07 de janeiro de 2012 | 3h 08
Série reúne 22 volumes com a obra integral de um dos mais controvertidos ensaístas brasileiros, o carioca José Guilherme Merquior, morto em 1991, homenageado ainda com biografia e livro tributo
Antonio Gonçalves Filho - O Estado de S.Paulo
Fernando Bueno/AE
Ele se definia como um liberal em economia, social-democrata em política e anarquista em cultura
Até 2014 a coleção estará completa, inclusive com dois volumes adicionais, o primeiro sendo um livro tributo, escrito por quem conviveu com Merquior, e o último uma biografia ainda em preparo. A meta, diz o organizador, é criar um público novo para a obra de um polemista que investiu contra a filosofia de Foucault, defendeu que o marxismo estava em processo de liquidação, atacou a prática da psicanálise ("uma doença do intelecto", dizia) e desancou luminares da crítica literária, incomodando ainda consagrados compositores como Caetano Veloso, a quem chamou de "pseudointelectual de miolo mole". Em troca, foi acusado de "terrorismo bibliográfico" pelo psicanalista carioca Eduardo Mascarenhas (1942-1997) e chamado de "empregadinho da ditadura militar" pelo filósofo e dramaturgo Carlos Henrique Escobar.
Tão múltipla como a formação intelectual de Merquior é a do organizador da biblioteca que leva o nome do diplomata. João Cezar de Castro Rocha é autor, entre outros livros, de Literatura e Cordialidade - o Público e o Privado na Cultura Brasileira (1998) e Antropofagia Hoje? - Oswald de Andrade em Cena (lançado o ano passado pela É Realizações). O professor encara o desafio de organizar a reedição das obras e examinar os inéditos de Merquior justamente porque seu itinerário e sua independência se parecem com a trajetória intelectual do homenageado.
Aos 47 anos, Castro Rocha, colaborador do Sabático, fez conferências em vários países, dá aulas numa universidade americana e tem igual vocação para a polêmica - recentemente, num seminário sobre René Girard (de quem também organizou a obra completa), comprou briga com as maiores autoridades estrangeiras na obra do filósofo francês.
"Minha geração não leu Merquior, autor de livros fundamentais como Formalismo e Tradição Moderna (1974), que antecipou algumas questões estéticas só discutidas na década seguinte, de 1980", observa Castro Rocha. Ele admite que o trânsito do diplomata pelas altas esferas pode ter afastado as novas gerações da sua obra- Merquior foi assessor do chefe da Casa Civil, João Leitão de Abreu (1913-1992), durante a ditadura do general Médici (1905-1985) e um dos ideólogos do governo Collor, ao lado do também diplomata e senador Roberto Campos (1917-2001). "No entanto, é conveniente lembrar que um dos melhores amigos de Merquior foi o marxista Leandro Konder, a quem sempre ajudou, inclusive financeiramente", lembra o organizador da coleção.
De fato, o diplomata, vinculado à corrente liberal - seu último livro é O Liberalismo, Antigo e Moderno (1991)-, não só tinha amigos comunistas como escreveu O Marxismo Ocidental (1987), um de seus livros mais polêmicos. Entre outras coisas, Merquior afirmava (há 25 anos) não ver futuro para o marxismo e decretava como permanente a crise pela qual passava a doutrina - de raízes religiosas, segundo ele, o que provocou escândalo. No livro sobram ainda farpas para o filósofo alemão Habermas, herdeiro da Escola de Frankfurt e um dos mais prestigiados pensadores do marxismo cultural. Em outro livro, A Natureza do Processo (1984), ele chega a arriscar um chocante diagnóstico de Marx, definindo-o como "um caso de esquizofrenia intelectual". O que ele não aceitava no marxismo, segundo disse o ex-ministro Sergio Paulo Rouanet numa mesa-redonda sobre Merquior, era o dogmatismo.
Como revelou Eduardo Portella nesse mesmo encontro, realizado na Academia Brasileira de Letras em 2001, poucos sabem que Merquior teve um "pequeno período lukacsiano", quando escreveu um artigo intitulado Contradições da Vanguarda, que deve figurar no livro dedicado aos textos inéditos do diplomata. Até mesmo no livro Arte e Sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin (1969), o segundo a ser lançado pela É Realizações, persiste um "sotaque heideggeriano", segundo Portella, concluindo que não foi Marx que retirou Merquior de Frankfurt, mas Heidegger.
Ao ser transferido para Paris, seu primeiro posto internacional, em 1966, o diplomata foi inicialmente atraído pelo estruturalismo, mas sua independência não permitiu que defendesse a causa. Aluno do antropólogo Lévi-Strauss, Merquior tem alguns livros escritos originalmente em francês e inglês e traduzidos para o português, como Verso e Universo em Drummond (1975), sua tese de doutorado na Sorbonne (de 1972), que será lançada durante a Flip (de 4 a 8 de julho), em Paraty. O organizador Castro Rocha o inclui entre os três mais importantes do diplomata (os outros dois são Razão do Poema, seu primeiro livro, de 1965, e Formalismo e Tradição Moderna). "Estamos revisando outras traduções, pois Merquior era muito cioso de sua obra." Entre os ensaios produzidos quando Merquior servia nas embaixadas do Brasil na Europa estão A Estética de Lévi-Strauss (1977) e Rousseau & Weber (1989), dois estudos de peso que se tornariam obras de referência - inclusive, para a comunidade cultural europeia.
Julia Merquior, filha do ensaísta, revela que, curiosamente, nenhuma editora antes da É Realizações procurou a família para recolocar esses títulos - fora de catálogo há anos - no mercado. "Claro, José Mário Pereira, da Topbooks, publicou muitos títulos, mas era mais a parte literária, direcionada à universidade." Um dos maiores especialistas na obra do amigo, ele republicou, em 1996, entre outros títulos que serão relançados na coleção, De Anchieta a Euclides (1977), e foi convidado pelo organizadora Castro Rocha para organizar os volumes extras com os inéditos e a correspondência de Merquior. Entre os missivistas estão o antropólogo Lévi-Strauss, o poeta Carlos Drummond de Andrade, o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre e o cineasta baiano Glauber Rocha (que lhe pediu uma bolsa para estudar a obra do escritor Oscar Wilde em Londres).
Desde cedo Merquior conviveu com grandes intelectuais brasileiros. Aos 22 anos, foi convidado por Manuel Bandeira para organizar a antologia Poesia do Brasil e, antes, aos 18 anos, já assinava textos no suplemento dominical do Jornal do Brasil - alguns incluídos em Razão do Poema, republicado pela Topbooks em 1996 com contracapa assinada por Antonio Candido, que o classificou entre os maiores críticos que o Brasil já teve, destacando ainda sua capacidade de interpretar textos "sem os reduzir à mecânica formalista".
Além de crítico literário, diplomata, filósofo, bacharel em Direito e membro da Academia Brasileira de Letras, Merquior tinha, a exemplo do organizador de sua coleção, uma paixão imensa por arte. Sua biblioteca, que chegou a ter mais de 10 mil volumes (8.300 comprados pela Fundação Banco do Brasil), abrigava desde os clássicos da Filosofia (Spinoza, seu mentor, em primeiro lugar) até estudos da arquitetura de Buckminster Fuller e da pintura de Poussin, que adorava.
"Lembro dele nos levando (ela e o irmão Pedro, que morreria num acidente de moto) ao museu e como sempre tinha informações sobre os autores dos quadros", diz Julia, alfabetizada em língua inglesa durante os anos em que Merquior serviu na embaixada de Londres. O traço mais característico do pai, segundo a ex-atriz e agora dona de uma empresa de recicláveis, era o humor perene. "Fico imaginando o que ele diria do governo Lula, da Dilma, são perguntas que me faço sempre." Julia garante que o pai ficou muito feliz com a volta das eleições diretas, em 1985, esperança que fez o maior pensador liberal do Brasil abraçar o caminho político após a morte de Tancredo Neves. "Foi o período em que conversamos mais", revela. "Notei que a sua luta era contra ver as coisas de uma maneira só, sendo ele profundo conhecedor da História."
Visto como um direitista pela esquerda, Merquior se definia como um liberal em economia, social-democrata em política e anarquista em cultura. Ele dizia que no Brasil há uma intelectualidade, mas não uma intelligentsia. O modelo histórico que tinha em mente era o dos intelectuais da Europa oriental do século 19, quase párias cuja independência incomodava a sociedade em que viviam. Aqui, os intelectuais, dizia, se organizam em corporação. Um tema que rendeu e ainda rende muita discussão.
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