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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

O Imbecil Coletivo - Olavo de Carvalho

Fonte: EDUCAÇÃO LIBERAL


O sucesso de Richard Rorty no Brasil parece estranho, já que a intelectualidade local é de formação predominantemente marxista e teria tudo para rejeitar o pragmatismo como ideologia capitalista. Mas o terreno para o ingresso de Rorty já estava preparado por três décadas de hegemonia gramsciana. Gramsci, o teórico marxista mais influente no Brasil, não foi um marxista de raça pura, mas um mestiço de pragmatista, pela linhagem de seu mestre Antonio Labriola. Labriola não apenas está de acordo com o pragmatismo nas linhas gerais, mas, por uma coincidência significativa, sua “filosofia da História” é idêntica à de Richard Rorty em particular, num ponto onde ambos estão em desacordo flagrante com Karl Marx: na negação de que a História tenha um “sentido”. Esta negação é obviamente incompatível com a ideologia do “progresso”, consubstancial ao marxismo. O repentino interesse dos intelectuais progressistas por filosofias que neguem o sentido da História deriva manifestamente de um sentimento depressivo conseqüente ao fracasso do comunismo internacional. Não conseguindo ater-se à visão otimista do comunismo, buscaram refúgio numa ideologia próxima, capaz de dar conta do curso aparentemente absurdo do devir histórico sem obrigá-los a uma ruptura com o fundo ateu e materialista do marxismo. Alguns empenharam-se, com esse fim, em vasculhar e resgatar antigos materialismos, que o marxismo acreditara ter absorvido e superado. Outros buscaram uma reaproximação com as correntes materialistas “burguesas”, como a filosofia analítica de Russel e Wittgenstein ( muito lidos no Brasil durante a década que passou ) e, naturalmente, o pragmatismo. Houve primeiro a moda de Charles Sanders Peirce, um filósofo de quinta categoria que em certos meios universitários brasileiros foi erigido em totem. Mas o melhor mesmo veio com Rorty, cujos pontos de semelhança com Gramsci lhe dão atrativos irresistíveis aos olhos da intelectualidade local.


Uma dessas semelhanças, a mais significativa, é a negação do conhecimento objetivo e a conseqüente redução da atividade intelectual à propaganda e à manipulação das consciências.


Tanto Gramsci quanto Rorty negam que o conhecimento humano possa descrever o real, e declaram que a única finalidade dos nossos esforços culturais e científicos é expressar desejos coletivos. Para um e para outro, não há conceitos universais, nem juízos universais válidos, mas pode-se “criar” universais pela propaganda, fazendo todas as pessoas compartilharem das mesmas crenças, ou melhor, das mesmas ilusões. A função da intelectualidade é portanto gerar essas ilusões e, como diz Rorty, “inculcá-las gradualmente” na cabeça do povo. Eles divergem somente quanto à identidade do intelectual: para Rorty, ele se constitui da comunidade acadêmica; para Gramsci, é o Partido ou “intelectual coletivo”.


Essas duas entidades fantasmagóricas, incumbidas de dirigir as consciências de seres desprovidos de consciência, e formadas elas mesmas de indivíduos que por si não têm consciência nenhuma, têm em comum o maior desprezo pelos argumentos e provas e um gosto pronunciado pela ação psicológica que vai moldando os sentimentos da massa sem dar margem a discussões nem prestar satisfações à exigência de uma “verdade”. Em ambas, a astúcia de manipular o real substitui a inteligência de conhecê-lo. Manipular o real? Não. Manipular a sua imagem na mente do público.


Tanto quanto a comunidade acadêmica de Peirce e Rorty, o “intelectual coletivo” de Gramsci não tem a unidade real de um organismo, mas a unidade funcional e mais ou menos convencional de um clube ou de um Exército. Por esta mesma razão ele não pode ser inteligente, não pode ter percepções intuitivas. Que é inteligir? É captar, num relance, a unidade objetiva de um conjunto de dados, dispondo-os num quadro que é posto imediatamente à disposição de todas as faculdades psíquicas, da vontade, do sentimento, da imaginação, etc. Esta simultaneidade da informação é que permite ao indivíduo reagir como um todo às situações, sem a mediação de um longo e complexo processo decisório. É a “presença de espírito”, a consciência alerta que permite a plena e eficaz adaptação às mudanças, sem perda da continuidade biográfica nem do sentido da vida. Como uma entidade coletiva poderia elevarse a esse nível de consciência? Para inteligir e decidir com a rapidez de um indivíduo, ela tem de colocar um indivíduo no topo e seguir as decisões dele sem discutir; mas, para preservar a democracia interna, tem de submeter as decisões à aprovação de todos os membros e aguardar o termo final das discussões, no curso das quais interferem milhares de fatores desviantes, como a intromissão de outros temas, a concorrência entre as vaidades nas assembléias, etc. — e enfim a decisão final será um arranjo mecânico de pressões e transigências, e não a resposta imediata de uma consciência a uma percepção da realidade. O “intelectual coletivo” tem de optar entre a unidade de uma tirania e a multiplicação das línguas; entre a submissão explícita ou implícita a uma consciência individual qualquer e a dissolução numa inconsciência coletiva que, em última análise, acabará sendo manipulada discretamente por algum indivíduo esperto; enfim: entre a tirania declarada e a tirania dissimulada.

Enquanto o princípio do “intelectual coletivo” vigorou apenas dentro do Partido Comunista, o seu culto da inconsciência não afetou senão as pessoas diretamente engajadas nos movimentos de esquerda, impedindo-as de enxergar os fatos mais óbvios e gritantes, como os Processos de Moscou, o fracasso econômico da URSS, o Gulag, etc.


Com a queda da hierarquia comunista, porém, o espírito do “intelectual coletivo” vazou do corpo moribundo do comunismo para a intelectualidade em geral. Hoje em dia, particularmente no Brasil, a vida intelectual como um todo imita, pela uniformidade dos temas e dos valores, a discussão interna no velho Partido Comunista, o processamento coletivo das idéias por uma massa de militantes para obter pela soma dos votos a definição infalível da “linha justa”. Com isto, as inteligências individuais perdem toda capacidade de operar sozinhas, nada mais inteligem por si mesmas e, confirmando o que um zunzum generalizado alardeia sobre a inanidade da consciência autônoma, só se mostram capazes de atuar numa atmosfera de concordância unanimista, de “participação” no sentimento coletivo. Como todos estão imersos nesse coletivo, ninguém o enxerga desde fora, como os peixes não enxergam a água. A vida intelectual reduz-se assim à mútua interconfirmação de crenças, preconceitos, sentimentos e hábitos dos membros do grupo letrado. Tribaliza-se.


Erraria por excesso de otimismo quem visse essa involução como um fenômeno passageiro que arranha apenas a superfície da História. Ela tem uma dimensão antropológica, ele afeta o destino da espécie humana no cosmos: basta uma geração de “intelectuais coletivos” dominar o mundo para que se perca a individualização da consciência, prêmio de um esforço evolutivo milenar.


A idéia do “intelectual coletivo” tem uma origem das mais comprometedoras. Nasceu nos clubes, assembléias e salões literários onde se gerou a Revolução Francesa — na “República das Letras”. Foi ali que pela primeira vez a intelectualidade moderna sentiu a força da sua união e se sagrou rainha sob o título de “opinião pública”. De fato este termo não designava a opinião das massas, mas o sentimento comum das elites letradas. O característico desses clubes, que os diferenciava, por um lado, das sociedades científicas como hoje as conhecemos e, por outro, dos centros de debates da universidade medieval, era a completa ausência de critérios racionais para a validação dos argumentos: era o império da “opinião” — no sentido grego da dóxa ou pura crença. Questões teóricas de gnoseologia, de metafísica, de economia e mesmo de ciências naturais eram ali decididas no grito, segundo as preferências da maioria. A doutrina verdadeira não era a que coincidisse com a realidade, mas a que melhor expressasse as aspirações do coletivo, na linguagem mais lisonjeira às paixões do momento. Passado o vendaval da Revolução, as instituições científicas e universitárias da burguesia vencedora trataram, obviamente, de não se organizar segundo o exemplo das sociedades revolucionárias, mas segundo os moldes consagrados da universidade medieval e dos círculos científicos do Renascimento. A “República das Letras”, todos sabiam, servira para agitar as massas, mas não poderia servir para produzir conhecimento. Não é de estranhar, portanto, que o modelo da sociedade de debates revolucionários tenha sido encampado, em seguida, pelos excluídos da nova ordem: pela intelectualidade socialista.


Mas não ficaria confinado aí para sempre. Se, ao longo do século XX, uma atmosfera de clube jacobino vai sorrateiramente se apossando da totalidade da vida cultural, isto se deve, em grande parte, à proletarização das universidades, que, de núcleos geradores de uma elite científica e governante, se transformaram em centros de formação profissional para as massas (transferindo, é claro, o encargo de formar a elite para instituições mais discretas, quando não secretas).


A democratização do ensino abriu a milhões de pessoas o acesso às profissões intelectuais e científicas. O que era uma elite, um punhado de gênios que trocavam idéias através da correspondência privada e de meia dúzia de publicações acadêmicas, tornou-se uma multidão inumerável. O inchaço quantitativo, acompanhado da redução das exigências, resultou numa formidável queda de nível: o proletariado intelectual, espalhado em milhares de instituições e ocupado de suas tarefas profissionais cotidianas, já não tenta sequer manter-se a par da marcha das idéias no mundo; e cada profissional já se conformou em não poder acompanhar a sucessão das descobertas nem mesmo na sua própria especialidade; cada qual segue por um túnel, sem saber aonde vão dar os outros. Para compensar o desequilíbrio causado pela especialização, enxerta-se então no especialista uma prótese denominada “cultura geral”, e logo as universidades têm de despejar no mercado uma leva de “especialistas em cultura geral”. Constituída sobretudo daqueles que não conseguiram especializar-se em mais nada, a nova profissão ocupa-se, ora de adornar com uma cereja de cultura o bolo dos conhecimentos profissionais, a título de lazer e perfeitamente desligada de toda referência à vida prática, ora de esboçar uma síntese entre cultura e prática sob a forma de doutrinação ideológica.


Com isso, a natureza mesma das profissões universitárias acabou sendo pervertida: o profissional universitário já não tem de ser um intelectual capaz de formar uma opinião pessoal razoável; é um trabalhador, um empregado, que segue o figurino da coletividade, como outrora os funcionários de classe média e os operários braçais. Assim, à medida que a informação científica se avoluma, decrescem, de outro lado, a capacidade, a necessidade e a simples vontade de absorvê-la.


Com o advento, então, do capitalismo terciário, onde a indústria predominante é a de “bens culturais”, o proletariado intelectual ampliou-se até abranger a maior parte da população dos países ricos e a quase inteira classe média dos países pobres. Em decorrência, a produção cultural superior teve de atender a uma demanda prodigiosa de emoções baratas, agora enobrecidas de um prestígio “intelectual”. A bisbilhotice das velhas revistas de show business, por exemplo, invadiu a pesquisa histórica, tomando ares de atividade acadêmica respeitável. Movida pela necessidade de lisonjear as paixões mais vulgares, a cultura superior acaba se modelando pelos critérios do puro marketing, com o que o imbecil coletivo confirma, circularmente, que não há verdade acima do gosto da maioria. Nessa atmosfera, a discussão racional torna-se impossível: o consenso forma-se por ondas de sentimentos que confusamente se agitam no ar e produzem breves calafrios na epiderme. As crenças moldam-se e dissolvem-se numa atmosfera impressionista, como manchas móveis de tinta num papel molhado. É o tempo da retórica, da persuasão psicológica, da vaga chantagem camuflada que toma o lugar da argumentação. E enfim o estado de fato reclama sua elevação ao status de norma e lei: surgem os Böhm, os Feyerabend, os Kuhn, os Rorty, que advogam a legitimidade do argumento retórico, do apelo emotivo e até mesmo da influência subliminar como meios de prova científica. A noção de “veracidade” — que a primeira geração de proletários intelectuais já reduzira a um formalismo convencional, esvaziando-a de sua substância ontológica — esfuma-se por completo e enfim é negada ostensivamente. As idéias conquistam adeptos por contágio afetivo; e, uma vez dominantes, já não precisam sequer ostentar a pretensão de veracidade. Possuem argumento melhor: a força do número, que espalha nas almas dos recalcitrantes o temor do isolamento, vagamente identificado com a miséria e a loucura. Por baixo da adesão festiva às novas modas intelectuais, range soturnamente a máquina persuasiva do terror psicológico.


Eis, em resumo, as tendências dominantes no debate científico e filosófico no mundo de hoje. Em países mais velhos, que conservam valores herdados da Idade Média e do Renascimento, essas tendências podem ser compensadas, às vezes, por alguma reação crítica e ordenadora. Mas os países novos, que entraram para a História depois da Revolução Francesa e pouco absorveram do legado dos séculos anteriores, não têm a mais mínima defesa contra o espírito do “intelectual coletivo”, que neles tende a ser identificado, num dogmatismo inconsciente, como a única encarnação possível da idéia de cultura superior. Tornar-se um “intelectual”, aí, não é adquirir certos conhecimentos e demonstrar capacidade em certos gêneros de investigação ou criação, mas ser aceito em determinados meios, falar num determinado tom, adquirir determinados trejeitos em que se reconheça a identidade da casta. Daí que um grande filósofo que viva isolado acabe sendo excluído da história cultural do país, como ocorreu com Mário Ferreira dos Santos, ao passo que o homem de mundo, popular em certos grupos, se tornará um intelectual célebre mesmo que não deixe obra que valha a pena ler e mesmo que nada descubra que valha a pena saber.


O Brasil é a terra prometida do “intelectual coletivo”.



Fonte: Olavo de Carvalho,
O Imbecil Coletivo, Faculdade da Cidade Editora, 1996

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