CONJUR
[Artigo publicado originalmente no site Zwela Angola, em 15 de junho de 2010.]
POR ANTONIO CARLOS LACERDA
Se somente um homem estivesse preso injustamente, já teria valido a pena o esforço, pois além de não haver como mensurar o valor de um dia de liberdade, estar-se-ia reiterando o apreço da nação à higidez do Estado de Direito”.
Esta foi a declaração do então presidente do Supremo Tribunal Federal de Justiça, ministro Gilmar Ferreira Mendes, lembrando os mutirões carcerários realizados pelo Conselho Nacional de Justiça que ouvi a população, analisou e corrigiu processos, apurou e denunciou a violação de direitos humanos de presos no Brasil.
O relatório do Conselho Nacional de Justiça do Brasil sobre a inspeção nos presídios do país foi de tamanha gravidade, ao expor as entranhas e vísceras do sistema carcerário brasileiro, que o ministro Gilmar Mendes e o corregedor Nacional de Justiça, ministro Gilson Dipp, comandaram, pessoalmente, o mutirão carcerário nacional.
Em uma corajosa declaração, que mostrou espírito de justiça e responsabilidade social, o próprio superintendente de Polícia Prisional do Estado do Espírito Santo, delegado Gilson dos Santos Lopes Filho, chegou a dizer, em um programa de televisão, que 20% das pessoas que estavam presas sob a acusação de tráfico de drogas não são traficantes, mas, sim, simples usuários, presos nas “bocas de fumo”, comprando algum tipo de droga para uso próprio.
A declaração do delegado Gilson Lopes deixa claro a total incompetência (ou conveniência) da polícia para diferenciar um usuário de um traficante de drogas. Fato que é referendado pelo Ministério Público, através da denúncia de um promotor, certamente desinteressado em saber se realmente existem provas contra o acusado e se são forjadas ou autênticas.
Nos presídios do Brasil existem hoje 500 mil cumprindo pena ou aguardando julgamento, só que a capacidade física de todo o sistema carcerário do País comporta, humanamente, apenas a metade dessa população.
Os presídios no Brasil são verdadeiros depósitos de restos humanos, filiais do inferno, universidades do crime, e a sua principal vítima é a própria sociedade, que acredita e financia o Estado para dar a ela a paz e a segurança social que não existem.
No século passado, em 1935, Sobral Pinto, um advogado católico e anti-comunista, num gesto de surpreendente e singular grande humana, invocou a Lei de Proteção dos Animais para tirar o líder comunista Luiz Carlos Prestes das garras da polícia do então ditador Getulio Vargas, que permitiu (ou ordenou) torturas nos presídios do País.
Com 500 mil presos, o Brasil é o quarto País do mundo em população carcerária, perdendo apenas para os Estados Unidos, com 2,2 milhões; China, com 1,6 milhão; e Rússia, com 800 Mil presos. No Brasil, as leis sobre direitos humanos são apenas teóricas, e, se praticadas, destinam-se às classes sociais privilegiadas e abastadas. Os que não têm privilégios ou não são abastados apodrecem nas prisões como restos humanos.
Dessa forma, um condenado por homicídio, por exemplo, fica misturado com condenados por diversos outros tipos de delitos, e, quando posto em liberdade, está qualificado e capacitado para a prática dos mais diversos tipos de crimes que a mente humana poder conceber.
O Brasil é um sofisticado exemplo de como combater o crime pelo próprio crime. Respeitadas as devidas e honrosas exceções, camuflados dentro dos organismos responsáveis pela prisão de suspeitos e guarda de presos no Brasil (policial militar, policial civil e agente penitenciário) estão verdadeiros “cânceres sociais”.
As prisões e o tratamento dado aos presos no Brasil são de tal forma degradantes e desumanos que, em ao invés de recuperá-los para o convívio social, transforma-os em monstros revoltados em busca de vingança, tão logo saiam dos presídios. O Brasil não vai resolver a questão da violência enquanto continuar tratando os infratores da lei como animais.
Um inocente que tenha sido preso por erro policial ou judicial, por exemplo, após cumprir a injusta pena a ele imposta, sairá da cadeia pior que entrou, em busca de uma vingança brutal e desenfreada, não contra os responsáveis pelo erro, mas, sim, contra toda a sociedade.
Isso se deve à falta de triagem nos presídios e de responsabilidade e justiça social das autoridades que ocupam cargos e funções no âmbito do sistema carcerário do País, fato que tem levado condenados por pequenos e leves delitos ao convívio durante anos com ferozes criminosos praticantes de vários outros tipos de delitos.
A criminalidade no Brasil jamais será reduzida se não houver um novo e eficiente modelo carcerário que objetive a verdadeira recuperação social do preso. A própria arquitetura dos presídios, com suas jaulas imundas, os maus tratos físicos, mentais e morais aos presos, é um singular exemplo do desprezo pela condição humana.
No sistema carcerário brasileiro está cínica e criminosamente estampado que, ao concebê-lo, não se levou em conta que o preso, por maior e mais grave que tenha sido o seu crime, é um ser humano, e como tal tem o direito de ser tratado.
Em diversos estados, entre eles se destacam o Espírito Santo, Paraná e Santa Catarina, os presos, condenados ou não, são jogados em depósitos de restos humanos, em condições degradantes, até mesmo para animais. As celas são caixas metálicas, tipo contêineres, sem janelas e sem ventilação, criminosamente inadequadas para a sobrevivência humana.
A simples existência de jaulas metálicas já é um delito hediondo, inominável, por parte do Estado que tem o dever de zelar pela integridade e dignidade de quem está sob a sua custódia e guarda. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) disse que as prisões do Espírito Santo são um crime de lesa humanidade.
Em 2009, um dos mais importantes jornais do País, estampou manchete de capa, afirmando que “Presos vivem como animais no Espírito Santo”. Através de inspeção feita nos presídios do Estado, o Conselho Nacional de Justiça constatou superlotação, insalubridade e rotineira violação de direitos humanos dos presos.
Um dos integrantes da equipe de inspeção disse que os presos “vivem como animais, em meio a uma grande quantidade de lixo acumulado, insetos e umidade, e vários presos doentes". Por sua vez, o ministro Gilmar Mendes levantou a voz e fez severas críticas ao sistema carcerário, exigindo e determinando urgentes e saneadoras providências.
Às vésperas da inspeção, presos de uma unidade teriam sido dopados para evitar tumulto, e 121 jovens foram transferidos para evitar o flagrante de superlotação. Juízes federais chegaram a exigir botas de borracha, luvas, máscaras e outros equipamentos para continuar a inspeção. Em uma das unidades, um dos assessores dos juízes federais vomitou na hora da vistoria em uma cela para adolescentes.
A própria Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República criou uma comissão especial com o objetivo de apurar denúncias de violação dos direitos humanos no sistema penitenciário capixaba devido as denúncias de tortura e esquartejamento de presos.
No Brasil, as irregularidades e desrespeito aos direitos humanos nos presídios do Estado do Espírito Santo constam de um relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, após inspeções nas celas metálicas do presídio de Novo Horizonte, na cidade de Serra. O Conselho chegou a pedir intervenção federal no Espírito Santo, diante dos problemas verificados nos presídios.
O juiz federal Erivaldo Ribeiro constatou nas celas metálicas e na delegacia de Novo Horizonte “condições estruturais gravíssimas e sanitárias inaceitáveis”. Na delegacia estavam 369 detentos, em um espaço para apenas 70; nas jaulas metálicas 310 presos, em um espaço para 140.
Por causa disso, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil pediu o enquadramento nas penas da lei, e de maneira exemplar, dos responsáveis pela implantação do sistema e denunciou o fato à Anistia Internacional, Organização das Nações Unidas e Corte Interamericana de Direitos Humanos, afirmando tratar-se de “escândalo insuportável, que merece o mais veemente repúdio da sociedade brasileira”.
Segundo o próprio ex-ministro da Justiça, o comunista Tarso Genro, “de cada dez detentos colocados em liberdade, sete voltam à prisão por cometer novos delitos”. Isso confirma o requintado aprendizado que o condenado tem dentro do presídio durante o cumprimento da perna a ele imposta, muitas vezes injusta.
Criminalistas e especialistas no assunto afirmam que “a prisão priva o homem de elementos imprescindíveis à sua existência, como a luz, o ar e o movimento, por serem insalubres, corrompidas, superlotadas, esquecidas e desumanas”.
Em Brasília, um relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados apontou um quadro "fora da lei", trágico e vergonhoso, que invariavelmente atinge gente pobre, jovem e semi-alfabetizada. No Estado do Ceará, presos se alimentavam com as mãos, e a comida, "estragada", era distribuída em sacos plásticos que, no Estado de Pernambuco, serviam para que detentos isolados pudessem defecar.
No Estado do Paraná, o relatório informou sobre um preso recolhido em cela de isolamento (utilizada para punição disciplinar) havia sete anos, período que passou sem ter recebido visitas nem tomado banho de sol. No Rio Grande do Sul, constatou-se que, nas visitas aos presos, seus familiares “eram obrigados a ficar nus, fazer flexões e arregaçarem a vagina e o ânus para vistoria".
Essa é a real situação do sistema prisional brasileiro, fato que levou o Brasil a ser denunciado nas comissões de direitos humanos da ONU, OEA e Anistia Internacional.
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