ESTADÃO
11 de junho de 2012 | 3h 06
Alexandre Barros
A marolinha foi uma sacada política inteligente do então presidente Lula. Evitou o pânico que retrairia subitamente o consumo. Deu certo por um tempo. Agora as ondas aumentaram. A presidente Dilma Rousseff queixou-se de um tsunami. Algo havia que fazer, mas não muito a ser feito. Adotamos cobertor curto para cobrir santo grande.
O governo quer coisas contraditórias: aliviar alguns impostos e manter a arrecadação. Os escolhidos para ganhar são os que têm lobbies mais fortes, capazes de ameaçar com desastres maiores: mais desemprego, maior frustração ou instabilidade política. A predileta é a indústria automobilística. Nela é sensível a retração do consumo. A ameaça é forte e o lobby, pesado.
O que é melhor, proteger a indústria automobilística ou a de ar-condicionado? A de caminhões ou a de micro-ondas? Numa situação de mercado, todos os produtos são iguais. As preferências dos consumidores é que definirão os vencedores. Na escolha política do governo e das burocracias, alguém diz que é melhor que os carros sejam mais baratos e os refrigerantes e os aparelhos de ar-condicionado, mais caros. Cada um sabe onde lhe aperta o sapato, mas o governo optou por nos dar sapatos com pontos mais apertados e outros mais frouxos.
Voltamos à situação anterior a 1860, quando os pares de sapatos eram simétricos. Os pés direito e esquerdo dos sapatos eram iguais, só que nas pessoas um pé é diferente do outro. Cabia aos usuários deformar os sapatos para adaptá-los ao pé em que quisessem usá-los. Por isso tanta gente tinha bolhas e calos.
As recentes decisões do governo são parecidas. Ajustem seus pés, vocês, que gostam de refrigerantes, micro-ondas e ar-condicionado, porque os impostos desses produtos subirão. Preparem-se os que gostam de automóveis, porque será mais barato comprá-los. Tudo tem consequências que transbordam os limites da decisão. Em troca, uns sentirão mais calor, outros engarrafarão mais as ruas e estradas. Em economia tudo funciona assim: uma decisão tomada aqui repercute lá. Algumas vezes, meses depois.
Quando foi anunciada a decisão de aumentar os impostos dos refrigerantes, o burocrata entrevistado disse que os reajustes serão reavaliados anualmente, em 1.º de outubro, quando os novos valores devem ser anunciados. Sua ressalva foi tão idiota quanto inútil: disse que o fato de o governo elevar os impostos não significa, necessariamente, que produtores e comercializadores tenham de aumentar os preços para os consumidores. Idiota porque o que ele já adiantou é que o governo prevê a inflação em velocidade que demandará uma avaliação anual para aumentar os impostos. Inútil porque, se os produtores sabem que o governo lhes vai apertar o sapato dos impostos, eles repassarão o aperto aos clientes, nos preços. O aspecto mais sério da decisão foi anunciar, com 16 meses de antecedência, que em 1.º de outubro de 2013 o governo anunciará qual vai ser o aumento do imposto.
Foi dada a partida oficial para o vício da reindexação. Ela nunca foi totalmente abandonada, mas estava mais moderada e envergonhada. Escondia-se debaixo das diversas siglas dos índices de preços: IPCA, IGPM, IPA, INPC, ICC, Selic e outras. Não havia um índice de inflação mensal que passasse a mensagem de que todo mundo podia (podia ouvido como devia) aumentar o preço de seus tomates ou microscópios eletrônicos na mesma proporção.
Aumentar impostos para desestimular o consumo é uma política, em geral, fadada ao fracasso. Os produtos valem o que as pessoas querem pagar por eles. Se o imposto for alto, mas o desejo for maior, o consumidor compra mesmo. Já baixar os impostos funciona, porque as pessoas que desejam muito sabem que terão o prazer que querem por um preço mais baixo. A escolha não será entre consumir um ou outro, mas, sim, entre como e em quanto se endividar para comprar o que se quer.
A beleza do mercado é que milhões de pessoas mandam mensagens aos produtores dizendo o que querem comprar e a que preço; e o que não querem pelo preço que produtores estão cobrando. As consequências são inequívocas: sucesso para quem vende o que as pessoas querem pelo preço que elas estão dispostas a pagar e crise ou falência para os produtores ou vendedores que não se ajustam aos desejos dos consumidores.
Quando o governo passa a bulir com essas coisas, começam os desequilíbrios. Mutretas econômicas têm consequências de longo prazo, impossíveis de antecipar ou simular, mesmo nos computadores mais sofisticados.
É claro que os produtores já vão começar a equipar seus departamentos de compras e vendas para ajustar os preços de acordo com o fiat governamental, independentemente dos custos de produção ou dos desejos dos consumidores. Foi dada, de fato, a partida para a indexação. Daqui para a frente, outros setores dirão que querem a mesma coisa para que se possam planejar melhor. Recomeçaremos a ciranda de preços e reaparecerão as maquinetas remarcadoras de etiquetas, em versão mais moderna, para acompanhar a inflação que o governo já decretou que haverá e de quanto será, da perspectiva governamental.
Os preços têm, entretanto, uma capacidade fantástica: andam sempre mais rápido do que os calculadores da inflação. Entre mortos e feridos se salvarão todos, mas as escoriações generalizadas, as fraturas e os danos mais sérios não serão contabilizados. O nome do jogo, a partir dessa decisão, passa a ser outro: vamos escorregar na manteiga, ladeira acima.
Tomara que os historiadores mais inspirados não se esqueçam de chamar os anos vindouros, de consequências previsíveis, mas inevitáveis, de política econômica amanteigada. Só que não tão gostosa quanto os biscoitos homônimos de Petrópolis.
* CIENTISTA POLÍTICO (PH.D PELA UNIVERSITY OF CHICAGO), É ANALISTA DE RISCO POLÍTICO E-MAIL: ALEX@EAW.COM.BR
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