DOMINGO, FEVEREIRO 13, 2011
Conversava com um amigo, a respeito das inteligências jurídicas deste país. Atualmente, elas sumiram. Somos dominados por uma legião de tecnocratas, que não discutem as leis, dentro de perspectivas filosóficas, mas tão somente dentro das normas técnicas ou puramente legislativas. Quando eu fazia a faculdade de direito, ficava perplexo quando alguns doutrinadores eram elogiados como modelos de inteligência por interpretarem e escreverem sobre leis. Conheci um aluno presunçoso, que citava livros de doutrina e jurisprudência para mim, como se fosse a própria encarnação do direito. O cara era tão burro que não conhecia nada, a não ser de termos jurídicos. E não conseguia interpretar os conceitos e as palavras fora desses palavreados pomposos e vazios. Estudantes de direito boçais, eu conheço aos montes. A diferença é que hoje a classe está cada vez mais desvalorizada. Há faculdade de direito para qualquer pocilga do país.
Esses doutrinadores eram “inteligentes”, porque interpretavam a lei dentro da lógica fechada do legislador. O arraigado positivismo jurídico das inteligências acabou por criar uma corrupção epistemológica da perspectiva do direito. A lógica do direito se torna um fim em si mesmo, “pura”, acima da realidade preexistente. É o que poderia se chamar de “sacralização da norma”. O sentido filosófico do direito é, por assim dizer, o duvidoso axioma lógico do legislador, como se bastasse uma lei para resolver todos os problemas da sociedade. Quando o jurista modelo não é um doutrinador, é um concurseiro. Escutei em algum lugar, vindo da cabeça estreita de uma pessoa, que os concursados seriam as melhores inteligências do país. E aí escutei citar o nome do juiz William Douglas. Aliás, eu estava em uma livraria em Belém e encontrei seu livro, “A arte da guerra em concursos”, supostamente baseado no livro de Sun-Tzu. Esse, talvez, seja o livro filosófico do direito mais “elevado” a ser publicado em nossas letras jurídicas, atualmente. Nada contra o magistrado, ele precisa ganhar dinheiro. Porém, jamais será um São Tomás de Aquino, um Hugo Grotius, um Johannes Althusius, um Francisco de Victória ou um Francisco Suarez. Nem mesmo chegará a ser um Miguel Reale. No Brasil, o homem-massa, o tecnocrata ou o homem que passa em concurso viraram exemplos de inteligência. Basta que sua cabeça seja uma armazenadora de dados, como um computador, para o estudo de concursos de provas e títulos, que você já é considerado um gênio, mesmo que não entenda nada do que esteja decorando. Partindo dessa lógica, meu PC, que tem um terabyte de memória, parecerá mais inteligente do que um concurseiro.
Claro que essa fixação obsessiva pela norma geraria um vazio filosófico profundo. E ele está sendo ocupado por conceitos cada vez mais espúrios e irrefletidos do direito, dentre os quais, o alardeado “direito alternativo”. Ninguém se iluda que o direito alternativo seja contrário ao juspositivismo: ele mesmo é uma vertente juspositivista. A diferença é que ele encontra coerência esquemática na ideologia marxista, que faz do direito um instrumento de luta de classes. É uma nova forma de sacralizar a norma, através do materialismo histórico. A diferença é que o “direito achado na rua” apenas propõe que o juiz seja um militante parcial e defensor de causas políticas, como se fosse um juiz ideológico de um partido único totalitário. É pior, quando qualquer lei encontra guarida em quaisquer reivindicações políticas, das mais esdrúxulas possíveis, está a se expandir, absurdamente, a atuação do direito positivo e do Estado. Eu diria, sem delongas, que o direito alternativo é a estatização de todas as causas consideradas “sociais”, através de juízes ideológicos, partidários da causa totalitária marxista.
O novo ministro empossado do Superior Tribunal de Justiça, Luiz Fux, fez um discurso que reflete essa tendência. O magistrado falou que “a justiça não é algo que se aprende, mas algo que se sente. O juiz tem que ser sensibilidade. E saber direito, se possível”. E decretou, aos senadores, que não existe o juiz imparcial. A constituição de 1988 consagrou o ativismo jurídico. Medo! Ao defender as chamadas cotas raciais nas universidades, ele diz que evita as “a institucionalização das desigualdades”. E ainda acrescenta que não basta que todos sejam iguais perante a lei, é preciso tratar de “forma igualitária os iguais e de forma desigual os desiguais”. Aviso aos nobres colegas advogados:quando alguém recorrer ao STJ, vamos ter que descobrir a sensibilidade muito particular do magistrado, já que nas suas palavras, a justiça deve ser um elemento bastante incompreensível!
Mas isso não é tudo. Li um artigo do ministro, em homenagem à faculdade de direito da UERJ, em um artigo comemorativo de 2005. Os trechos me incomodaram absurdamente, pela profunda cegueira de sua declaração: “O professor deve levar ao aluno o conhecimento das virtualidades da lei, da necessidade da aplicação da lei à luz dos fins sociais a que a se destina. O homem do Direito não pode ser alheio à realidade do que está aí na rua, dessa pobreza. Ele não pode ser alheio à necessidade de se aplicar o Direito levando em consideração novos valores trazidos pela Constituição Federal. Não há mais possibilidade de se fazer um estudo estanque do Direito. O estudo do Direito hoje é um estudo à luz de princípios éticos, morais”. E ainda completa: “É preciso dar solução que seja humana. A justiça tem que ser caridosa e a caridade tem que ser justa. É preciso estar atento às aspirações do povo, porque, no meu modo de ver, assim como o Poder Executivo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Legislativo se exerce em nome do povo, para o povo; o Poder Judiciário se exerce em nome do povo, para o povo. A justiça é uma função popular. Na faculdade deve-se partir desse ensino com a cabeça bem aberta para tudo isso. Porque aí se formam pessoas que farão as suas opções”.
Preliminarmente, não me conste que a magistratura sirva para eliminar a pobreza. Nenhuma lei, nenhum decreto, nenhuma sentença vai resolver os problemas econômicos e sociais do país. Pelo contrário, o máximo que a magistratura pode fazer é não encher a paciência dos empresários ou dos trabalhadores assalariados, deixando que cada um busque o que ache melhor para si. Ainda não consegui entender onde a mera existência da pobreza se enquadra no conceito de justiça. Entretanto, desde que os juízes têm aderido ao“direito achado na rua”, eles se acham plenos de autoridade para impor a tão alardeada “igualdade material” na sociedade, ou seja, o socialismo por vias de sentenças ou acórdãos. Contudo, o segundo trecho me estarreceu mais ainda. Quando o magistrado afirma que a justiça deve atender às “aspirações do povo”, ou que os poderes seexercem “em nome do povo e para o povo”, O Sr. Fux cai na mitologia rousseauniana da soberania popular, em que o povo é colocado num plano superior, como se confundisse com a própria justiça. Isso, em outras épocas, se chamaria demagogia. Mas hoje é sinônimo de bom mocismo.
Hans Kelsen, com todas as deficiências factíveis em sua doutrina “pura” do direito, fez um relato maravilhoso sobre o julgamento de Cristo. Dizia que a condenação de um inocente, através de uma turba odienta, que preferiu escolher um culpado, ou seja, o bandido Barrabás, seria uma condenação devastadora da democracia. O ministro gosta muito de alardear suas origens judaicas, em particular, de neto de refugiados do holocausto nazista. Porém, o que me deixa perplexo é ele não perceber que a sacralização da vontade popular foi uma das razões que engendrou a ascensão do nazismo na Alemanha. Hitler foi eleito pelo povo alemão e os tribunais “populares” se achavam a personificação do “volk”, da entidade racial unificadora da Alemanha. Ora, se a maioria alemã deixou a minoria judaica à sanha do ódio nazista, qual seria o argumento do ministro Fux para defender os judeus? As aspirações do povo? O judiciário do povo, pelo povo e para o povo? O povo nunca foi e jamais será um sinônimo cabal de justiça. Ele pode escolher tanto Barrabás quanto Hitler, que não perceberá a menor injustiça nisso, já que acredita que a ordem dos números supera o bom senso da razão e dos valores superiores. Fazer parte da maioria, muitas vezes, aliviar o peso da consciência, por achar-se partidário de certezas, de “normalidades” e lugares comuns, através dos falsos dilemas confortantes da coletividade. “À luz dos fins sociais a que se destina”, a política de eugenia racial, a matança de minorias políticas, culturais ou religiosas e demais conveniências indigestas, podem ter muita coerência, nas palavras do juiz. Basta que o grupo energúmeno esteja no poder e seja amparado pela popularidade.
Como bem disse o ministro Fux, a sua justiça é “humana”.Desta argumentação, ele reconhece que não existem categorias superiores e transcendentes de moral ou de direito, que estão acima do direito positivo. As categorias que estão acima são imanentes, são“sociais”, são as “aspirações populares”, a “vontade do povo”.É pior. Quando ele afirma que os “desiguais devem ser tratados desigualmente”, percebe-se que ele nunca entendeu o postulado aristotélico-tomista da justiça, algo tradicionalmente arraigado na mentalidade ocidental. Ele confunde os postulados da justiça distributiva com os da justiça comutativa. Tratar desigualmente os desiguais não significa criar privilégios para pobres, negros, mulheres, homossexuais, etc. É simplesmente dar o que é devido, dentro de uma proporcionalidade, dentro daquele que se aproxima das reivindicações, méritos e graus de merecimento da justiça. O dar o que é devido está sujeito ao fato de que todos são iguais perante a lei. Isso quer dizer, em outras palavras, que existem direitos comuns que devem ser reconhecidos para todos e que todos têm a faculdade de exercê-los, na devida proporção de seus atos. Significa viver sob as mesmas regras, cuja desproporção levaria a injustiça, já que a desigualdade legal levaria a dar o que é devido sem o merecimento adequado.
Quando o Sr. Fux diz que negros necessitam de cotas raciais em universidades, para compensar supostas “injustiças” materiais ou históricas, ele viola a justiça distributiva precisamente porque os negros não conseguirão os cargos através dos méritos, e sim por conta de privilégios raciais. Por outro lado, viola a justiça comutativa, pois se a lei aí não se torna comum para todos, logo, os direitos não se tornam mais comuns. Basta que alguém tenha a pele escura, para criar direitos diferenciados do resto da comunidade. E por que razão? Resposta: nenhuma. Os negros têm as mesmas faculdades comuns dos brancos, dos índios e demais grupos étnicos, para disputarem os mesmos cargos, em níveis de igualdade. A pobreza ou a riqueza, substancialmente, nada tem a ver com a inteligência de quem disputa as vagas. Essas desigualdades não dizem respeito à justiça, posto que são naturais e aceitáveis. Aliás, justiça não se confunde com igualdade. Dar a quem é devido já implica, por si só um conceito de desigualdade, porque cada mérito, proporcionalmente, é diferenciado para cada um. Justiça é, acima de tudo, equilíbrio.
Alguém poderia objetar que há pessoas que não se enquadram nos padrões exigidos para exercerem os direitos. Os pobres não teriam acesso à justiça; os negros seriam supostamente injustiçados pelo racismo, as mulheres seriam o sexo frágil, etc. No entanto, a garantia de acesso à justiça não deve ser feita em prejuízo de toda uma sociedade. O pobre tem acesso á justiça, dentro do direito comum de que todos aqueles que se tornam pobres, podem ter acesso á justiça, com a garantia de isenção de custas judiciais e defensor público. Não é a mera natureza de ser pobre que faz alguém ser justo ou valida suas reivindicações em juízo. Os absolutamente incapazes também têm limitações no âmbito do exercício de seus direitos. Criamos direitos especiais para eles? Não, simplesmente a lei imputa um procurador legal para que ele seja representado nas mesmas condições de igualdade.
O Sr. Fux não sabe muito bem o que é justiça. Faz uma perfeita confusão de princípios e mistura as concepções filosóficas do direito com as ladainhas socialistas do “direito alternativo”. É mais grave:ressuscita o grotesco Rousseau e não percebe a gravidade do seu dilema, quando sacraliza o povo como portador do oráculo da justiça. E mais, em nome da justiça, acaba por acatar as piores injustiças e desigualdades, sejam aquelas de raça ou de condição social, quando na prática, acaba criando um judiciário onde alguns são mais iguais do que outros! A realidade imita a arte. Nunca a ironia orwelliana esteve tão contemporânea e presente na atualidade. . .
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