OLAVO DE CARVALHO
Diário do Comércio, 3 de agosto de 2012
Dizem que o Brasil é um país sem memória, mas isso não é verdade: o Brasil é um país com falsa memória. Esquecer o passado é uma coisa, reinventá-lo conforme as ilusões do dia é bem outra. É desta doença que a memória do Brasil padece, e ela é bem mais grave que a amnésia pura e simples.
Não, não estou falando da manipulação esquerdista do passado. Ela existe, mas é só um aspecto parcial da patologia geral a que me refiro. Esta infecta pessoas de todas as orientações ideológicas possíveis e algumas sem orientação ideológica nenhuma. Ela é um simples resultado da ojeriza nacional à busca do conhecimento, portanto à reflexão madura sobre o que quer que seja.
Querem um exemplo de falsa visão do passado que não foi produzida por nenhum esquerdista? O país está cheio de almas conservadoras e cristãs que ainda idealizam o regime militar, como se ele fosse uma utopia retroativa, a encarnação extinta das suas esperanças.
É verdade que os militares não roubavam, que eles fizeram o país crescer à base de quinze por cento ao ano, que eles construíram praticamente todas as obras de infra-estrutura em que a economia nacional se apóia até hoje, que eles acabaram com as guerrilhas, que no tempo deles a criminalidade era ínfima e que os índices de aprovação do governo permaneceram bem altos pelo menos até a metade da gestão Figueiredo. Que tudo isso são méritos, ninguém com alguma idoneidade pode negar.
Mas também é verdade que, tendo subido ao poder com a ajuda de uma rede enorme de instituições, partidos e grupos conservadores e religiosos, a primeira coisa que eles fizeram foi desmanchar essa rede, cortar as cabeças dos principais líderes políticos conservadores e privar-se de qualquer suporte ideológico na sociedade civil.
Fizeram isso porque não eram conservadores de maneira alguma, eram indivíduos formados na tradição positivista – forte nos meios militares até hoje – que abomina o livre movimento das idéias na sociedade e acredita que o melhor governo possível é uma ditadura tecnocrática. Pois foi uma ditadura de militares e tecnocratas iluminados o que impuseram ao país por vinte anos, rebaixando a política à rotina servil de carimbar sem discussão os decretos governamentais. Suas mais altas realizações foram triunfos típicos de uma tecnocracia, seus crimes e fracassos o efeito incontornável do desejo de tudo controlar, de tudo reduzir a um problema tecnoburocrático onde o debate político é reduzido a miudezas administrativas e a onde a iniciativa espontânea da sociedade não conta para absolutamente nada.
O positivismo nada tem de conservador: é, com o marxismo, uma das duas alas principais do movimento revolucionário. Compartilha com sua irmã inimiga a crença de que cabe à elite governante remoldar a sociedade de alto a baixo, falando em nome do povo para que o povo não possa falar em seu próprio nome. Tal foi, acima de qualquer possibilidade de dúvida, a inspiração que acabou por predominar nos governos militares. Que dessem ao movimento de 1964 o nome de “Revolução” não foi mera coincidência, nem usurpação publicitária de um símbolo esquerdista: foi um sinal de que, por baixo da meta nominal de derrubar um governo corrupto e devolver rapidamente o país à normalidade, tinham planos de longo prazo, totalmente ignorados da massa que os aplaudia e até de alguns dos líderes civis de cuja popularidade se serviram para depois jogá-los fora com a maior sem-cerimônia.
Todas as organizações civis conservadoras e de direita que criaram a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, a maior manifestação popular da história brasileira até então, foram depois extintas, marginalizadas ou reduzidas a um papel decorativo. Como bons tecnocratas, os militares acreditavam piamente que podiam governar sem sustentação cultural e ideológica na sociedade civil, substituindo-a com vantagem pela pura propaganda oficial. Esta, por sua vez, era esvaziada de toda substância ideológica, reduzida ao triunfalismo econômico e à luta contra o “crime”. Gramsci, no túmulo, se revirava, mas de satisfação: que mimo mais delicioso se poderia oferecer aos próceres da “revolução cultural” do que um governo de direita que abdicava de concorrer com eles no campo cujo domínio eles mais ambicionavam? Naqueles anos, e não por coincidência, o monopólio do debate ideológico foi transferido à esquerda, que ao mesmo tempo ia dominando a mídia, as universidades, o movimento editorial e todas as instituições de cultura, sob os olhos complacentes de um governo que por isso se gabava de ser “pragmático” e “superior a ideologias”.
A esquerda, quando caiu do cavalo em 1964, teve ao menos o mérito de se entregar a um longo processo de autocrítica e até demea culpa, de onde emergiu a dupla e concorrente estratégia das guerrilhas e do gramscismo, calculada para usar os guerrilheiros como bois-de-piranha e abrir caminho para a “esquerda pacífica”, na qual o governo militar não viu periculosidade alguma até que ela, por sua vez, o derrubou do cavalo com o escândalo do Riocentro e a enxurrada de protestos que se lhe seguiu.
Aqueles que, na “direita”, ou no que resta dela, se apegam ao regime militar como um símbolo aglutinador, em vez de examinar criticamente os erros que o levaram ao fracasso, estão produzindo um falso passado. Não o fazem por esperteza, como a esquerda, mas por ingenuidade legítima, com base na qual a única coisa que se pode construir é um futuro ilusório.
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