transformadas em peças amorfas destinadas ao trabalho escravo e à obediência cega. Ninguém ousava – e aí de quem! - levantar a cabeça ou mesmo esboçar o desejo de se manifestar politicamente. Coisa em tudo similar ao que nos descreve outro escritor inglês, George Orwell, no seu aterrorizante “1984”. Eis o fato incontestável: ao invés de criar um “novo homem”, velha pretensão totalitária, o sistema comunista gerou um ser desfibrado, coisificado, tangido pelo temor e a autocensura – em suma, um sub-homem.
Os adeptos da seita e os espíritos acadêmicos integrantes do movimento comunista, a partir do XX Congresso do PC, em 1956, adotaram como estratégia o sofisma de afirmar que o stalinismo representou apenas um “desvirtuamento” da rota teorizada por Karl Marx e materializada por Lenin. “Tudo não passou de um equivoco histórico”, proclamou certa vez o revisionista caboclo Salomão Malina, último Secretário-Geral do PCB. Papo cínico e canalha. Pois é da essência mesma do credo coletivista nulificar o indivíduo em função da verdade única que se cristaliza na propriedade estatal dos meios de produção. Stalinista ou não, o sistema se consolida em definitivo na subordinação da sociedade à burocracia estatal, controlada pelo Partido. Assim, as formas de pensar, liberdade, cultura, ensino, relações políticas, sociais, etc., se efetuam no socialismo tão somente sob a “guarda do Estado” e, dentro dele, disfarçada ou abertamente, só podem ou terão condições de existir os que atuam para reafirmá-lo. (Qualquer semelhança com o que se desenvolve, sorrateiramente, no Brasil da Era Lula não é mera coincidência).
Com notável sentido do fato histórico, Figes dá especial relevo aos depoimentos de pessoas que, de algum modo, sobreviveram à época do Grande Terror stalinista. Nela, foram aniquiladas milhões de pessoas, entre as quais milhares de militantes e figuras centrais da revolução russa, tais como os “camaradas” Kirov, Bukharin, Zinoviev e Kamenev. Stalin não brincava em serviço. Como todo bom comunista, só tinha um objetivo: manter o poder. Por isso, ao menor sinal de desconfiança, instituía julgamentos farsescos nos quais os suspeitos se declaravam culpados de conspirações inexistentes e de cumplicidades (impossíveis) com os inimigos do regime. O próprio Lev Trotsky, o homem da “revolução permanente”, antecipou-se e fugiu das garras do “Guia Universal dos Povos”, em 1929, mas não conseguiu se livrar da picareta mortal de um dos seus agentes, na cidade de Coyacán, México, em 1940.
As vilanias do stalinismo e do próprio comunismo são inescrutáveis. No epílogo de seu livro, um êxito de vendas, Figes nos dá conta de que a sombra do Grande Terror da Era Stalin se projeta de forma nítida na Rússia de Putin, o ex-dirigente da KGB. Prevalecem nela ainda, segundo o historiador, o conformismo e o eterno temor diante do arbítrio estatal. O cidadão comum, por uma espécie de perversão moral herdada do passado, não ousa contestar as ameaças das instituições burocráticas e da imensa máquina de segurança do Estado, mantida e até ampliada nos alvores do Putinismo.
Para nós, na aparente distância, o fenômeno descrito em “The Whisperers” é inteiramente explicável. Na Rússia atual o governo simplesmente amplia as garras do Estado, passando por cima da fragilidade da sociedade civil liberal e isolando, no processo, a ação do indivíduo consciente como contrapeso ao poder centralizador do Estado forte. Por que digo isso?
Bem, os senhores sabem, tenho o Brasil diante de mim.
O autor é cineasta, jornalista, escritor e ex-Secretário Nacional da Cultura.
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