JOÃO PEREIRA COUTINHO
Só somos destruídos pelo que não controlamos quando alimentamos em nós a ilusão de que tudo controlamos
SEMPRE QUE acontece uma tragédia nas nossas vidas -um fracasso amoroso, uma doença súbita, a perda de alguém que amamos- a velha pergunta regressa para nos assombrar: "Por que eu?" "Por que a mim?".
A pergunta certa não é essa, naturalmente. A pergunta certa seria: "E por que não eu?", "E por que não a mim?".
Mas a nossa "forma mentis" está programada para recusar "a tirania da contingência", para usar a expressão primorosa do narrador de Philip Roth no seu último romance, "Nemesis" (Jonathan Cape, 280 págs.). Aceitar a "tirania da contingência", tema fulcral das obras tardias de Roth, seria destruir a crença basilar da nossa civilização racionalista: a de que tudo depende dos nossos esforços racionais rumo a um fim perfeito. E racional.
Essa crença é cultivada por Bucky Cantor, o personagem central de "Nemesis". Bucky começou mal na vida: a mãe morreu no parto; o pai apodreceu no cárcere. Bucky foi educado pelos avós. Melhor: pelo avô, que incutiu nele uma inabalável crença nas suas forças e capacidades.
O resultado não poderia ser mais brilhante: física e mentalmente forte, Bucky é um Super-Homem em Newark, o território eletivo de Roth.
Claro que, para sermos rigorosos, a "tirania da contingência" sempre esteve presente na vida de Bucky.
Perder a mãe e o pai, mas ter avós disponíveis para uma educação de excelência, não é para qualquer um. É, digamos, uma "sorte". A "contingência" não significa necessariamente um mal; a contingência significa apenas que existe uma margem de imponderabilidade nas condutas humanas onde o mal e o bem acontecem.
E acontece com Bucky. Depois de ter sido salvo pelos avós na infância, Bucky será novamente salvo. Dessa vez, salvo na juventude e uma vez mais por um infortúnio pessoal.
A Segunda Guerra Mundial rebenta para os Estados Unidos depois de Pearl Harbor. Mas Bucky não marcha para o Pacífico como os rapazes da sua idade. Uma visão deficiente e um excesso de dioptrias obrigam-no a ficar em casa. Um destino que Bucky aceita, resignado, embora com um sentimento de culpa que já denuncia a sua incapacidade para aceitar que nem tudo obedece à nossa exclusiva vontade. Pela segunda vez, Bucky é salvo pela "tirania da contingência".
Não haverá terceira vez. Porque, se Bucky não foi à guerra, a guerra vem até ele. Não uma guerra tangível, feita de armas ou bombas; mas uma guerra imaterial, silenciosa e pestífera.
Estamos em 1944 e Newark estremece com uma epidemia de poliomielite. Falar da pólio, hoje, é o mesmo que falar de um dinossauro: uma doença de museu, não mais, depois da descoberta da vacina na década de 50.
Mas a pólio não era uma doença de museu em 1944. Era um vírus furtivo que roubava vidas e destroçava infâncias com violência inaudita.
Philip Roth é primoroso na descrição dessa peste: na descrição do medo que contamina a comunidade; do pânico que se apodera dela; da morte que se abate sobre os mais frágeis; da raiva que é cultivada pelas famílias enlutadas; e, sobretudo, da impotência dos homens para travar um castigo de Deus.
Pelo menos, Bucky acredita que sim. Faz parte da mentalidade racionalista atribuir ao divino a natureza do imponderável. Só um Deus louco, injusto e cruel pode enviar um castigo tão louco, tão injusto e tão cruel.
Mas é justificativa que dura pouco. A educação de Bucky conspira contra ele e a sua consciência exige um culpado mais terreno, mais humano. A pólio pode vir do patrão lá de cima. Mas é preciso alguém que a transporte e dissemine cá por baixo.
Esse alguém só pode ser Bucky, professor de ginástica que convive diariamente com os rapazes. E que, ao vê-los tombar, um por um, como soldados numa batalha invisível, assume em si a responsabilidade do massacre.
Lendo "Nemesis", narrativa magistral de um Roth crepuscular, entendemos como a contingência só é destrutiva quando existe em nós "um sentido deslocado de responsabilidade", para usar as sábias palavras do médico da história.
Ou, trocando em miúdos, só somos verdadeiramente destruídos por aquilo que não controlamos quando alimentamos em nós a ilusão de que tudo controlamos.
Agora que 2010 caminha para o fim, está encontrado o livro do ano.
jpcoutinho@folha.com.br
Bom dia cavaleiro,
ResponderExcluirSou leitor assíduo do seu blog, que ao meu ver, presta um grande serviço as pessoas de bem, juntamente com o júlio severo e o coronel.
Gostaria só de acrescer uma informação a essa matéria: no trecho "Estamos em 1944 e Newark estremece com uma epidemia de poliomielite. Falar da pólio, hoje, é o mesmo que falar de um dinossauro: uma doença de museu, não mais, depois da descoberta da vacina na década de 50."
Essa informação é inverídica. Basta-se andar pelos interiores do Nordeste/Norte/Centro Oeste que se veem vários casos de pólio sim.
A vacina não é um milagre, ela precisa que o organismo tenha condições de produzir anticorpos suficientes para a imunização e, como é público e notório, e, por mais que o molusco bêbado insista em dizer ao contrário, há casos de desnutrição gravíssimos em nosso país.
Olá Eduardo
ResponderExcluirVou adicionar sua observação ao artigo, como dica de um leitor.
Importante sua intervenção!
Abraços e obrigado.