A ideologia de Ridley Scott
Olavo de Carvalho
Diário do Comércio, 7 de abril de 2010
http://www.olavodecarvalho.org/semana/100407dc.html
Como limpar a imagem da utopia (modernidade) e restaurar a credibilidade da promessa? Só atribuindo os crimes da modernidade a “resíduos” de épocas anteriores, como se meros resíduos pudessem ser mais letais do que a substância ativa.
Quem vê o filme de Ridley Scott, The Kingdom of Heaven, sai do cinema com a impressão de que o cristianismo medieval foi apenas uma ideologia sanguinária de fanáticos, tiranos e ladrões. Nesse quadro, as virtudes do “perfeito cavaleiro” Balian não poderiam ter nascido dos valores religiosos que historicamente criaram a ética de cavalaria personificada nelas, mas aparecem antes como a antítese desses valores e de todo o cristianismo: Balian, duque de Ibelin, só é moralmente superior aos brutamontes ávidos de riqueza e poder que o cercam porque, em pleno ano de 1194, encarna os ideais da democracia iluminista do século XVIII e o multiculturalismo do século XXI. A Jerusalém que ele quer e defende – a mesma com que sonham aqueles dois outros primores de bondade, o rei leproso e o comandante muçulmano Saladino – é substancialmente a da ONU: um território neutro, supranacional e supra-religioso, onde uma legislação laica assegura a paz entre os diversos grupos de crentes, reduzindo o significado espiritual da cidade a uma questão de “diferenças culturais” que não devem se sobrepor aos interesses superiores da ordem pública. Tal é o “reino de Deus na Terra” como o entendem o duque de Ibelin e o diretor do filme.
Praticamente toda a visão que a modernidade tem da História – pelo menos aquela que se transmite nas escolas e na midia – é constituída de anacronismos, mas raramente eles foram levados ao extremo de fazer de um cavaleiro medieval uma aparição antecipada de Voltaire e Bill Clinton.
A percepção invertida do tempo, à qual o indiscutível talento cinematográfico de Ridley Scott dá feições de realidade verossímil, é a base mesma da mentalidade revolucionária cujo megafone supremo, desde o advento das comunicações de massa, é a indústria do show business. O arremedo de “vida intelectual” que viceja entre astros e estrelas desse ramo multibilionário da economia é o terreno mais propício para aquilo que Willi Münzenberg chamava de “criação de coelhos”: a disseminação de absurdidades politicamente úteis entre tagarelas vaidosos que as transmutam em grandes espetáculos para a completa imbecilização do povo e a glória dos projetos de poder em pauta no momento.
Não é por acaso que, em contrapartida, as belas qualidades morais do general banido Maximus, no filme anterior de Scott, The Gladiador, não precisassem ser explicadas por nenhum deslocamento histórico de sete, oito ou nove séculos, mas aparecessem diretamente como expressões do culto romano dos antepassados. Não somente Scott nada tem contra a religião estatal de Roma, mas esta é, a rigor, a fórmula ancestral do multiculturalismo laico hoje em dia apregoado como remédio universal contra a violência e a guerra (escrevi um livro inteiro sobre isso, não escrevi?).
Também não é coincidência que, em The Kingdom of Heaven, embora as duas grandes religiões em disputa sejam ambas estigmatizadas verbalmente como causas de todos os males, só uma delas seja mostrada na tela como autora de crimes. Claro, para o multiculturalismo, todas as religiões são iguais, mas umas são mais iguais que as outras: é preciso tomar todo o cuidado para não ofender a sensibilidade muçulmana. Caso contrário, como seria possível alegar a sanha homicida da Al-Qaeda e do Hamas como prova da periculosidade das religiões em geral e, como remédio, buscar a extinção, não de todas elas, mas de uma em particular, que por coincidência, por mera coincidência, não é o islamismo e sim o cristianismo? O fato de que este seja o maior fornecedor de vítimas para a violência islâmica e de que não lhe ofereça outra reação senão melosos apelos à paz mundial não afeta em nada a lógica multiculturalista, na qual os feitos de Bin-Laden, os homens-bomba ou o regime de terror de Saddam Hussein provam de maneira inequívoca a maldade da Santa Inquisição e a necessidade imperiosa de banir da sociedade decente os últimos sinais visíveis da fé cristã. A ânsia louca de dar alguma aparência de razoabilidade às conclusões práticas dessa silogística infernal levou o governo dos EUA a classificar como terroristas os grupos cristãos que, sem jamais ter matado um mosquito por isso, acreditam dever preparar-se para o fim do mundo acumulando alimentos e armas; ao mesmo tempo, o uso da palavra “terroristas” para qualificar os autores de atentados homicidas contra milhares de americanos é proibido oficialmente como ofensivo – quase tão ofensivo quanto dizer “Merry Christmas” em vez de “Happy Holidays” ou rezar o Pai Nosso em público, coisa que em várias cidades dos EUA pode dar cadeia exatamente como no Irã ou na Arábia Saudita. Mais ainda, tal como o estrangulamento repressivo da religião nacional, o favorecimento ao inimigo estrangeiro não fica só em palavras: os criminosos protegidos com desvelo paternal contra o termo que mais precisamente os qualifica são retirados das prisões militares para ser levados a julgamento em tribunais civis, com todos os direitos de cidadãos americanos. É a ideologia de The Kingdom of Heaven em ação: quando a obstinação diabólica de levar a mentira às suas últimas conseqüências se torna uma política de Estado, já não é mais possível distinguir entre a ordem pública e a alucinação psicótica.
Mas não é sem motivo que o cristianismo se tornou o bode expiatório da modernidade. No século XVIII, centenas de guias iluminados prometeram que, com a extinção da fé cristã, uma nova era de paz e tolerância se espalharia sobre a Terra. No tempo decorrido desde então, os movimentos políticos ateístas e os Estados laicos já mataram, em guerras e ditaduras, não menos de 250 milhões de pessoas – 1.250 vezes mais do que a famigerada Inquisição espanhola matara em quatro séculos –, e instituíram, mesmo nas chamadas democracias, sistemas de controle social mais opressivos do que o mais rígido inquisidor ou o mais ambicioso tirano da antigüidade poderiam ter desejado. O sonho utópico da modernidade revelou-se um pesadelo sangrento que em dois séculos ultrapassou, em horror e misérias, todos os males que o “fanatismo religioso” possa ter produzido ao longo de toda a história anterior. Como limpar a imagem da utopia e restaurar a credibilidade da promessa? Só atribuindo os crimes da modernidade a “resíduos” de épocas anteriores, como se meros resíduos pudessem ser mais letais do que a substância ativa. Que esse argumento implique fazer de Stalin um dos doze Apóstolos, de Mao Dzedong um novo São Luís e de Hitler um papa da Renascença é algo que não desencoraja no mais mínimo que seja o raciocinador iluminista: não há limites para o absurdo, quando se aposta nele a salvação da humanidade.
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