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- Publicado em Domingo, 25 Setembro 2011 18:45
- Escrito por Nicholas D. Kristof
No campo de refugiados Dadaab, no Quênia, o que é mais dilacerante sobre crianças famintas não são os maços de cabelo que caem, a pele manchada e as chagas doloridas, nem os ossos que cutucam a pele esticada. Não. É o vazio em seus rostos.
Essas crianças estão conscientes e seus olhos o seguem – mas letargicamente, sem expressão, sem lágrimas ou berros ou até mesmo sobrancelhas franzidas. Uma criança faminta desliga as emoções, direcionando cada caloria para manter os órgãos vitais funcionando.
A ONU alerta que a fome no Chifre da África poderá matar 750 mil pessoas nos próximos meses – e dezenas de milhares já morreram. Num hospital alemão onde estive há cerca de uma semana, aqui em Dadaab, o doutor Daniel Muchiri mostrou quatro alas lotadas com crianças sofrendo de desnutrição grave. Mesmo entre as poucas crianças que conseguem chegar a esse hospital bem equipado, morre uma por dia em média.
Malyun Muhammad pode em breve se tornar uma delas. Com dois anos de idade e pesando apenas 6,3 kg, Malyun estava deitado apaticamente numa cama; seus olhos me seguiam, mas totalmente vazios. "Eu não diria que ele tem grande chance de se salvar, pois chegou muito tarde", disse o doutor Muchiri.
Dadaab atualmente é o maior campo de refugiados do mundo, com 430 mil habitantes. Ele dobrou de tamanho no ano passado e um grande conjunto de grupos assistenciais trabalha aqui.
A fome é causada pela seca – a pior em 60 anos –, mas provocada ainda mais pela intransigência da milícia fundamentalista muçulmana Shabab, que governa parte da Somália. A área onde grande quantidade de pessoas está morrendo de fome se sobrepõe quase perfeitamente às regiões que se encontram sob o controle da Shabab.
De certa forma, houve progresso na luta do mundo contra a fome. Quenianos e etíopes plantaram vegetais resistentes à seca, construíram projetos hidráulicos e diversificaram seu ganha-pão. Assim, esta seca os atingiu menos do que no passado. Um sistema de alerta antecipado emitiu um ano antes a informação de que a fome estava chegando e as agências assistenciais enviaram mantimentos a tempo.
Na Somália, entretanto, a Shabab mantém afastada a maioria dos trabalhadores assistenciais e bloqueou grande parte das remessas de alimento. Também tentou evitar que os somalis fugissem para conseguir comida em outro lugar.
A Shabab atormentou ainda seu povo com impostos e opressão. Proibiu o sutiã, alegando ser um símbolo ocidental da promiscuidade – e refugiados afirmam que jovens milicianos da Shabab às vezes passam a mão nas mulheres para saber se estão usando sutiã.
Os refugiados me disseram que a Shabab era detestada e que uma solução para a fome seria o apoio internacional mais forte ao governo fraco e vacilante da capital somali, Mogadíscio, na esperança de promover a estabilidade e substituir a Shabab. Mas isso parece improvável.
Ouvir as histórias desses somalis deixou meu coração doendo. Reflitam sobre um homem que conheci e que tinha acabado de atravessar o deserto e chegou a Dadaab.
Bele Muhammad é um fazendeiro de 45 anos. Ele contou que dois de seus filhos morreram de fome nas três semanas anteriores. Um menino de 14 anos, Abdul Aziz, morreu primeiro, e depois uma garota de 8 anos, Fatuma. A esposa de Bele e seis crianças restantes estavam perto de morrer – e então ele pôs-se a caminhar a pé com mais 50 pessoas procurando uma rota para o Quênia.
Foi uma terrível jornada de 10 dias, em parte porque oito bandidos armados atacaram seu grupo logo após terem cruzado a fronteira queniana. "Os ladrões me pediram dinheiro, mas eu disse que não tinha nada", recorda Bele. Os bandidos separaram os homens das mulheres e, então, acredita ele, estupraram as mulheres. Os ladrões torturam os homens com fogo para descobrir onde tinham escondido o dinheiro. Bele me mostrou as queimaduras no rosto e nos braços.
Finalmente os bandidos viram que ele não tinha nada e o libertaram. E agora, apesar de sua provação, Bele está mandando um recado para sua família, para que seus três filhos mais fortes, com idades de 4 até 12 anos, partam e tentem caminhar até Dadaab – mesmo que isso signifique que podem ser atacados por bandidos, torturados ou estuprados ao longo do caminho. "Se ficarem na Somália, vão morrer de fome", ele disse de maneira abrupta.
Por fatos assim é que a decisão é tão difícil para tantos somalis: eles devem se arriscar a morrer de fome em casa ou à tortura e ao estupro enquanto fogem?
Quanto à esposa de Bele, Mulki, e às outras três crianças, ele simplesmente diz que estão fracas demais para tentar a jornada. Ele ficou em silêncio por um momento e completou: "Eu rezo por elas. Elas podem morrer. Mas não há nada que se possa fazer".
No intervalo enquanto se preparava para uma possível notícia da morte de sua esposa e das três crianças mais fracas, houve apenas um raio de esperança. Após Bele ter chegado ao campo, descalço e queimado, outro refugiado somali (e funcionário de uma agência assistencial) chamado Abdulkadir Abdullahi Muya, teve compaixão dele. Abdulkadir meteu a mão no próprio bolso e lhe conseguiu roupas, sapatos e comida – e restaurou sua fé na humanidade. E a minha.
Nicholas D. Kristof é colunista do jornal
The New York Times. Tradução: Rodrigo Garcia
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