10 de abril de 2010 | 0h 00
Numa decisão para a qual poucos parecem ter atentado, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou no começo da semana passada o Projeto 418/03, que contém uma ameaça como de há muito não se via aos direitos e garantias civis da população, consagrados na Constituição brasileira. O projeto, que agora será examinado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, institui o que os juristas consideram quebra de sigilo por ricochete ? ou, na linguagem corrente, em cascata ? a partir de uma única autorização judicial.
De autoria do senador Antonio Carlos Valadares, do PSB sergipano, e apresentado em 2003, o texto pretende tornar mais ágeis e efetivas as ações contra acusados de crimes contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Medidas com esse objetivo decerto vão ao encontro do interesse público. Mas nos seus 15 artigos e 129 itens, a proposta faz tábula rasa do indispensável equilíbrio, que deve prevalecer nas sociedades democráticas, entre dois imperativos: o de defender o bem comum, nesse caso representado pelo erário, e o de preservar as franquias individuais da intrusão desabrida do Estado.
Na esfera da coibição e punição de presumíveis delitos contra as finanças públicas, como, de resto, em relação a toda forma de atropelo das leis, o Judiciário encarna os proverbiais freios e contrapesos à ação dos organismos incumbidos de investigar procedimentos eventualmente ilegais e, uma vez comprovada a ilegalidade, propor sanções contra os seus autores. A Polícia e o Ministério Público não podem, como é sabido, abrir os sigilos fiscal, bancário ou das comunicações do acusado. A quebra do sigilo por prazo determinado e a sua possível prorrogação dependem do ato de um juiz que responderá por ele.
Esse salutar princípio é revogado pelo absurdo projeto, que tem o potencial de transformar o País numa imensa delegacia, ao atribuir a policiais e promotores poderes descomunais. O cheque em branco que eles e seus colegas de uma penca de agências federais passariam a receber tem o seguinte formato: sempre que, num inquérito, "surgirem novos suspeitos ou novos bens, direitos ou valores que mereçam investigação própria", fica dispensado o pedido de ampliação da devassa originalmente concedida por um magistrado. Este deixa de decidir, sendo apenas informado da iniciativa. O rito se torna automático.
São nada menos de uma dezena as repartições estatais às quais o projeto concede a prerrogativa de perscrutar a intimidade de pessoas que tenham, ou tiveram, vínculos com os suspeitos cujo sigilo havia sido rompido por decisão judicial: Receita Federal, Banco Central, Tribunal de Contas da União, Polícia Federal, Agência Brasileira de Inteligência, Conselho de Controle de Atividades Financeiras, Comissão de Valores Mobiliários, Ministério Público, Comissões Parlamentares de Inquérito, Secretaria de Previdência e Seguros Privados.
"Tem de escancarar", diz o senador Gérson Camata, do PMDB do Espírito Santo, relator do projeto na comissão do Senado que o aprovou, desdenhando das garantias civis dos brasileiros. Ele alega que, se a medida já estivesse em vigor, "o Brasil não teria mensalão do PT nem mensalão do DEM" ? o que não passa de uma frase de efeito, impossível de cotejar com a realidade. O projeto, reage a criminalista Flávia Rahal, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa, "regride na proteção à intimidade". O seu colega Tales Castelo Branco lembra que a Constituição "é taxativa" com relação a isso. Ele entende ser uma "licenciosidade perigosa" deixar a quebra de sigilo "ao arbítrio de uma autoridade administrativa".
O projeto ainda autoriza as instituições financeiras a comunicar ao Ministério Público movimentações "consideradas suspeitas" ? o equivalente a dar-lhes poderes investigatórios, advertem os advogados Eduardo Antonio da Silva e Celso Meira Junior em artigo publicado ontem neste jornal. "Não se pode, sob o fundamento de combater um mal, criar outro de igual ou maior magnitude", argumentam, aludindo à violação da intimidade. "Da mesma forma que não existe um direito absoluto, não pode haver uma regra tão abrangente e genérica de devassa."
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