Escrito pela Maria Lúcia V. Barbosa
A corrupção no Brasil tem uma longa história, que, aliada à impunidade, vem nos infelicitando ao longo dos séculos. Na verdade, tivemos uma "embriogenia defeituosa" na medida em que, nos primórdios de nossa colonização, aventureiros gananciosos interpuseram um oceano entre si e os controles sociais de sua pátria.
No ambiente afrodisíaco dos trópicos, afrouxou-se a moralidade, que se tornou mais débil. Assim, foi-se produzindo, apesar da rigidez aparente das proibições eclesiásticas e inquisitoriais, a plasticidade de costumes, onde prevaleceu o suborno, a corrupção, a mentira, convertidos em "virtudes" a serem exaltadas e comungadas por toda a sociedade.
A vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808 deu uma fisionomia particular ao nosso caso, distinguindo-o do resto do continente. Mas, se, por um lado, a instalação da família real fortaleceu a unidade política do colossal território e abriu caminho para a Independência em 1822, por outro, a partir de 1808 instalaram-se de uma vez por todas no Brasil as características do velho Estado português, que em terra nova era também um Estado corrupto na medida em que para tudo dele se dependia, do seu excessivo quadro de funcionários, da morosidade típica do burocrata, correndo soltas as propinas para aligeirar licenças, fornecimentos, processos, despachos.
Em toda parte das entranhas do desajeitado e ineficiente Leviatã conduzido por D. João VI traficavam-se influências, negociava-se a coisa pública em proveito próprio.
A Independência não alterou a essência estatal portuguesa, em que pese o esforço de reorganização constitucional, atribuído a princípio à Assembleia Constituinte de 3 de maio de 1823. Dissolvida por D. Pedro I, terá em seu lugar um Conselho indicado pelo imperador, prática que continuará história afora com outros governantes. Do Conselho nascerá a Constituição de 1824, que incluirá, além dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Poder Moderador, que na verdade transformava D. Pedro I em árbitro supremo dos demais poderes.
Também colaborou para marcar a mentalidade brasileira a adoção da escravatura, que já estava em desuso no mundo enquanto sistema produtivo.
Em 1530, os africanos começaram a chegar à colônia brasileira para substituir a mão de obra indígena, incapaz de se adaptar à atividade das lavouras de cana-de-açúcar e, além dos aspectos morais negativos e já bastante debatidos, a escravidão trouxe consequências econômicas e sociais.
Em 1846, o embaixador norte-americano no Rio de Janeiro, Henry A. Wise escreveu ao Secretário de Estado James Buchanan explicando a situação:
"Só há três maneiras de se fazer fortuna no Brasil - ou no tráfico negreiro ou negociando com escravos ou tendo uma casa exportadora de café... Apenas os comerciantes estrangeiros se dedicam ao café, e todo brasileiro influente tem de participar, direta ou indiretamente, das duas primeiras atividades... Os traficantes são, pois, ou os homens que detêm o poder ou os que emprestam aos homens do poder e os manobram. Assim, o próprio governo é, na realidade, um governo traficante, contrário às suas próprias leis e tratados". (Citado por Leslie Bethell, A abolição do tráfico de escravos no Brasil)
Na interferência estatal, que incluía o chamamento de empresários, oferecendo-lhes concessões e garantindo-lhes juros, não faltava, apesar da austeridade do Segundo Reinado, a corrupção.
Segundo Raymundo Faoro, em Os donos do poder: "Eram frequentes as concessões a políticos que as vendiam a incorporadores nacionais e estrangeiros, circulando por dezenas de mãos antes de realizarem o serviço, quando o realizavam. Não era incomum que a especulação matasse a empresa, esfolando-a antes de nascer... Usavam também os negociantes associar os políticos mais prestigiosos para figurarem nominalmente ou por intermédio de parentes e amigos em alguma concessão".
A Proclamação da República deveria ter-se constituído num marco inaugural de uma nova ordem de coisas, de uma nova mentalidade.
No entanto, como sempre acontece, ainda que a história avance, a mentalidade de um povo permanece arraigada, e valores, comportamentos e costumes só muito lentamente se modificam sob o impacto de algum acontecimento marcante.
Quanto às eleições, desde o começo o voto foi comprado, induzido, negociado. Como já foi dito, "no Brasil sempre votaram vivos e mortos".
Negócios escusos ainda prevalecem como práticas usuais não só das eleições, mas no trato com a coisa pública por parte dos detentores do poder.
Só que política como "negócio do rei" é também praticada pelos "súditos", aos quais interessa, essencialmente, levar vantagens com relação ao Estado paternalista.
Voltemos ao presente. Alguma coisa mudou? Em essência, não.
O Estado continua a apresentar os males crônicos da incapacidade administrativa (especialmente em saúde, educação, infraestrutura), nepotismo exacerbado, empreguismo parasitário. Em todos os níveis do governo - federal, estadual, municipal - grassa a corrupção, o mesmo acontecendo em instituições importantes. A impunidade é cada vez mais um estimulo à criminalidade, que registra índices assustadores, assim como a roubalheira oficial.
Como no passado, os "traficantes" estão no poder.
Indiferente, a massa só se interessa por vantagens imediatas, sem perceber que a corrupção lhe tira os direitos mais importantes.
Ou mudamos a mentalidade ou o Brasil permanecerá o eterno país do futuro que não chega.
Maria Lúcia V. Barbosa
Graduada em Sociologia e Política e Administração Pública pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e especialista em Ciência Política pela UnB. É professora da Universidade Estadual de Londrina/PR. Articulista de vários jornais e sites brasileiros. É membro da Academia de Ciências, Artes e Letras de Londrina e premiada na área acadêmica com trabalhos como "Breve Ensaio sobre o Poder" e "A Favor de Nicolau Maquiavel Florentino".
E-mail: mlucia@sercomtel.com.br
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