Escrito por Ipojuca Pontes
Quinta, 27 de Maio de 2010 23:30
Conforme determina cláusula pétrea, um dos primeiros passos de Lenin na rota da “construção do socialismo” dentro da URSS foi estabelecer o controle dos “meios sociais de produção”, nele incluído, óbvio, o completo domínio sobre os veículos de comunicação, os estabelecimentos de ensino e a produção cultural. Mas antes de adotar qualquer medida, demonstrando grande senso de objetividade, logo depois de desfechar seguro golpe sobre o governo provisório de Kerensky, o mentor da “ditadura do proletariado” tomou a iniciativa de mandar um bando armado se apossar das chaves do cofre do banco do Estado russo. Ele queria, desde logo, o controle da grana.
(Só a título de ilustração, o historiador inglês Orlando Figes, no seu bem documentado livro sobre a Revolução Russa, A Tragédia de um Povo - Record, Rio, 1999 -, relata episódio, considerado a um só tempo grotesco e brutal, do infeliz diretor do banco oficial que, ao negar a entrega das chaves da caixa-forte ao bando revolucionário, levou um tiro na nuca depois de perder parte da mão, arrancada por uma dentada.)
Ao impor o seu sistema de governo, de caráter totalitário, Lenin, amparado no poder dissuasório da coerção e da violência, tinha por objetivo a tomada (e a destruição) dos “meios de produção e expressão do pensamento burguês” (em russo, burzhooi), tidos historicamente como ultrapassados. Caberia à ordem emergente estabelecer os padrões de supremacia dos valores do pensamento proletário e fazer dos meios de comunicação e da produção cultural instrumentos ideológicos a serviço da propaganda e das metas revolucionárias sob o controle burocrático do Partido Bolchevique (leia-se comunista).
O modelo de “organização da cultura” imposto por Lenin nos primeiros anos do regime, embasados na censura e no patrocínio estatal, só atingiu o patamar da excelência na era Stalin, univocamente voltada para a expansão da ideologia comunista no seio da sociedade. Para consolidar tal projeto e manter o ativo controle do aparato burocrático sobre a difusão das ideias e da criação artística Joseph Stalin, então considerado “Guia Genial dos Povos”, não precisou chafurdar muito: ele tinha ao seu dispor, alojado no Comitê Central do Partido Comunista (PC), a figura de Andrei Aleksandrovich Jdanov, o estrategista da política cultural do regime e mentor do “realismo socialista”, o preceito estético, de “valor universal”, que tinha como princípio comprometer a criação artística - notadamente no cinema, teatro, na literatura, música e pintura - com “a transformação ideológica e a educação do proletariado para a formação do novo homem socialista”.
Desde logo, com as chaves do cofre nas mãos, Jdanov disse a que veio: fiel intérprete do espírito revolucionário, deixou a entender que dali em diante a atividade cultural seria uma empresa voltada para a implantação do socialismo. Dentro deste escopo, Jdanov selecionou artistas e burocratas afiliados ao PC e estabeleceu as novas regras para obtenção dos financiamentos oficiais no terreno das artes. Para avalizar os projetos culturais (ou censurá-los) e distribuir as benesses ele fixou critérios, organizou comissões e conselhos e, no controle seletivo da produção cultural, em vez de arte, criou a mais formidável máquina de propaganda jamais imaginada, capaz de fazer o mundo acreditar que Stalin era Deus e que o povo russo, submetido a eternas cotas de racionamento, vivia no paraíso terrestre.
Pensadores e artistas genuínos pagaram caro pelo processo cultural acionado pelo stalinismo, decerto mantido até hoje em várias partes do mundo (vide Cuba, China e adjacências). A partir da “seletividade” imposta por Jdanov no campo da produção cultural, centenas de criadores foram marginalizados da atividade artística. Outros foram presos ou ficaram loucos. Outros tantos foram cortados da lista de distribuição de benesses oficiais e segregados como “formalistas”, “reacionários”, “cosmopolitas” e “inimigos do povo”.
No reino discricionário da cultura oficial soviética, por exemplo, a notável poetisa Anna Akhmátova (para Jdanov, “meio freira, meio meretriz”) foi levada à miséria; Maiakovski, ao suicídio; Soljenitsyn e Boris Pasternak, aos campos de concentração. Dostoievski, por sua vez, foi banido das bibliotecas públicas. O próprio Serguei Eisenstein, o inventivo cineasta da propaganda stalinista, amargou o diabo depois que exibiu para o crivo crítico de Stalin a sua versão de Ivan, o Terrível (parte dois), morrendo em seguida.
Em tempos recentes, depois da morte de Stalin, aos preceitos do jdanovismo foram adicionados, no campo da “organização da cultura” socialista, os ensinamentos de Antonio Gramsci (Il Gobbo), teórico comunista italiano, criador da estratégica “revolução passiva”. O modelo traçado por Gramsci para a construção do socialismo, em vez do apelo ao mito da força proletária, privilegia o papel da cultura e o poder multiplicador dos meios de comunicação, fundamental para a difusão de um novo “senso comum” no seio da sociedade. Sem a “revolução do espírito”, diz Gramsci, “a ser disseminada pelo intelectual orgânico, não se pode destruir o Estado burguês” (leia-se democrata).
No Brasil, ao assenhorear-se do poder, Lula e seus agentes passaram a laborar, dia e noite, aberta ou veladamente, na “construção do socialismo”. Para consolidar tal projeto se faz necessária, como o presidente-sindicalista já deixou claro, a expansão do “Estado Forte”, em que ao indivíduo cabe pouco mais do que o papel de burro de carga, a alimentar uma colossal e dispendiosa estrutura burocrática.
Na esfera da cultura, desde a proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), em 2004, o governo, sempre tentando o controle total sobre os recursos tomados à sociedade, busca a ingerência direta no processo da criação artística. Nada leva a crer que a atual investida na revisão da Lei Rouanet tenha outro objetivo. Caberia ao Congresso ficar atento a essa ameaça totalitária.
* Cineasta e jornalista, é autor do livro Politicamente Corretíssimos
(Só a título de ilustração, o historiador inglês Orlando Figes, no seu bem documentado livro sobre a Revolução Russa, A Tragédia de um Povo - Record, Rio, 1999 -, relata episódio, considerado a um só tempo grotesco e brutal, do infeliz diretor do banco oficial que, ao negar a entrega das chaves da caixa-forte ao bando revolucionário, levou um tiro na nuca depois de perder parte da mão, arrancada por uma dentada.)
Ao impor o seu sistema de governo, de caráter totalitário, Lenin, amparado no poder dissuasório da coerção e da violência, tinha por objetivo a tomada (e a destruição) dos “meios de produção e expressão do pensamento burguês” (em russo, burzhooi), tidos historicamente como ultrapassados. Caberia à ordem emergente estabelecer os padrões de supremacia dos valores do pensamento proletário e fazer dos meios de comunicação e da produção cultural instrumentos ideológicos a serviço da propaganda e das metas revolucionárias sob o controle burocrático do Partido Bolchevique (leia-se comunista).
O modelo de “organização da cultura” imposto por Lenin nos primeiros anos do regime, embasados na censura e no patrocínio estatal, só atingiu o patamar da excelência na era Stalin, univocamente voltada para a expansão da ideologia comunista no seio da sociedade. Para consolidar tal projeto e manter o ativo controle do aparato burocrático sobre a difusão das ideias e da criação artística Joseph Stalin, então considerado “Guia Genial dos Povos”, não precisou chafurdar muito: ele tinha ao seu dispor, alojado no Comitê Central do Partido Comunista (PC), a figura de Andrei Aleksandrovich Jdanov, o estrategista da política cultural do regime e mentor do “realismo socialista”, o preceito estético, de “valor universal”, que tinha como princípio comprometer a criação artística - notadamente no cinema, teatro, na literatura, música e pintura - com “a transformação ideológica e a educação do proletariado para a formação do novo homem socialista”.
Desde logo, com as chaves do cofre nas mãos, Jdanov disse a que veio: fiel intérprete do espírito revolucionário, deixou a entender que dali em diante a atividade cultural seria uma empresa voltada para a implantação do socialismo. Dentro deste escopo, Jdanov selecionou artistas e burocratas afiliados ao PC e estabeleceu as novas regras para obtenção dos financiamentos oficiais no terreno das artes. Para avalizar os projetos culturais (ou censurá-los) e distribuir as benesses ele fixou critérios, organizou comissões e conselhos e, no controle seletivo da produção cultural, em vez de arte, criou a mais formidável máquina de propaganda jamais imaginada, capaz de fazer o mundo acreditar que Stalin era Deus e que o povo russo, submetido a eternas cotas de racionamento, vivia no paraíso terrestre.
Pensadores e artistas genuínos pagaram caro pelo processo cultural acionado pelo stalinismo, decerto mantido até hoje em várias partes do mundo (vide Cuba, China e adjacências). A partir da “seletividade” imposta por Jdanov no campo da produção cultural, centenas de criadores foram marginalizados da atividade artística. Outros foram presos ou ficaram loucos. Outros tantos foram cortados da lista de distribuição de benesses oficiais e segregados como “formalistas”, “reacionários”, “cosmopolitas” e “inimigos do povo”.
No reino discricionário da cultura oficial soviética, por exemplo, a notável poetisa Anna Akhmátova (para Jdanov, “meio freira, meio meretriz”) foi levada à miséria; Maiakovski, ao suicídio; Soljenitsyn e Boris Pasternak, aos campos de concentração. Dostoievski, por sua vez, foi banido das bibliotecas públicas. O próprio Serguei Eisenstein, o inventivo cineasta da propaganda stalinista, amargou o diabo depois que exibiu para o crivo crítico de Stalin a sua versão de Ivan, o Terrível (parte dois), morrendo em seguida.
Em tempos recentes, depois da morte de Stalin, aos preceitos do jdanovismo foram adicionados, no campo da “organização da cultura” socialista, os ensinamentos de Antonio Gramsci (Il Gobbo), teórico comunista italiano, criador da estratégica “revolução passiva”. O modelo traçado por Gramsci para a construção do socialismo, em vez do apelo ao mito da força proletária, privilegia o papel da cultura e o poder multiplicador dos meios de comunicação, fundamental para a difusão de um novo “senso comum” no seio da sociedade. Sem a “revolução do espírito”, diz Gramsci, “a ser disseminada pelo intelectual orgânico, não se pode destruir o Estado burguês” (leia-se democrata).
No Brasil, ao assenhorear-se do poder, Lula e seus agentes passaram a laborar, dia e noite, aberta ou veladamente, na “construção do socialismo”. Para consolidar tal projeto se faz necessária, como o presidente-sindicalista já deixou claro, a expansão do “Estado Forte”, em que ao indivíduo cabe pouco mais do que o papel de burro de carga, a alimentar uma colossal e dispendiosa estrutura burocrática.
Na esfera da cultura, desde a proposta de criação da Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav), em 2004, o governo, sempre tentando o controle total sobre os recursos tomados à sociedade, busca a ingerência direta no processo da criação artística. Nada leva a crer que a atual investida na revisão da Lei Rouanet tenha outro objetivo. Caberia ao Congresso ficar atento a essa ameaça totalitária.
* Cineasta e jornalista, é autor do livro Politicamente Corretíssimos
Fonte: O Estado de S. Paulo - SP, Opinião, Ipojuca Pontes, 27/04/2009
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