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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Soul Music -- por Roger Scruton -- TEXTO COMPLETO EM UM SÓ POST

DEXTRA
SEGUNDA-FEIRA, 24 DE JANEIRO DE 2011


Roger Scuton: The American, 27 de fevereiro de 2010 
Original: Soul Music
Tradução, fotos e linksDextra
Os vídeos são do artigo original


O modo como descrevemos a música pop prova que encontramos um significado moral na música. Como saber que tipo de música deveríamos ou não encorajar? 
“Não se mudam os modos de se fazer poesia e música sem que haja mudanças nas leis mais importantes da cidade." Assim escreveu Platão em "A República" (4.442c). E Platão é famoso por ter apresentado o que é talvez a primeira teoria do caráter na música, propondo que se permitissem alguns modos e se proibissem outros, de acordo com o caráter que se ouvisse neles. Platão expõe o conceito de mimesis, ou imitação, para explicar por que um mal caráter na música encoraja um mal caráter em seus adeptos. O contexto sugere que ele tinham em mente o canto, a dança e as marchas e não a audição silenciosa que conhecemos da sala de concerto. Mas, independentemente de como preenchermos os detalhes, não há dúvidas de que a música, para Platão, era algo que podia ser julgado nos mesmos termos morais em que julgamos uns aos outros e que os termos em questão denotavam virtudes e vícios como a nobreza, a temperança e a castidade, de um lado, e a sensualidade, a beligerância e a indisciplina, do outro.
O argumento de Platão tinha em vista, não obras musicais individuais, mas modos. Não sabemos exatamente qual era o arranjo dos modos gregos; eles convencionalmente identificavam estilos, instrumentos e esquemas melódicos e rítmicos, bem como as notas da escala. Sem entrarmos no assunto, podemos nos arriscar a sugerir que Platão estava diferenciando entre estilos musicais reconhecíveis, como poderíamos diferenciar enteo  jazz e o rock e ambos do clássico. E suas preocupações não eram  muito diferentes das de uma pessoa moderna preocupada com o caráter e o efeito morais do death metal, digamos, ou okitsch musical do gênero de Andrew Lloyd Webber. "Será que nossos filhos deveriam escutar um troço destes?" Os adultos modernos se perguntam: "Será que nossa cidade deveria permitir um troço destes?" É claro que nós há muito desistimos da idéia de que se possam proibir por lei certos tipos de música. Entretanto, devemos nos lembrar de que esta idéia tem uma longa história e foi um fator decisivo na evolução das igrejas cristãs, que são tão censoriais com a música litúrgica quanto com as letras litúrgicas e, na verdade, pouco distingue entre elas.

Além do mais, é comum se acreditar que estilos de música e obras musicais individuais têm -- ou podem ter -- um caráter moral e que o caráter de uma obra ou estilo de música podem "pegar" em alguns de seus adeptos. Faz todo o sentido (e muitas vezes é profundamente esclarecedor) descrever obras individuais e também os estilos e linguagens em termos das virtudes e vícíos das pessoas. O primeiro movimento da Segunda Sinfonia de Elgar é sem dúvida nobre e se a nobreza for falha em alguma medida, também isto será parte de seu caráter moral.


Sabemos de músicas que são bem-humoradas, lascivas, suaves, ousadas, castas, auto-indulgentes, sentimentais, reservadas e generosas; e todas estas palavras descrevem virtudes e vícios morais, os quais ficamos tão pouco surpresos em encontrar em músicas quanto nos seres humanos. Nossos modos de descrever a música nos dão provas incontroversas de que encontramos um significado moral nela -- e seria surpreendente se as coisas fossem assim e também não crêssemos que as pessoas deveriam ser encorajadas a escutar algumas coisas e desencorajadas de escutar outras. Pois nosso caráter é formado pelas companhias que temos e os que gostam da companhia de escroques e malandros provavelmente se tornarão eles mesmos escroques e malandros. É difícil, portanto, discordar da opinião de Platão de que a música tem um papel central na educação e que a educação musical pode dar errado a um ponto tal que isto terá um impacto no desenvolvimento moral e nas respostas sociais dos jovens.
E mesmo que não proibamos estilos musicais por lei, nós devemos nos lembrar de que pessoas com gostos musicais fazem nossas leis; e Platão pode  estar certo, mesmo em relação a uma democracia moderna, sobre as mudanças na cultura musical andarem de mãos dadas com as leis, já que as mudanças nas leis muito frequentemente refletem pressões da cultura. Não há dúvidas de que a música popular hoje goza de um status mais elevado do que qualquer outro produto cultural. As estrelas do pop são as primeiras entre as celebridades, idolatradas pelos jovens, tomadas como modelos, cortejadas por políticos e em geral dotadas de uma aura mágica que lhes dá poder sobre as multidões. É muitíssimo provável, portanto, que algo de sua mensagem vá pegar nas leis aprovadas pelos políticos que as admiram. Se a mensagem for sensual, egocêntrica e materialista, então devemos esperar que  nossas leis não nos tratem desde uma esfera mais elevada do que o que está implicado nisto.

Uma democracia que não faz juízos
Entretanto, embora façamos juízos morais, estamos nos tornando cada vez mais hesitantes em expressá-los. Nossa cultura é de "não fazer juízos" e sua hostilidade a eles advem da crença democrática na igualdade humana. Criticar o gosto, seja em música, entretenimento ou estilo de vida, supõe que alguns gostos sejam superiores a outros. E isto, para muita gente, é ofensivo. Quem é você, respondem eles, para julgar o gosto dos outros? Os jovens em particular sentem isto e como os jovens são os principais adeptos da música pop, isto coloca um formidável obstáculo no caminho de qualquer um que se proponha a criticar a música pop em uma universidade. Especialmente se a crítica for formulada na linguagem de Platão, como uma análise e condenação dos vícios morais exemplificados por um estilo musical. Em face disto, um  professor pode sentir-se tentado a desistir da questão do juízo e supor que tudo vale, que todos os gostos são igualmente válidos e que, no que tange à música como objeto de estudo acadêmico, não é a crítica, mas a análise técnica e o conhecimto prático que devem ser transmitidos. Na verdade, esta é a linha que se parece seguir nos departamentos acadêmicos de musicologia, ao menos no mundo anglófono.
Adorno (1903-1969) tinha vindo como refugiado do nazismo para a América, onde ele desfrutou dos privilégios usuais concedidos pelas universidades americanas a intelectuais europeus e onde ele pagou seus anfritiões do modo usual, escrevendo críticas sobre a América que borbulhavam de veneno e desprezo.

A questão do caráter moral da música também é complicada pelo fato de que a música é apreciada de muitos modos diferentes: as pessoas dançam ao som de música, elas trabalham e conversam com música ao fundo, elas fazem música e escutam música. As pessoas dançam com satisfação ao som de músicas que não suportam escutar -- uma experiência muito normal hoje em dia. Pode-se conversar ao som de Wolfgang Amadeus Mozart, mas não de Arnold Schoenberg; pode-se trabalhar ao som de Chopin, mas não de Richard Wagner. E às vezes argumenta-se que os contornos melódicos e rítmicos da música pop a adaptam para ser escutada por alto mais do que ouvida e também incentivam uma necessidade de música pop como fundo musical. Alguns psicólogos se perguntam se esta necessidade não seguiria o padrão de vícios; e um número ainda maior de críticos filosóficos levantam perguntas mais profundas sobre se a audição não teria mudado inteiramente com o desenvolvimento de melodias de curto-alcance e progressões harmônicas em cachos, típicas das canções na tradição do jazzAdorno (1903-1969) tinha vindo como um refugiado do nazismo para a América, onde ele desfrutou dos privilégios usuais concedidos pelas universidades americanas a intelectuais europeus e pagou seus anfitriões do modo usual, escrevendo críticas aos Estados Unidos que borbulham de veneno e desprezo. Seu alvo foi o que ele e seu colega mais velho Max Horkheimer chamou de "cultura de massa", cujas principais manifestações ele descobriu em Hollywood e no jazz.

Para Adorno, a música está no epicentro da civilização moderna e a sorte da música é um tipo de indicador da saúde moral, espiritual e pública da sociedade. Seu juízo hostil a respeito da cultura do capitalismo americano foi influenciado por sua perspectiva amplamente marxista do mundo moderno. Mas ela enfocou antes de mais nada -- e, na verdade, com a quase que exclusão de todos os outros indicadores -- os gostos estéticos prevalecentes na América e em particular a música que hoje conhecemos como a songbook americana. A linguagem melódica e harmônica deste "volume" penetrou até os ossos de nossa civilização e quando agora escutamos um clássico do jazz de Cole Porter, George Gershwin, ou Hoagy Carmichael, ficamos impressionados sobretudo pela inocência do estilo -- a última vez, talvez, que o casamento monógamo e antiquado foi celebrado em nossa música!

A preocupação de Platão não era muito diferente da de uma pessoa preocupada com o caráter e o efeito morais do death metal, digamos, ou dokitsh musical do gênero de Andrew Lloyd Webber. Será que nossos filhos deveriam ouvir um troço destes?

Adorno atacou algo que ele chamou de a "regressão da audição," que ele acreditava que havia infectado toda a cultura da América moderna. Adorno não estava tão preocupado com obras isoladas de música, mas com a cultura musical inteira. Ele via a cultura auditiva como um profundo recurso espiritual da civilização ocidental, cujos efeitos ele penou, sem-sucesso, para expressar. De certa forma, o hábito de escutar raciocínios musicais de longo-alcance, nos quais os temas são submetidos a extensos desenvolvimentos melódicos, harmônicos e rítmicos, está ligado à capacidade de se viver além do momento, de transcender a busca por gratificação imediata, de pôr de lado as rotinas da sociedade de consumo, com a busca constante do "fetiche", e colocar valores reais no lugar de desejos transitórios. Foi o que Adorno pensou. E há algo de profundo e persuasivo aqui, algo que precisa ser resgatado da crítica destemperada e excessivamente politizada de Adorno a respeito de praticamente tudo que ele encontrou na América. Ao procurar pelo sentido do que Adorno disse, devemos pôr de lado sua crítica sem nuances e injusta do jazz e da tradição da canção popular que se originou dele. Ao invés disto, devemos olhar para o que está acontecendo em nossa cultura musical agora e em particular deveríamos tentar imaginar como poderíamos criticar de modo plausível a música pop em geral, os estilos particulares e em particular as canções; olhar para as coisas como aquilo que elas são e independentemente de suas causas e efeitos.

Não que possamos desconsiderar inteiramente as causas e efeitos do pop. Adorno nos lembra de que é muito difícil criticar todo um estilo musical sem incorrer num juízo sobre a cultura ao qual ele pertence. Os estilos musicais não vêm em pacotes lacrados, sem nenhuma relação com o resto da vida humana. E quando um tipo particular de música nos envolve nos espaços públicos, quando ela invade todo café, bar e restaurante, quando ela berra conosco desde os carros em trânsito e pinga das torneiras dos rádios e iPods de todo o planeta, o crítico pode parecer estar de pé, como o apócrifo rei Canuto, diante de uma onda irresistível, emitindo gritos inúteis e rabugentos de indignação.

Devemos, então, desistir da música pop, considerá-la como acima da crítica e a cultura nela expressa como um fato da vida? Eu quero pelo menos lançar algumas dúvidas sobre esta idéia. Eis aqui um exemplo: “Alice Practice,” de um grupo chamado Crystal Castles.


Certamente, há coisas relevantes a serem ditas sobre isto e que pesam não só sobre seu valor como música, mas também sobre a condição moral daqueles que a consomem sem problemas. Os mais velhos tendem a reagir negativamente a esta passagem ao primeiro plano de uma voz feminina agitada, considerando-a pornográfica (embora a letra, tal como é, pareça ser mais sobre morte e drogas do que sexo) . Mas esta característica não é o que é mais impressionante para o ouvido musical. Certamente é perceptível que a peça não tem melodia; igualmente perceptível é que é pobre harmonicamente -- e o mais perceptível de tudo é que os sons responsáveis pelo que há de ímpeto rítmico são feitos eletronicamente e não refletem os rítmos corporais das pesoas que os produzem. Estes sons e a métrica que eles estabelecem são profundamente alheios aos rítmos naturais do corpo humano ou às expectativas do ouvido humano. Estamos lidando com um tipo de música feita por máquinas, que foi destacada da fonte tradicional de música na vida humana e do impulso de dançar e cantar em companhia. A voz está suspensa por fios elétricos, como o cadáver de uma rã eletrocutada.
Alguém poderia responder que a qualidade de uma peça musical está no que ela provoca no ouvinte. Alice (vamos chamá-la assim) visa a excitar emoções poderosas e nisto ela  é bem-sucedida. (Experimente olhar as entradas do Google para "Alice Practice," e siga os blogs dos fãs e você vai ficar abismado como impacto desta peça.) Talvez, se o  Crystal Castles tivesse usado as velhas técnicas de ordem melódica, harmônica e rítmica, eles teriam produzido algo de banal e desinteressante. Então, por que não louvá-los por terem alcançado a única coisa que se propuseram a alcançar, que é despertar os gigantes adormecidos da luxúria e da ira?

É importante reconhecer que há dois modos pelos quais a música pode provocar uma resposta: ou desencadeando-a, como o riso é desencadeado pelas cócegas, ou fornecendo-lhe um objeto adequado, de modo a inspirar uma forma reflexa de simpatia. As drogas alteradoras de humor tem efeitos psíquicos fortes, tanto agradáveis quanto desagradáveis. Mas elas funcionam diferentemente da arte e da música: elas não se dirigem aos nosos poderes de compreensão e reflexão racional e são perigosas por esta mesma razão, ao criarem atalhos viciantes que passam ao largo da reflexão crítica. Se é assim que o Crystal Castles visa trabalhar, então por que não consideramos sua música como consideramos as drogas alteradoras de humor -- como algo que deveria estar sujeito ao controle legislativo, exatamente como Platão sugeriu?

Eis aqui uma peça musical que induz a um efeito que não tem nada a ver com sua qualidade como música e que, na verdade, passa ao largo de qualquer compreensão musical: "O policial rindo."


Isto funciona como cócegas, um riso infeccioso e sem um objeto, riso sem diversão, comparável ao ferimento sem uma causa que é invocado por Alice. Desnecessário dizer que o riso provocado pelo policial que ri é bem diverso do riso provocado pela música maravilhosa de Mozart ao final do segundo ato das "Bodas de Fígaro", no qual as progressões harmônicas assumem a situação dos protagonistas e gradualmente desequilibram tudo em favor de Fígaro. A música de Mozart faz rir em virtude de sua qualidade intrínseca de música. Não dá para atinar com ela sem responder à piada musical que surge dentro da ordem melódica, harmônica e rítmica que se ouve. Ao responder a Mozart, a pessoa ri da e com a música; ao ouvir "O policial rindo", a pessoa não ri de nada, igual a quando alguém faz cócegas nela; e tampouco ri com a música, já que não é a música que está rindo. A diferença aqui é um tópico em si e eu vou deixá-la descansando ao fundo, enquanto retorno à linha de frente da compreensão musical.

A natureza do ritmo

Eu sugeri que há três elementos de organização musical, em todos os quais "Alice Practice" é falho. Mas quero agora dizer mais sobre cada um deles, já que eles nos ajudarão a conseguir algo como um ponto de apoio no âmbito da música pop. Nós ouvimos frequentemente que o ritmo é da maior importância no pop, o qual é música para se dançar, e que os que o julgam pelos padrões da sala de concerto, um local para uma audição silenciosa, simplesmente não entenderam a coisa. Esta é certamente uma resposta justa às formas mais rabugentas de crítica, mas levanta uma questão de profunda importância para o estudo da música, a natureza do ritmo. A primeira coisa que se ouve no exemplo de Alice é um tempo rasgado e doloroso, executado por um fio elétrico. E isto serve para lembrarmos (ou deveria nos lembrar) que o ritmo não é a mesma coisa que uma medida. Não é simplesmente uma questão de dividir o tempo em unidades que podem ser repetidas. É uma questão de organizá-lo em uma forma de movimento, de modo que uma nota convida a próxima para entrar no espaço que ficou vago. Isto é exatamente o que acontece na dança -- quer dizer, na dança de verdade. E as queixas que podem ser feitas contra as piores formas de pop também se aplicam às tentativas capengas de se dançar que elas geralmente produzem -- tentativas que não envolvem qualquer controle do corpo, qualquer tentativa de se dançar com uma outra pessoa, mas, no máximo, apenas a tentativa de se dançar junto ao outro, fazendo movimentos fatiados e atomizados como os sons que põe Alice em movimento. Quem quiser ver um exemplo deste tipo de dança -- na qual as pessoas são vítimas e não produtoras de dança -- só precisa ver o vídeo de "Alice Practice" no YouTube.

Quero agora contrastar Alice com um ritmo de verdade de uma canção do início dopop. Usarei uma que todos vocês conhecem: "Heartbreak Hotel."


Vocês perceberão aqui que o ritmo é gerado internamente pela linha melódica e que ele é gerado só pela voz: os instrumentos de fundo então aparecem e isto não se dá pela medição das linhas rítmicas e o fatiamento da sequência do tempo, mas tomando-se a batida da voz de Elvis. A medida aqui não é imposta à linha melódica como uma grade, mas é projetada a partir dela, criando linhas rítmicas virtuais no ouvido, à medida em que respondemos à síncope da voz. Não há aqui nenhuma bateria violenta, nenhum baixo amplificado, nenhum dos artifícios que -- estou tentado a dizer -- substituem o ritmo em tanto pop contemporâneo.

Eis aqui um outro exemplo do fenômeno que tenho em mente, desta vez puramente instrumental.


Esta é a abertura de “Lay Down Sally”, de Eric Clapton, na qual se ouve o ritmo sendo gerado por guitarras acústicas, sem voz ou bateria, mas gerado de forma tão eficaz que a pessoa é levada pela música antes que a bateria entre e, portanto, ela não sofre aquela súbita invasão, aquela captura do corpo pela batida, que é a desculpa horrível para o ritmo em tanto pop sintético de hoje em dia. Tais exemplos estão a anos-luz do grupo de death metal sueco Meshuggah.


O metal é, claro, um estilo todo particular, que não é, de forma alguma, típico da cena pop. Há muito a se admirar na virtuosidade do baterista deste exemplo, embora eu duvide que se pudesse dizer que ele "tem ritmo" no mesmo sentido de Elvis. Até ser organizado melodicamente, o ritmo tende a se reduzir a uma medida, enquanto que, quando organizado melodicamente, como nos exemplos de Elvis e Clapton, ele é alçado ao nível do gesto e do movimento. A diferença aqui não é material ; é fenomenológica -- uma diferença de como as repetições são ouvidas. No primeiro caso, elas são ouvidas como batidas regulares, como o pulsar de uma máquina; no segundo, são ouvidas como movimentos repetidos, do tipo que nossos corpos produzem ao correr, andar ou dançar. Um modo simples de se apreciar a diferença aqui é escutar um reel para oito.

Nada poderia ser mais metricamente regular do que isto; mas há um nexo audível de transição entre as seções, à medida em que os gestos mudam -- às vezes as mãos estão no ar, às vezes em torno do meio do corpo; às vezes as pernas se cruzam livremente, outras vezes tendem a pisar com força. A melodia varia levemente com cada mudança de parceiro e a animação aumenta a cada encerramento de linha melódica.

A fenomenologia vai um pouco mais fundo do que isto dá a entender. O ritmo na peça do Meshuggah é atirado ao ouvinte; o ritmo no reel convida o ouvinte a se movimentar com ele. A diferença entre "a" e "com" é uma das mais profundas que se conhecem e é exemplificada em todas as ocasiões em que nos encontramos com outras pessoas -- sobretudo em conversas e interações sexuais. E a "comunidade" do reel para oito reflete o fato de que esta é uma dança social, na qual as pessoas se movimentam coscientemente umas com as outras. A necessidade humana por este tipo de dança ainda está conosco e explica a atual febre da salsa, bem como os ressurgimentos periódicos das danças de salões de bailes e dos reels escoceses. A "comunidade" do reel foi notada e comentada por Friedrich Schiller, que considerou o que ele chamou de modo "inglês" de dançar como uma confirmação da ligação entre beleza e boas maneiras. Vale a pena citar suas palavras:

A primeira lei das boas maneiras é: tenha consideração pela liberdade dos outros. A segunda: mostre sua liberdade. A execução correta de ambas é um problema infinitamente difícil, mas as boas maneiras sempre a exigem incansavelmente e ela sozinha faz o cosmopolita. Não sei de uma imagem mais apropriada para o ideal de belas relações do que a dança inglesa bem dançada e multiplamente convoluta. O espectador na galeria vê incontáveis movimentos que se entrecruzam coloridamente e mudam sua direção caprichosamente, mas nunca colidem. Tudo foi disposto de modo que o primeiro já abriu espaço para o segundo antes que este chegue, tudo se encaixa tão abilidosamente e, não obstante, com tão pouco esforço, que ambos parecem simplesmente estar seguindo suas próprias inclinações, embora nunca atrapalhem o outro. Este é o mais adequado retrato da manutenção de uma liberdade pessoal que respeita a liberdade dos outros.1

É inegável que, para muitos, senão a maioria dos jovens, a experiência da "comunidade" está ausente de seu modo de dançar, que tipicamente não envolve nem passos complicados nem formações.

O metal é berrado aos seus adeptos e a perda de melodia da linha vocal enfatiza isto. Não que a melodia esteja inteiramente ausente, é claro; ela é permitida no solo de guitarra, que frequentemente é uma reflexão pungente sobre sua própria solidão -- o fantasma de uma comunidade que desapareceu deste mundo envernizado. No mundo desta música as pessoas conversam, berram, dançam e sentem umas às outras, sem nunca fazerem estas coisas com elas. O heavy metal é dançado batendo-se cabeça e com o slam dancing ou "moshing" (empurrar as pessoas na multidão). Este tipo de dança não está realmente aberta a pessoas de todas as idades, mas restrita aos jovens e sexualmente disponíveis. É claro que não há nada que proíba os velhos e engelhados de se juntarem a eles; mas a visão deles fazendo isto é um constrangimento, e tanto maior quanto eles mesmos parecerem não se dar conta da coisa.

Isto ainda não é crítica, claro, mas nos encaminha na direção de um reconhecimento do que me parece ser uma importante verdade a respeito da músicapop é que o que parece ser ritmo e a emergência do ritmo ao primeiro plano muitas vezes são, na verdade, uma ausência de ritmo, um abafamento do ritmo pela batida. O ritmo divorciado da organização melódica torna-se inerte; ele perde sua qualidade como gesto e daí perde a plasticidade do gesto. Como um cotraste extremo, que, entretanto, eu espero que possa demonstrar o que estou dizendo, dou a vocês um outro exemplo: a pequena célula ritmica, lindamente moldada pela linha melódica, a partir da qual Antonin  Dvořák constrói o scherzo da Sinfonia do Novo Mundo.


Graças à ordem melódica, esta célula pode ser usada como um bloco de construção, somado, dividido, multiplicado em contraponto para gerar uma animação ritmica que, em minha opinião, não tem qualquer equivalente no pop moderno.

É claro que este exemplo vem da sala de concerto, de música para ser ouvida, na qual o ritmo foi emancipado das exigências da pista de dança e e incorporado a um raciocínio contrapontual complexo. No entanto, ainda é ritmo -- ritmo gerado dentro da música e pondo em marcha um movimento próprio. Talvez este seja um bom lugar para expor uma opinião filosófica. Quando ouvimos uma peça musical, ouvimos uma sequência de sons: um som e depois outro. Normalmente, estes sons tem um diapasão e a melodia depende de se tocarem diferentes diapasões em sucessão. Quando ouvimos uma melodia, entretanto, não ouvimos apenas uma sucessão de sons em diapasão. Ouvimos outra coisa -- a saber, um movimento entre estes sons. A melodia começa em uma nota, continua através das notas seguintes de forma orientada a uma meta e termina em uma outra nota. Isto é algo que ouvimos, muito embora nada no mundo físico se movimente de fato. O movimento pode até continuar enquanto não se ouve qualquer som -- como no tema da Terceira Sinfonia de Beethoven, último movimento.


Os sons existem no mundo físico: eles são objetos reais, reconhecidamente de um tipo diferenciado, mas tão reais quanto as cores e os arco-íris. Os sons são estudados pela física e obedecem às leis do movimento, que regem todas as outras entidades no espaço e no tempo. Os animais os ouvem; os animais também diferenciam os sons com base em seus diapasões. Eles ouvem sucessões de sons dispostos em diapasões. Mas eles não ouvem melodias. Os pássaros, que criam sequências que nós ouvimos como música, não as ouvem, em minha opinião, como música, pois este tipo de audição envolve uma capacidade imaginativa que nenhum pássaro tem. O movimento é em parte uma idéia causal. Ouvir a melodia se mover de dó para mi bemol, digamos, é ouvir o mi bemol evocado pelo dó -- uma força virtual opera entre as notas, criando-as em resposta à última e levando-as todas adiante, rumo a uma conclusão. No entanto, não há qualquer força assim no mundo físico dos sons, no qual há apenas sequências. Eis aqui um exemplo interessante: a abertura do Segundo Concerto para Piano de Johannes Brahms, no qual uma sequência de trompa evoca uma frase em resposta, da parte do piano.


Não há qualquer interação causal entre estes sons no mundo real -- a primeira sequência é tocada na trompa, a segunda no piano. No entanto, a segunda é provocada pela primeira, da maneira mais simples e eficaz. Posteriormente, no mesmo concerto, Brahms distribui fragmentos de melodias alternadamente ao piano e à orquestra e a força virtual circula entre os fragmentos, atando-os em uma só melodia de forma impressionante.

Eu menciono estes tópicos porque acho que deveríamos ter em mente que não fazemos música simplesmente produzindo sons e que há de fato um risco, inerente à própria arte da música, de que ela possa, a qualquer momento, desabar no som -- tornar-se um efeito sonoro, cujo propósito é produzir respostas, à maneira de como "O policial que ri" produz o riso, sem chamar nossa atenção para o que pode ser ouvido e imaginado na linha rítmica e melódica. O desabamento da música no som está, na verdade, acontecendo à nossa volta, tanto no mundo do pop quanto nas salas de concerto e estou me propondo a condená-lo, já que o efeito sonoro não é um novo tipo de música, mas uma perda da música.
 
Isto me traz à melodia. A definição da melodia é uma das tarefas inacabadas da estética da música e eu aqui só posso dar umas poucas pistas. Um bom ponto de partida é observar que a melodia tem um início, um meio e um fim; mas isto é verdade apenas num sentido geral. Uma melodia que começa com um batida fraca (como tantas canções do folk inglês) não tem uma fronteira inicial clara: pode-se ouvi-la como estando dentro ou fora da melodia, mas a fronteira meio que desaparece por trás dela. Muitas melodias terminam sem uma conclusão clara -- por exemplo, o grandioso tema do primeiro movimento do Concerto para Violino de Sibelius.



E dizer que todas as melodias devem ter um meio não diz absolutamente nada.

Tradicionalmente, a melodia tem sido o princípio fundamental da canção popular: ela torna possível que se memorize a letra e que as pessoas se juntem ao canto. Todas as tradições do folk contêm um repertório de melodias que muitas vezes são construídas com elementos repetíveis, mas que também mostram elaborações notáveis, como nas melodias aparentemente sem fim do raga indiano ou do canto gregoriano. A songbook americana exibe um novo tipo de melodia, moldada pelos ritmos e harmonias do jazz e muitas de suas melodias à maneira das cantigas conseguiram se tornar conhecidas em todo o mundo. Por outro lado, muito pouco está aparecendo no pop que demonstre invenção melódica ou mesmo uma consciência do porque a melodia importa -- ou seja, uma consciência de seu significado social e sua capacidade de dar substância musical a uma canção estrófica. Um número incalculável de canções pop nos dão alternâncias das mesmas frases feitas, diatônicas ou pentatônicas, mas mantidas juntas, não por qualquer poder intrínseco de ligação, mas apenas por um fundo rítmico forçado e uma sequência banal de acordes. Ozzy Osbourne ilustra o que eu tenho em mente:  não há sentido em esta melodia estar sob direitos autorais, e tampouco em haver processos por quebra de direitos.


Ainda mais frequente é a melodia sobre uma só nota, que pode subitamente mudar de diapasão para uma terceira quando a harmonia muda, mas que, se isto não ocorre, se mantem igual, confiando no fundo musical para prosseguir. Eis aqui osKooks, em  “Ooh La.”


Ao repetirem uma só nota, eles elidem a linha melódica para o ritmo, que é, ele mesmo, reduzido a uma batida regular que tem muito pouca ou nenhuma força musical. Eu convido vocês a procurarem por este artifício, que ocorre incontáveis vezes no pop contemporâneo. Com estes artifícios -- frases feitas e notas repetidas -- um músico pop pode evitar o verdadeiro desafio de fabricar uma melodia e que é produzir o movimento virtual que impulsionará a melodia adiante, com ou sem uma conclusão.

As melodias são de muitas espécies e não deveríamos criticar o pop só porque ele não obedece às regras de uma tradição à qual ele não pertence. Os compositores barrocos escreveram melodias; mas estas melodias tendem a ser muito diferentes de qualquer coisa que hoje chamariamos de uma melodia no sentido da cantiga. Eis aqui um exemplo de J.S. Bach—“Erbarme Dich”, da Paixão Segundo São Mateus, uma linda melodia que começa com uma batida fraca e prossegue de um período a outro, como se pudesse continuar para sempre.


Aqui, todas as fronteiras são fracas e a melodia pode ser subdividida de inúmeras maneiras, para se permitirem múltiplas elaborações no curso da ária. E no entanto, ela envolve um raciocínio melódico da mais alta ordem. Ela não é nem um tema nem uma melodia no sentido da cantiga, mas um melisma ininterrupto, que atira esporos à sua volta, enquanto cresce. Em muitos sentidos, a história da melodia desde Bach tem sido uma história da retratação -- uma constante concentração de seus elementos, à medida em que o melisma é reduzido aos temas da sonata-forma e expandidos novamente para as amplas melodias dos românticos, antes de serem novamente reduzidos a motivos e frases melódicas. E no entanto, em tudo isto nós observamos um intenso raciocínio musical, à medida em que os compositores lutavam para evitar a banalidade  e fazer melodias e frases que atraíssem a simpatia e agitassem o coração. A grande questão para o crítico do pop é se ele apresenta qualquer tentativa semelhante de inovação melódica.

A "regressão da audição"
Adorno atacou algo que chamou de a "regressão da audição", que ele acreditava que tinha infectado toda a cultura musical da América moderna. E independente do quão exagerada sua crítica à songbook americana possa nos parecer agora, eu pessoalmente não tenho dúvidas de que esta "regressão" é exatamente o que ouvimos no tipo de pop que estou justamente discutindo. Por favor, observem que não estou falando da letra. Estou falando da experiência musical, que tornou-se truncada, embriônica, reduzida a uma batida externa e frequentemente subjugada pelo mecânico. Certamente é correto falar de um novo tipo de audição, talvez de um tipo que não é audição de forma alguma, já que não há qualquer melodia de que se possa falar, já que o ritmo é mecânico e já que o único convite à dança é um convite para se dançar consigo mesmo. E é mais fácil imaginar um tipo de pop que não seja como o pop que está com o ouvinte ao invés de se impor a ele. Não é preciso voltar a Elvis ou aos Beatles para se encontrarem exemplos .

Antes de continuar, direi algumas palavras sobre a harmonia. O repertório barroco nos lembra de que há um movimento musical de tipo sutil e oni-abrangente que tem pouco ou nada a ver com a melodia, bem como uma batida rítmica apenas embrionária, mas no qual tudo está empregado em progressões harmônicas -- e uma música assim pode se revelar profundamente reflexiva, ao modo desta passagem de uma suíte para violoncelo de Bach: nada além de acordes interrompidos, nascendo uns dos outros e a eles regressando, mas com um tipo de movimento sedutor que conquista inteiramente o ouvido.


Um dos triunfos da cultura auditiva está na evolução de uma música na qual as progressões melódicas, rítmicas e harmônicas se movem de mãos dadas. As harmonias não são apenas sequências de acordes às quais as melodias se impõe, mas aventuras em si mesmas, sofrendo as influências da linha melódica e, por sua vez, impondo-se a ela. Por alguma razão, Adorno não percebeu que o estilo do jazzse enquadra exatamente nesta tradição e que as sequências fundamentais do bluese o jazz de Nova Orleãs muito em breve adamptaram-se a um novo tipo de fatura melódica, na qual mais uma vez harmonias bastante complexas parecem influenciadas por melodias também complexas, muito embora ambas sejam de curto fôlego e se encaminhem rapidamente para sua conclusão. Eis aqui um celebrado exemplo disto: "Round Midnight", de Thelonious Monk.


Agora, não deve ter passado desapercebido que, nos exemplos que dei, as progressões harmônicas normamente tem pouco ou nada a ver com a linha melódica. Isto é óbvio demais no caso de Ozzy Osbourne, no qual a melodia é carregada pela harmonia e não tem vida própria, sendo a própria harmonia uma sequência piegas de tríades. Nem todo pop é assim, é claro; às vezes, há inventividade harmônica verdadeira, como no Led Zeppelin, em Jimi Hendrix, e em alguns exemplos de heavy metal. O propósito de meus exemplos não é condenar definitivamente a música e a cultura pop, mas fazer comparações. E o sentido destas comparações é duplo: primeiro, persuadir o fã do pop que elas são possíveis, mesmo dentro do mundo do pop; em segundo lugar, mostrar que uma comparação leva inevitavelmente a um juízo e o juízo, por sua vez, a uma avaliação moral.

O juízo do não-juízo
Não fazer juízos na verdade é já ter feito um tipo de julgamento: é sugerir que, no fundo, não importa o que você escuta ou ao som do que você dança; e que não há distinção moral entre os vários hábitos de audição que surgiram na era da reprodução mecânica. Esta é uma posição moralmente carregada e que ofende o senso comum. Sugerir que as pessoas que vivem com uma batida métrica como fundo constante de seus pensamentos e movimentos vivem do mesmo modo, com o mesmo tipo de atenção e o mesmo padrão de desafios e recompensas que as outras que só conhecem música de se sentarem para a ouvir, limpando suas mentes, enquanto isto, de outros pensamentos -- tal sugestão é certamente implausível.

Mudanças na cultura musical andam de mãos dadas com mudanças nas leis, já que as mudanças nas leis muitas vezes refletem pressões da cultura.

Do mesmo modo, sugerir que quem dança à maneira solipsista encorajada pelometal ou pela indie music compartilha de uma mesma forma de vida com os que dançam, quando dançam, em formação, com o espírito registrado tão eloquentemente por Schiller, é dizer algo igualmente implausível. A diferença não está simplesmente no tipo de movimentos feitos; é uma diferença de maleabilidade social e de valor relativo depositado em estar com o próximo ao invés de sobre econtra ele.

Se voltarmos por um instante ao que eu disse anteriormente sobre o ritmo e a melodia, reconheceremos que, o que quer que desejemos dizer sobre o caráter moral da música, ele está atrelado ao movimento que ouvimos na música. Este movimento é um sinal de vida e respondemos a ele fazendo nossos próprios movimentos simpáticos, como quando dançamos com a música ou gingamos com ela, enquanto a ouvimos. O movimento na música surge internamente à linha musical e só está lá na medida em que é ouvido pelo ouvido imaginativo. Mas há um outro tipo de movimento que recebemos através da música: o movimento que não está na música, mas é imposto à ela, por uma batida que não tem ligação com a linha melódica. Tal movimento pode ser comunicado através da música, mas surge externamente, nas batidas e no zumbido de uma máquina, no pulsar de um aparelho eletrônico, em uma voz que berra ou no som provocativo de Alice, em um estado de excitação semi-nauseada.

Muito pouco está surgindo no pop que mostre invenção melódica ou mesmo uma consciência do porque a melodia importa -- ou seja, uma consciência de seu significado social e sua capacidade de dar substância musical a uma canção estrófica.
Como sugeri anteriormente, o movimento musical se dirige a nossas simpatias: ele nos pede para que nos movamos com ele. Movimentos externos nos são impostos. Não se pode se mover facilmente com eles, mas pode-se submeter-se a eles. Quando uma música organizada por este tipo de movimento externo é tocada para uma dança, ela automaticamente atomiza as pessoas na pista de dança. Elas podem dançar na presença umas das outras, mas apenas com muita dificuldade umas com as outras. E aí a dança não é algo que se faça, mas algo que acontececom a pessoa -- uma batida da qual ela está suspensa, como Alice, pendurada em seus fios.

Só criaturas racionais dançam e em condições normais elas o fazem colocando suas personalidades e liberdade à mostra, da maneira descrita por Schiller. Quando se está sob o controle de um ritmo externo e mecânico, a liberdade da pessoa é atropelada e é difícil, então, mover-se de modo que se sugira uma relação pessoal com um parceiro -- a relação eu-e-tu sobre a qual a sociedade está construída. Platão certamente tinha razão, portanto, em achar que, quando nos movemos no tempo da música, estamos educando nosso caráter, pois estamos aprendendo um aspecto de nossa corporeidade, como seres livres.

O que quer que desejemos dizer sobre o caráter moral da música, ele está atrelado ao movimento que ouvimos na música. Este movimento é um sinal de vida e respondemos a ele fazendo nossos próprios movimentos simpáticos, como quando dançamos com a música ou gingamos com ela, enquanto a ouvimos.
A corporeidade pode assumir formas virtuosas e viciosas. Para tomar um só exemplo, há uma profunda diferença, na questão da apresentação sexual, entre a modéstia e a lascívia. A modéstia dá espaço para o outro, como alguém com quem se está. A lascívia está na companhia do outro, mas não com ele ou ela, já que ela é uma tentativa de cancelar a liberdade do outro se retirar. E é muito claro que estes traços de caráter são exibidos na dança. A idéia de Platão era que, se uma pessoa exibe lascívia nas danças de que mais gosta, então ela está muito mais próxima de adquirir o hábito. Para colocar a coisa na linguagem que estou usando: ela aprende a estar na companhia da (não com a) outra pessoa que ele encontra. Não vejo razão para duvidar disto.

Agora, dançar não é só se mover, nem é se mover em resposta a um som, batida ou o  que quer que seja. Os animais fazem isto e podem-se treinar animais e elefantes para se moverem no tempo de uma batida na arena do circo, com um efeito que parece dança. Mas eles não estão dançando mais do que os pássaros estão cantando. A dança é, em sua forma social verdadeira, mover-se com algo, estando-se consciente de que isto é o que se está fazendo. A pessoa se move com a música e também (em danças antiquadas) com seu parceiro. Este "mover-se com" é algo que os animais não podem fazer, já que isto envolve a imitação deliberada da vida que uma outra fonte, que não o próprio corpo dela, irradia.  Isto, por sua vez, exige uma concepção do eu e do outro e da relação entre eles -- uma concepção que, eu diria, é inviável fora do contexto possibilitado pelo uso da linguagem e da consciência da primeira pessoa.

Eu sustento que há diferenciações a serem feitas dentro da música popular e que elas dizem respeito às próprias dimensões da significação musical -- ritmo, melodia e harmonia -- que tornam a música em todas as suas formas um espelho tão importante da vida humana. Há música popular melodiosa em abundância e também música com a qual se pode cantar junto e ao som da qual se pode dançar de maneiras sociáveis. Tudo isto é óbvio. No entanto, há dentro da música popular um outro tipo de prática completamente diferente em crescimento, na qual o movimento não está mais contido na linha musical, mas é exportado para um lugar em seu exterior, para um centro de pulsação que não deseja ser escutado, mas que se submeta a ele. Se a pessoa de fato se submete, as qualidades morais da música desaparecem por trás da animação; se vocês escutarem, entretanto, e escutarem criticamente como estou sugerindo, vão discernir estas qualidades morais, que são tão vívidas quanto a nobreza na Segunda Sinfonia de Edward ou o horror naErwartung, de Schoenberg. E aí vocês poderão se sentir tentados a concordar com Platão que, se esta música for permitida, então as leis que nos governam vão mudar.

Roger Scruton é membro do American Enterprise Institute. Ele é escritor e  filósofo, discorre sobre questões públicas e tem escrito em profusão sobre estética, bem como sobre assuntos políticos e culturais.


OUTRAS LEITURAS: Scruton recentemente discutiu "O alto custo de se ignorar a beleza" e explicou "Por que a televisão nunca vai envenenar a cabeça de meus filhos." Em relação ao comunismo da Europa Oriental, ele escreve sobre "A chama que foi apagada pela liberdade." Ele também explorou "A beleza e sua profanação.”
1-Nota:

Friedrich v. Schiller, "Kallias or Concerning Beauty: Letters to Gottfried Keller," in J.M. Bernstein ed., Classic and Romantic German Aesthetics, Cambridge 2003, 173-4. (O autor mudou levemente a tradução.)


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