| 29 OUTUBRO 2011
ARTIGOS - CULTURA
Não é por acaso que, no vácuo de princípios intelectuais e morais genuínos, a burocracia alemã aderiu fielmente à ideologia nacional-socialista. Uma sociedade tradicionalmente servil ao Estado acabou encarnando uma ideologia perversa, pela isenção filosófica e moral e pelo culto da técnica.
Quando o ex-oficial nazista Adolf Eichmann foi capturado na Argentina por agentes do Mossad, o serviço secreto israelense, uma boa parte da opinião pensante achou que encontraria um monstro frio e diabólico. Sentiram-se frustrados. Se ele não fosse o responsável pelo massacre de judeus no Leste Europeu, qualquer pessoa veria no sujeito um burocrata mediano, uma criatura medíocre, que causaria indiferença, enfurnado em uma mesa de repartição pública. De fato, o mesmo se pôde esperar do capitão SS Rudolf Hoess, o chefão todo poderoso do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau.
Em suas cartas e escritos, o sanguinário burocrata fala de seu emprego como um empreendimento maçante, estressante, menos cruel. Não havia remorso no que fazia, nem mesmo uma citação de clemência para suas vítimas. Ademais, ao lado de um dos maiores genocídios da história, o “respeitável” burocrata Hoess voltava em mais um dia de trabalho, beijava seus filhos e sua mulher, passeava pelos campos e parecia dormir calmamente. Jogar zyklon B nos judeus e cremá-los era um expediente tão estressante quanto marcar com carimbo uma boa papelada. Era, em suma, um ato impessoal. Como um burocrata, achava que fazia um bom serviço e tinha senso de dever. Tão assustador quanto o aspecto moral criminoso desses homens, era sua particular obsessão pela técnica, pela eficiência burocrática. Não havia contradição neles em beijar seus parentes e massacrar centenas de milhares de famílias judias inteiras. Eles poderiam ser o nosso vizinho ao lado, o sonolento funcionário que encontramos em uma mesa de escritório, ou mesmo um amigo de trabalho em uma festa de fim de semana.
Aí volto à questão do “senhorito arrogante”, do homem-massa do livro de Ortega y Gasset, “A Rebelião das Massas”. Alguns sujeitos ficaram escandalizados com as críticas que fiz a respeito da legião de bacharéis tecnocratas que hoje em dia são jogados pelas universidades brasileiras. Em particular, referia-me às faculdades de direito, onde os novos reizinhos querem moldar a sociedade pelo horizonte limitado de suas concepções meramente técnicas ou burocráticas. Há, no entanto, um vazio moral e filosófico perigoso na nova cepa de bacharéis. Eles não conseguem refletir em termos morais ou intelectuais genuínos, porém, em meras projeções sistêmicas e academicistas. Ou mais, crêem que as leis são um fim em si mesmo, tal qual a doutrina disseminada pelos juristas.
E existe algo bem pior: alguns se acham, inclusive, acima das leis. Sinceramente, o direito achado na academia dá náusea. É uma mera discussão de burocratas carreiristas por cargos públicos.
Aliás, a filosofia e história do direito, atualmente, são mal vistas. Na verdade, o que se convém chamar “filosofia do direito”, com algumas exceções, é mera discussão de grupos militantes, é mera ideologia. A erudição intelectual é algo virtualmente extinta nas universidades: o que há, de fato, é um proletariado cultural que destrói o conhecimento e o transforma em mera instrumentalização da retórica política. A sabedoria contemplativa, um bem precioso que existia até a época medieval, é um ser maldito nos tempos modernos. A meditação é inútil. O negócio mesmo é modificar o mundo sem entendê-lo. Ou instrumentalizar a técnica como uma interpretação gnóstica ou uma revelação divina do mundo.
Daí a existência de uma penca de juristas, promotores, juízes e advogados exigindo cada vez mais intervenção governamental na vida privada, em nome de “corrigir” ou “transformar” a sociedade, dentro de um voluntarismo pseudomoralizante. São os ativistas profissionais. O excesso de regulamentação que exigem do Congresso Nacional é o alargamento da “técnica” deles. Quando mais burocracia e leis, melhor para eles. Acabam controlando mais... é o mundo moldado pela tecnocracia jurídica.
É claro que em nosso país, essa obsessão por papeladas, por status burocrático e por títulos honoríficos de doutores não é de hoje. O culto da aparência intelectual formal, em detrimento do conteúdo essencial, é uma regra que existe desde que o romancista Lima Barreto escreveu uma sátira aos doutores, no famoso livro “Pais dos Bruzundangas”, no inicio do século XX. No entanto, algumas mazelas parecem se acentuar. O fenômeno da busca desenfreada do concurso público, dado um exemplo, constitui uma anomalia intelectual, social e econômica. É uma anomalia intelectual, pois o direcionamento do que se julga conhecer e desenvolver como “sabedoria” em universidades é meramente uma expressão técnica e formal do Estado. É uma anomalia social, pois constitui um agigantamento do Estado e uma diminuição de força política da sociedade civil privada. E é uma anomalia econômica, precisamente porque o Estado, que jamais foi produtor de riquezas, cada vez mais se apropria destas em favor de uma classe ociosa e inútil.
E há outro aspecto, que é mais grave: a mera instrumentalização da técnica e da retórica implica uma isenção moral dessa classe burocrática que hoje atua. Não me chocaria nem um pouco o porquê de existirem pessoas como Eichmamm ou Hoess no século XX. O burocrata frio que considera seu trabalho deportar populações inteiras a um campo de concentração, apenas no poder do carimbo, tem as mesmíssimas propensões da burocracia voluntariosa que ascende ao poder em nosso país e em alguns lugares do mundo. É uma classe de pessoas extremamente obediente, voluntariosa, corporativista e defensora de seus cargos de carreira. Entretanto, não são morais, no sentido tal como entendemos. Pelo contrário, a falta de um suporte intelectual e moral é ocupada pela técnica e preenchida pela ideologia. A adesão de uma boa parte da burocracia brasileira ao socialismo não é mera coincidência. É uma defesa férrea e apaixonada de um cadinho de poder pelo puro ativismo. A estatolatria se torna, por assim dizer, um “direito natural” do funcionário público.
A burocracia nazista, em parte, herdou a velha tradição prussiana, que via a sociedade como uma expressão técnica e extensiva do Estado. O Estado alemão tinha algo muito mais severo: era uma burocracia militarizada. Os funcionários públicos alemães usavam farda e compunham um exército. A disciplina militar obrigava ao funcionalismo ser obediente, em troca de favores e ascensão aos cargos públicos. E o sonho de cada prussiano médio era usar um uniforme e compor as fileiras do governo. Havia no povo alemão uma espécie de reverência quase religiosa pelos burocratas. Tal como engrenagens de um corpo sistêmico, a obediência estrita era lei. Não é por acaso que, no vácuo de princípios intelectuais e morais genuínos, a burocracia alemã aderiu fielmente à ideologia nacional-socialista. Uma sociedade tradicionalmente servil ao Estado acabou encarnando uma ideologia perversa, pela isenção filosófica e moral e pelo culto da técnica. Ou pelo favoritismo pessoal ativista.
O que o burocrata alemão médio perderia com o nazismo? Uma ideologia que diviniza o governo não somente o promove, como cria uma enormidade de prerrogativas e poderes jamais sonhados por eles. Massacrar judeus poderia ser um incômodo desagradável, maçante e estressante para alguns. E poderia ser até prazer para outros, fanatizados com a ideologia lunática da superioridade das raças de Hitler. Contudo, era algo compensável, já que a burocracia não pensa em outra coisa, senão em buscar status e mais status em órgãos públicos. Uma boa parte, senão a maioria dos alemães, talvez detestasse a idéia de crer que o seu governo estivesse massacrando os judeus. No entanto, o conforto material enganoso do Estado nazista parecia redimir o preço a ser pago por um grande crime. Quando Eichmamm foi interrogado num tribunal israelense, sobre os motivos de ter matado aquelas pessoas, aquele burocrata sonolento, submisso, insignificante, dizia que apenas recebia ordens. O protótipo do homem-massa, do senhorito arrogante, não contemplava outra coisa senão a obrigação de seguir a técnica e o oficio de um burocrata.
Em cada acadêmico tecnocrata pomposo e ativista, em cada burocrata voluntarioso, em cada funcionário público tapado, devemos ver sempre um potencial Eichmamm ou um Hoess, e ficarmos atentos. São “‘senhoritos satisfeitos’ e estupidamente arrogantes”. Os fascismos e demais socialismos têm muito a dever a esses tipos humanos. É a rebelião das massas sob o signo da falsa instrução e a falsa indignação moral, nivelando a cultura e os valores por baixo. E no final das contas, é tão somente o desejo de poder de pessoas medianas, incapazes de entender os dilemas graves de suas responsabilidades e os valores da civilização.
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