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sexta-feira, 11 de março de 2011

TEXTO COMPLETO EM UM SÓ POST: Debate entre Olavo de Carvalho e Alexander Dugin: Os Estados Unidos e a Nova Ordem Mundial -- Introdução: Primeira intervenção de Carvalho

DEXTRA
QUINTA-FEIRA, 10 DE MARÇO DE 2011


Olavo de Carvalho:The United States and the New World Order, 7 de março de 2011
Tradução: Dextra


"Quais são os fatores e atores históricos, políticos, ideológicos e econômicos que agora definem a dinâmica e a configuração de poder no mundo e qual é a posição dos Estados Unidos no que é conhecido como a Nova Ordem Mundial?”

Olavo de Carvalho 

As palavras mudam de sentido, peso e valor de acordo com as situações do discurso. Ao entrar neste debate, devo esclarecer de antemão que este não é, de modo algum, um debate. A própria idéia de debate supõe tanto uma oposição simétrica entre as partes em disputa, desde o ponto de vista de suas convicções, quanto alguma simetria direta entre seus respectivos status sócio-profissionais: os intelectuais discutem com intelectuais, políticos com políticos, professores com professores, os pregadores religiosos com pregadores do ateísmo e assim por diante.

Quanto a convicções, se entendemos este termo como apenas afirmações gerais sobre a estrutura da realidade, as minhas não diferem das do professor Dugin em muitos pontos essenciais. Ele acredita em Deus? Eu também. Ele acha que uma metafísica do absoluto é possível? Eu também. Ele aposta em um sentido para a vida? Eu também. Ele entende as tradições, a pátria e a família como os valores que devem ser preservados acima de supostas conveniências econômicas e administrativas? Eu também. Ele vê com horror o projeto globalista dos Rockfellers e de Soros? Eu também. Não é possível organizar um debate entre duas pessoas que estão em concordância.

Por outro lado, desde o ponto de vista das posições reais que ocupamos na sociedade, nossas diferenças são tantas, tão profundas e tão irredutíveis que a própria proposta de nos pôr cara a cara tem em si uma certa incongruência cômica. Eu sou só um filósofo, escritor e professor, comprometido com a busca do que me parece ser a verdade e com a educação de um grupo de jovens que são gentis o bastante para prestar atenção no que eu digo. Nenhuma destas pessoas nem eu ocupamos qualquer cargo público. Não temos qualquer influência sobre políticas nacionais ou internacionais. Não temos sequer a ambição -- e muito menos um projeto explícito -- de mudar o curso da história, qualquer que ele seja. Nossa única esperança é conhecermos a realidade até o ponto máximo de nossas forças e um dia deixarmos esta vida conscientes de que não vivemos em ilusões e auto-engano, de que não nos deixamos ser enganados e corrompidos pelo Príncipe deste Mundo  ou pelas promessas dos ideólogos, seus servos. Na atual hierarquia de meu país nativo, minha opinião não tem valor, exceto, talvez, com um anti-exemplo e a encarnação do mal absoluto, o que é uma grande satisfação para mim.  No país em que vivo, o governo me considera, na mais hiperbólica hipérbole, um excêntrico inofensivo.

Nenhum partido político, movimento de massas, instituição governamental, igreja ou seita religiosa me considera seu mentor. Então, posso dar minha opinão como quiser e mudar de opinião quantas vezes me parecer certo, sem quaisquer consequências práticas devastadoras além do modesto círculo de minha existência pessoal.

Agora, o professor Dugin, filho de um oficial da KGB e mentor político de um homem que é a própria encarnação da KGB, é o criador e guia de um dos mais amplos e ambiciosos planos geopolíticos de todos os tempos -- um plano adotado e seguido tão de perto quanto possível por uma nação que tem o maior exército do mundo, o mais eficiente e audacioso serviço secreto e uma rede de alianças que se extende por quatro continentes. Dizer que o professor Dugin está no centro e pináculo do poder é uma simples questão de realismo. A fim de realizar seus planos, ele conta com o braço forte de Putin, os exércitos da Rússia e da China e todas as organizações terroristas do Oriente Médio, para não falar de todos os movimentos esquerdistas, fascistas e neo-nazistas que hoje se colocam sob a bandeira de seu projeto "eurasiano". Quanto a mim, além de não ter plano nem para minha própria aposentadoria, conto apenas, até onde vão meus recursos, com meu cachorro Big Mac e uma velha espingarda de caça.

Esta tremenda diferença existencial (plenamente ilustrada pelas fotos em anexo) faz com que nossas opiniões, mesmo quando suas expressões verbais coincidem ao pé da letra, signifiquem coisas inteiramente diferentes na estrutura de nossos respectivos objetivos. As respostas às perguntas que inspiram este debate mostrarão isto, espero eu, tão claramente quanto as fotos.


As perguntas são duas: quem são os atores no cenário mundial e qual é a posição dos Estados Unidos nele?

Quanto à primeira pergunta: fora o Cristianismo Católico e o Protestante, dos quais falarei mais adiante, as forças históricas que hoje lutam  por poder no mundo se concertam em três projetos de dominância global, os quais chamarei provisoriamente de "russo-chinês", "ocidental" (às vezes chamado equivocadamente de "anglo-americano") e "islâmico".

Cada um deles tem uma história bem documentada, que mostra suas origens remotas, as transformações que sofreram através do curso do tempo e o atual estado de sua implementação.

Os agentes que personificam estes projetos hoje são, respecivamente:

1. A elite dirigente da Rússia e da China, sobretudo os serviços secretos destes dois países.

2. A elite financeira ocidental, tal qual representada sobretudo pelo Clube Bilderberg, o Council on Foreign Relations e a Comissão Trilateral.

3. A Irmandade Muçulmana, os líderes religiosos de vários países islâmicos e alguns governos de países islâmicos.

Destes três agentes, só o primeiro pode ser concebido em termos estritamente geopolíticos, já que seus planos e ações correspondem a interesses nacionais e regionais bem-definidos. O segundo, que está mais avançado na implementação de seus planos de governo mundial, se coloca explicitamente acima de quaisquer interesses nacionais, inclusive os dos países onde ele se originou e que servem como suas bases de operações. No terceiro, os conflitos de interesses entre os governos nacionais e o objetivo abrangente de um Califado Universal sempre terminam sendo resolvido em favor do último, o qual, embora existindo atualmente apenas como um ideal, goza de uma autoridade simbólica fundada sobre mandamentos corânicos que nenhum governo ousaria desafiar abertamente.

As concepções de poder global que estes três agentes se esforçam por implementar são muito diferentes umas das outras, porque elas brotam de inspirações heterogêneas e às vezes incompatíveis.

Portanto, eles não são forças similares, espécies do mesmo gênero. Eles não lutam pelos mesmos objetivos e, quando recorrem ocasionalmente às mesmas armas (por exemplo, a guerra econômica), eles o fazem em diferentes contextos estratégicos, nos quais o emprego de tais armas não serve necessariamente aos mesmos objetivos.

Embora nominalmente as relações entre eles sejam de competição e disputa, às vezes até de natureza militar, há vastas zonas de fusão e colaboração, tão flexíveis e mutáveis quanto se possa imaginar. Este fenômeno desorienta os observadores, produzindo todo tipo de interpretação equivocada e fabulosa, algumas sob a forma de "teorias conspiratórias", outras como refutações auto-proclamadas "realistas" e "científicas" destas teorias.

Muita da nebulosidade do cenário mundial é produzida por um fator mais ou menos constante: cada um dos três agentes tende a interpretar em seus próprios termos os planos e ações dos outros dois, em parte por objetivos deliberados de propaganda, em parte devido a uma genuína incompreensão da situação.

As análises estratégicas de todos os envolvidos refletem, cada uma delas, o viés ideológico que lhe  é próprio.  Muito embora elas tentem levar em conta a totalidade dos fatores disponíveis, o projeto russo-chinês enfatiza o ponto de vista geopolítico e militar, o projeto ocidental o econômico e o islâmico a disputa entre as religiões.

Esta diferença reflete, por sua vez, a composição sociológica das classes dominantes nas respectivas áreas geopolíticas:

1) Derivada da Nomenklatura comunista, a classe dirigente russo-chinesa é essencialmente constituída de burocratas, agentes de serviços de inteligência e oficiais militares.

2) A preponderância de agentes financeiros e banqueiros internacionais no establishment internacional é conhecida demais e não é necessário insistir nela.

3) Nos vários países do complexo islâmico, a autoridade do governante depende substancialmente da aprovação da umma -- a numerosíssima comunidade de intérpretes autorizados da religião tradicional. Muito embora estes países demonstrem grande variedade em suas situações domésticas, não é exagero descrever a estrutura de seu poder governante como "teocrática.”

Assim, pela primeira vez na história do mundo, as três modalidades essenciais de poder -- político-militar, econômico e religioso -- encontram-se personificados em blocos supranacionais distintos, cada um deles com seus próprios planos de dominação mundial e seu modo peculiar de ação. Isto não significa que eles não ajam em todas as frentes, mas só que suas respectivas estratégias e perspectivas históricas são, em última análise, delimitadas pela modalidade de poder que eles representam. Não é exagero dizer que o mundo hoje é objeto de disputa entre o exército, os banqueiros e os religiosos.

Embora nos debates atuais estes três blocos sejam quase invariavelmente designados por nomes de nações, Estados e governos, descrever suas interações como uma disputa entre nações ou interesses nacionais é um hábito residual da velha geopolítica que não nos ajuda de modo algum a entender a presente situação.

É apenas no caso russo-chinês que o projeto globalista corresponde simetricamente aos interesses nacionais e que os principais agentes são os respectivos Estados e governos. Isto se dá pela simples razão de que o regime comunista, governando lá por décadas, dissolveu ou eliminou todos os outros possíveis agentes. A elite globalista da Rússia e da China é o governo destes dois países.

Por sua vez, a elite globalista ocidental não representa nenhum interesse nacional e não se identifica com nenhum Estado ou governo em particular, embora controle vários deles. Pelo contrário: quando seus interesses se chocam com os das nações onde ela se originou (e isto necessariamente acontece), ela não hesita em se voltar contra sua própria pátria, em subjugá-la e, se necessário, destruí-la.

Os globalistas islâmicos servem, a princípio, aos interesses gerais de todos os Estados muçulmanos, unidos no grande projeto de um Califado Universal. Divergências surgidas de choques entre interesses nacionais (como, por exemplo, entre o Irã e a Arábia Saudita) não se mostraram suficientes para abrir feridas incuráveis na unidade de longo-prazo do projeto islâmico. A Irmandade Muçulmana, principal líder do processo, é uma organização transnacional: ela governa alguns países e em outros é o partido da oposição política, mas sua influência é onipresente no mundo islâmico.

A heterogeneidade e assimetria dos três blocos está refletida na imagem que eles têm um do outro, como fica manifesto em seus discursos de propaganda -- um sistema de erros que sugere que o destino do mundo está nas mãos de loucos delirantes:

1. A perspectiva russo-chinesa (ampliada hoje sob a forma do Eurasianismo, que será um dos tópicos deste debate) descreve o bloco ocidental como (a) uma expansão global do poder nacional americano; (b) a expressão materializada da ideologia liberal da "sociedade aberta", tal como proposta eminentemente por Sir Karl Popper; (c) a encarnação viva da mentalidade materialista, cientificista e racionalista do Iluminismo e, portanto, o inimigo  par excellence de toda a espiritualidade tradicional.

2. O globalismo ocidental declara não ter outros inimigos além do "terrorismo" -- que não identifica de forma alguma com o bloco islâmico, descrevendo-o [como] um resíduo de crenças bárbaras a caminho da extinção -- e o "fundamentalismo", um conceito que mistura indistintamente os porta-vozes ideológicos do terrorismo islâmico e a "Direita cristã", como se a última fosse uma aliada da primeiro e não uma de suas principais vítimas. Deste modo, o medo do terrorismo islâmico é usado como pretexto para justificar o boicote oficial à religião cristã na Europa e nos Estados Unidos! A Rússia e a China não são nunca apresentadas como possíveis agressores, mas como aliados do Ocidente. No pior caso, a China é retratada como um rival comercial. Em resumo: a ideologia do globalismo ocidental fala como se ela já personificasse um consenso universal estabelecido, ao qual somente grupos religiosos marginais e mais ou menos loucos se opusessem.

3. O bloco islâmico descreve seu inimigo ocidental em termos que só revelam sua disposição de odiá-lo per fas et per nefas, apresentado-o às vezes como o herdeiro dos antigos cruzados e às vezes como a personificação do moderno materialismo e hedonismo. A generosa colaboração da Rússia e da China com grupos terroristas é certamente a razão pela qual estes dois países inexistem no discurso político islâmico. Deste modo, contornam-se incompatibilidades teóricas irremediáveis. Alguns teóricos do Califado alegam que, quando o socialismo triunfar no mundo, ele precisará de um espírito e que o Islam pode lhe fornecer um.

Na mesma medida em que cada um destes três blocos cultiva uma falsa imagem de seus rivais, cada um deles também projeta uma falsa imagem de si mesmo. Deixando de lado por hora as fantasias projetadas por islâmicos e ocidentais, tratemos das fantasias russo-chinesas.

O bloco russo-chinês apresenta-se como aliado dos Estados Unidos na "luta contra o terrorismo", enquanto ao mesmo tempo fornece armas e todo tipo de apoio a praticamente todas as organizações terroristas no mundo e para os regimes anti-americanos do Irã, Venezuela, etc., e espalha a lenda de que o ataque contra o World Trade Center foi obra do governo americano. [1] A Rússia se queixa de que foi "corrompida" pelas reformas liberais de Boris Yeltsin, de inspiração americana, como se antes delas ela vivesse em um templo de pureza e não na podridão sem fim do regime comunista. Vale a pena lembrar que o governo soviético viveu essencialmente do roubo e da extorsão por mais de 60 anos, sem nunca ter que responder por isto. Ao mesmo tempo, ele corrompeu a população através do hábito institucionalizado do suborno, da troca de favores políticos e do tráfico de influência, sem os quais a máquina estatal simplesmente não funcionaria.[2] Quando seus bens foram loteados após a dissolução oficial do regime, os beneficitários foram os membros da própria nomenklatura, que se tornaram bilionários do dia para a noite, sem cortar os laços que os unia com o velho aparato estatal, especialmente a KGB ("não existe isto de ex-agente da KGB", confessou Vladimir Putin). Imagine o que teria acontecido na Alemanha depois da Segunda Guerra se os vencedores, ao invés de processarem e punirem os apoiadores do antigo regime, os tivessem premiado com os bens do Estado Nazista. É exatamente isto o que aconteceu na Rússia: assim que a URSS foi oficialmente dissolvida, seus agentes de influência na Europa e nos Estados Unidos lançaram uma bem-sucedida campanha para barrar qualquer investigação dos crimes soviéticos.[3] Ninguém nunca foi punido pelo assassinato de pelo menos dezenas de milhões de civis e pela criação da mais eficiente máquina de terror estatal que a humanidade conheceu. Pelo contrário: o caos e a corrupção que se seguiram ao desmantelamento do Estado Soviético não foram causados pelo novo sistema de livre iniciativa, mas pelo fato de que os primeiros a se beneficiarem dele foram os senhores do antigo regime, uma horda de ladrões e assassinos como nunca antes vistos em nenhum país civilizado.

E mais: mesmo choramingando por ter sido corrompida pelo capitalismo americano, a Rússia se esquece de que foi ela que o corrompeu. Desde os anos 30, o governo de Stálin, ciente de que a força da América residia em seu "patriotismo, moralidade e vida espiritual" (sic), lançou uma gigantesca operação destinada, nas palavras de seu principal responsável, Willi Münzenberg, a "tornar o Ocidente tão corrupto que ele feda." A compra de consciências, o envolvimento de autoridades de alto-escalão com a espionagem e negócios escusos, as intensas campanhas de propaganda para se debilitarem as crenças morais da população e a infiltração generalizada no sistema educacional terminaram produzindo resultados, particularmente depois dos anos 60, modificando a sociedade americana ao ponto de torná-la irreconhecível.

Também foi a ação soviética, desde os anos 50, que deu dimensões planetárias ao tráfico de drogas. Sua história está bem documentada emRed Cocaine: The Drugging of America and the West [Cocaína Vermelha: Drogando a América e o Ocidente], de Joseph D. Douglass. Quando a Rússia se lamenta de que, depois da queda do comunismo, foi invadida pela cultura da droga, ela está simplesmente colhendo o que plantou.

Nada nesta vasta ação corruptora é coisa do passado. Hoje em dia, há mais agentes russos nos Estados Unidos do que durante a Guerra Fria.[4] A China, bem alimentada por investimentos americanos, dá mostras de que a aparente liberalização de sua economia foi apenas uma fachada para a manutenção de um regime totalitário, cada vez mais sólido e aparentemente indestrutível.

Quanto à posição dos Estados Unidos no cenário mundial, vamos primeiro dar uma olhada em como o professor Dugin a descreve e então vejamos como ela é na realidade.

De acordo com a doutrina eurasiana, os Estados Unidos são a encarnação par excellence do globalismo liberal. [5] O liberalismo, como o prof. Dugin o vê em relação à América, é essencialmente o da "sociedade aberta" advogada por Sir Karl Popper. É assim que o professor Dugin resume a idéia liberal:

“Para se entender a consistência filosófica da ideologia nacional-bolchevique... é absolutamente necessário ler o livro fundamental de Karl Poper, A Sociedade Aberta e seus Inimigos."

“Popper desenvolveu uma tipologia fundamental para nossa matéria. De acordo com ele, a história da humanidade e a história das idéias se dividem em duas metades (desiguais). Por um lado, há os partidários da 'sociedade aberta', que representa, em sua opinião, a forma de existência normal de indivíduos racionais (todos os homens o são, para ele), os quais baseiam sua conduta no raciocínio e no suposto livre arbítrio pessoal. A soma de tais indivíduos deve logicamente formar a 'sociedade aberta', essencialmente 'não-totalitária['], já que carece de qualquer idéia unificadora ou sistema de valores de natureza coletivista, seja supra-individual ou não-individual. A ‘sociedade aberta’ é aberta precisamente porque ignora todas as 'teleologias', todos os 'absolutos', todas as diferenças tipológicas estabelecidas; portanto, ela igonora todos os limites que emanam do domínio não-individual e não-racional (supra-racional, a-racional, ou irracional, este último sendo o termo mais frequente em Popper)."

"Por outro lado, há o campo ideológico dos 'inimigos da sociedade aberta['], onde Popper inclui Heráclito, Platão, Aristóteles, os escolásticos medievais, bem como a filosofia alemã de Schlegel, Fichte e, sobretudo, a de Hegel e Marx. Karl Popper... destaca a unidade essencial de suas posturas e discerne a estrutura de sua Weltanschauung comum, cujos traços característicos são a negação do valor do indivíduo, de onde deriva a repugnância ao racionalismo autônomo e a tendência à submissão do indivíduo e sua razão aos valores 'não-individuais' e 'não-racionais', que sempre e fatalmente, segundo Popper, levam à apologia à ditadura e ao totalitarismo político."(…)

“Os nacional-bolcheviques... aceitam absolutamente e sem reservas a visão dualista de Popper e estão totalmente de acordo com sua classificação. Entretanto, por outro lado, eles se consideram inimigos resolutos da 'sociedade aberta' e suas fundações filosóficas, ou seja, a primazia do individual, o valor do pensamento racional, o liberalismo social progressivo, a democracia numérica atômica igualitária, a livre crítica, o Weltanshauung cartesiano-kantiano..."[6]

Quanto ao globalismo:

“Hoje em dia, é evidente que o Estado Mundial concebido como um Mercado Mundial não é uma perspectiva distante ou quimérica, porque aquela doutrina liberal [a de Karl Popper] está pouco a pouco se tornando a idéia que governa nossa civilização. E isto pressupõe a destruição final das nações, como vestígios de uma era passada, como o último obstáculo para a expansão iresistível da globalização... A doutrina globalista é a expressão perfeita e acabada do modelo da 'sociedade aberta'" [7]

Portanto, o globalismo liberal é o projeto em curso que visa a estabelecer por todo o mundo o modelo popperiano da "sociedade aberta", destruindo necessariamente em seu caminho as soberanias nacionais e todos os princípios metafísicos ou morais que aspirem a ser superiores à racionalidade individual. É o fim das nações e de toda a espiritualidade tradicional, as primeiras sendo substituídas por uma administração global científico-tecnocrática e esta última por uma mistura de cientificismo, materialismo e subjetivismo relativista que inspira as elites do Ocidente.

Sendo os Estados Unidos o principal centro irradiador deste projeto e a Rússia seu principal centro de resistência (por motivos que veremos mais adiante), o choque é inevitável:

“A principal tese do neo-Eurasianismo é que a luta entre a Rússia e os Estados Unidos é inevitável, já que os Estados Unidos são o motor da globalização que busca destruir a Rússia, a fortaleza da espiritualidade e da tradição.”[8]

Fiz questão de citar de forma mais ou menos detalhada as opiniões de meu oponente porque, embora não considere que sejam falsas em relação à mentalidade das elites globalistas, a qual, na verdade, se inspira nos ideais poperianos, eu posso provar com pequena margem de erro que:

1. A descrição não pode, de modo algum, ser aplicada aos Estados Unidos, uma nação na qual o popperianismo é um implante recente, sem quaisquer raízes locais e totalmente hostil às tradições americanas.

2. Os Estados Unidos não são o centro de comando do projeto globalista, mas, pelo contrário, sua própria vítima, marcada para morrer.

3. A elite globalista não é inimiga da Rússia, da China ou dos países islâmicos potencialmente associados ao projeto eurasiano, mas, pelo contrário, é sua colaboradora e cúmplice no esforço de destruir a soberania, o poderio político-militar e a economia dos Estados Unidos.

4. Longe de favorecer o capitalismo de livre iniciativa, o projeto globalista apóia políticas estatistas e controladoras em toda parte. E nisto ele não difere do intervencionismo advogado pelos eurasianistas. O globalismo só é "liberal" no sentido local que o termo tem nos Estados Unidos, como sinônimo de "esquerdista". O projeto globalista é herdeiro direto e continuador do socialismo fabiano, um aliado tradicional dos comunistas. A própria ideologia popperiana não é liberal-capitalista, no sentido do liberalismo clássico, mas, antes e acima de tudo, "uma abordagem de 'teste e avaliação' para a engenharia social." [9]

5. O Eurasianismo se volta contra a "sociedade aberta" como um modelo ideológico abstrato. Entretanto, como o Eurasianismo não é apenas um modelo ideológico abstrato, mas uma estratégia geopolítica, é óbvio que ela impele a ideologia Poperiana a apreender, por trás dela, um poder nacional específico, o dos Estados Unidos, que não tem nada a ver com a ideologia popperiana e dela só pode esperar o mal. Pior ainda: o nacionalismo americano é uma poderosa resistência cristã às ambições globalistas que têm tentado tomar o país a fim de destruí-lo como potência autônoma e usá-lo como uma ferramenta para seus planos essencialmente anti-nacionais. A destruição da potência americana removerá o único obstáculo razoável ao estabelecimento de um governo mundial. Aí, só restará a divisão dos espólios entre os três projetos globalistas, o ocidental, o russo-chinês e o islâmico.

6. A Rússia não é, de forma alguma, a "fortaleza da espiritualidade e da tradição", apontada por ordem expressa dos céus para castigar a carne dos Estados Unidos pelos pecados do Ocidente imoral e materialista. Hoje, como no tempo de Stálin, a Rússia é um antro de corrupção e perversidade como nunca se viu, dedicada à disseminação de seus erros ao redor do mundo, como anunciado na profecia de Fátima. Deve-se observar que esta profecia nunca se referiu particularmente ao Comunismo, mas "aos erros da Rússia" de forma genérica e anunciou que a disseminação destes erros, com toda sua procissão resultante de desgraças e sofrimento, só cessariam se o Papa e todos os bispos católicos do mundo realizassem o rito da consagração da Rússia. Como este rito nunca foi executado, não há razão para não se ver no projeto Eurasiano uma segunda onda e uma atualização dos "erros da Rússia", o anúncio de uma catástrofe de proporções incauculáveis.

7. Se a Rússia hoje, pelos lábios do prof. Duguin, se apresenta ao mundo como a portadora de uma grande mensagem espiritual de salvação, é necessário lembrar que ela fez isto duas vezes anteriormente: (a) No século 19, todos os pensadores de matriz eslavófila, com Dostoiévsky, Soloviev e Leontiev viam o Ocidente como a fonte de todos os males e anunciavam que no século seguinte a Rússia ensinaria ao mundo "o verdadeiro Cristianismo". O que aconteceu foi que toda esta arrogância espiritual foi impotente para deter o avanço do materialismo comunista na própria Rússia. (b) O comunismo russo prometeu trazer ao mundo uma era de paz, prosperidade e liberdade para além dos sonhos mais belos das gerações anteriores. Tudo o que conseguiu criar foi um inferno totalitário que nem Átila ou Gengis-Kan teriam vislumbrado em pesadelo.

Seria maravilhoso se cada país aprendesse a curar seus próprios males antes de pretender ser o salvador da humanidade. A Rússia de Alexander Dugin parece ter aprendido o contrário com seus crimes e fracassos.
[1] Vejam meu artigo “Sugestão aos bem-pensantes: internem-se,” Diário do Comércio, 30 de janeiro de 2002, emhttp://www.olavodecarvalho.org/semana/060130dc.htm.
[2] Veja: Konstantin Simis, URSS: The Corrupt Society: The Secret World of Soviet Capitalism, New York, Simon & Schuster, 1982, and Alena V. Ledeneva, Russia`s Economy of Favours, Cambridge University Press, 1998.
[3] Vejam: Vladimir Boukovski, Jugement à Moscou.
[4] Vejam: http://www.foxnews.com/us/2010/07/04/painting-town-red-russian-spies-report-says/.
[5] Os dois elementos que esta definição funde em uma unidade não têm a mesma origem e não eram simpáticos um ao outro em seu nascimento. Os primeiros movimentos liberais do século 19, vindos na crista da onda dos movimentos de independência contra as potências coloniais, eram altamente nacionalistas e os primeiros projetos de governo global que apareceram no início do século 20 foram inspirados por idéias notoriamente intervencionistas e estatistas.
[6] Alexandre Douguine, “La métaphysique du national-bolchevisme,” Le Prophète de l’Eurasisme, Paris, Avatar Éditions, 2006, pp. 131-133.
[7] Id., p. 138.
[8] Vadim Volovoj, “Will the prediction of A. Dugin come true?,” in Geopolitika, 10.11.2008, at http://www.geopolitika.lt/?artc=2825.
[9] Ed Evans, “Do you really know this person?” at http://itmakessenseblog.com/tag/karl-popper/.

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