TUDO NÃO É RELATIVO
sábado, 19 de junho de 2010
Vamos falar um pouco de lingüística, a minha verdadeira profissão, para variar?
Uma amiga minha (de formação sociolingüística assim como eu) comentou sobre o vídeo abaixo e eu tive que conferir. É uma versão dublada da cena famosa do filme Tropa de Elite, com os alunos passando a discutir norma e diversidade lingüística ao invés de repressão policial e Foucault, como no original. O vídeo até é interessante para se usar como material didático, etc, para alunos que chegam ao primeiro semestre de Letras ainda com uma visão invertida de que, primeiro, Deus criou a linguagem escrita, e só depois é que houve o pecado e os pobres começaram a falar “pobrema”.
Fonte: TerritorioScuola
Mas há algo que me incomoda profundamente nesse vídeo. Trata-se da imensa distorção de papéis que ele apresenta e que me parece um grande equívoco. E digo equívocojustamente porque não parece sequer ter sido proposital e subversivo, mas fruto de uma patente incompreensão da cena original.
No filme, a fala de Matias é apresentada como a voz do bom senso (questionando o senso comum) contra a voz da maioria, legitimada pela intelectualidade, mas profundamente equivocada sobre a realidade. Dado esse confronto entre um “bem” e um “mal”, os responsáveis pela dublagem automaticamente transpuseram essa relação para o tema que queriam discutir, colocando, na boca de Matias, a posição que eles consideram certa(“não existe certo e errado”) e, na boca dos demais alunos, a posição que consideramerrada (“existe sim certo e errado”).
Mas essa é uma transposição não só simplista, mas contraditória. Quem acha que Matias é o pobre, com “consciência social”, que luta contra os “burguesinhos preconceituosos” e “racistas”, simplesmente não assistiu Tropa de Elite, o filme mais reaça que o Brasil já viu (e, por isso, adorou).
No filme, quem representa a voz da “consciência social”, do apoio à “diversidade”, da defesa aos “pobres, vítimas do poder” são justamente os alunos, e não Matias. Eles é que são a voz do politicamente correto, contra um autoritário, reacionário Matias, que reage contra um discurso intelectualizado que considera uma grande bobabem, uma forma de um bando de meninos mimados expiarem suas culpas burguesas.
O personagem Matias não é o progressista que está ensinando aos ignorantes os benefícios do relativismo moral. Pelo contrário, ele é o reacionário que choca os progressistas com a realidade e as conseqüências de seus próprios atos. Os alunos não são os burguesinhos elitistas que odeiam pobres e defendem que a polícia lhes meta a porrada. Ao contrário, eles são justamente os que denunciam a “repressão social que discrimina pobres e negros”, eles são os burguesinhos elitistas que gostam de fazer turismo em favela para entrar em contato com a metafísica do pobrismo.
Matias no original
No campo lingüístico, Matias não é o intelectual que condena os “playboys preconceituosos” por não reconhecerem a (sua) língua de negro. Ele é o pobre trabalhador que quer conseguir coisas melhores através da formação intelectual e que despreza profundamente os “playboys liberais”, que cultuam a pobreza justamente por não precisarem conviver com ela.
Se a discussão naquela sala de aula fosse sobre linguagem e lingüística, Matias nunca seria o anarco-lingüista, aplicando relativismo cultural em doses de simplismo marcos-bagniano. Ele seria o reacionário que tenta fazer os pretensos sociolingüistas de um livro só entenderem a diferença fundamental entre diversidade lingüística (que deve ser respeitada) e analfabetismo funcional (que deve ser combatido com doses cavalais de literatura e gramática normativa).
No filme, não é Matias, mas sim os alunos que expressam posições como as de Foucault e de Althusser (o pai da Análise do Discurso) contra os “aparelhos de repressão do estado” (i.e., a família, a religião, o sistema jurídico, a polícia, a língua...). Em Tropa de Elite, são os alunos (brancos) que acusam (o negro) Matias e a sua polícia de serem racistas por prenderem traficantes baianos, nordestinos. E que também acusariam Matias de racista se ele defendesse o ensino da norma padrão nas escolas das favelas. Inverter essa relação, na versão Tropa de Lingüística, poderia ser mais produtiva e até desafiadora, se feita com consciência e propósito subversivo, mas nem isso vemos nos diálogos (que têm outro propósito). Os autores dessa versão parecem é não ter percebido que adoraram um filme que simplesmente destroça com a suas visões de mundo.
Nós, lingüistas, temos que perceber que nem sempre somos a voz da vanguarda, combatendo uma hegemonia repressora da gramática normativa. Muitas vezes, acabamos, involutariamente, representando nós mesmos uma nova hegemonia cultural/intelectual, que se coloca como a única visão legítima sobre a linguagem, substituindo um policiamento lingüístico por um policiamento meta-lingüístico e confundindo qualquer tentativa de alfabetização com preconceito social e lingüístico.
Da série “Pronto, falei”.
Linguiça não, lingüística! Lingüística!
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