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segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Bento XVI: "beatificação" do internacionalismo castrista?

Fonte: MÍDIA SEM MÁSCARA
ARMANDO VALLADARES | 11 JANEIRO 2010

Se Cuba continua sendo assim, como compreender, nesse contexto, as afirmações acima consignadas da recente alocução papal ao novo embaixador cubano? Se, pelo contrario, Cuba comunista tivesse deixado de ser uma "vergonha de nosso tempo", quais seriam as altíssimas razões que haveriam inspirado uma tal virada interpretativa de 180 graus a respeito de aspectos intrínsecos a esse regime?


Qual seria então a essência desse "protagonismo" cubano aludido no discurso de Bento XVI? A paz, o bem e a prosperidade cristã? Ou o caos, a subversão e todas as demais formas de neo-revolução anti-católica inspiradas e impulsionadas desde Cuba?



1. O discurso de recepção de Bento XVI das cartas credenciais do novo embaixador de Cuba comunista, Eduardo Delgado Bermúdez (cf. "Le lettere credenziali dell'Ambasciatore di Cuba presso La Santa Sede", Departamento de Imprensa da Santa Sé, 10 de dezembro de 2009, com texto completo da alocução em idioma espanhol), foi pouco divulgado pela imprensa e praticamente não recebeu comentários.


2. Não obstante, a referida alocução merece a máxima atenção porque mostra uma faceta até agora pouco realçada do pontificado de Bento XVI, considerado por muitos como conservador, porque constitui uma reafirmação da incompreensível política de distensão da diplomacia vaticana com relação ao regime cubano desde os primeiros anos da sangrenta revolução, diplomacia que não pode ter deixado de ter um papel e uma responsabilidade fundamentais na redação desta alocução, e porque as palavras do Pontífice poderão ter conseqüências sérias, não somente para o futuro de Cuba comunista, como para o da América Latina, na medida em que de uma maneira ou de outra beneficiam o "eixo do mal" chavista-castrista-evista-correísta-orteguista.


3. O Santo Padre, depois de se referir com deferência ao ditador Raúl Castro, realça o "decidido protagonismo" que Cuba comunista continuaria tendo no "contexto político" da América Latina. Nesse sentido, no texto lido pelo Pontífice se elogia que o regime cubano "continue oferecendo sua colaboração a inúmeros países", com uma atitude que favoreceria e impulsionaria "a cooperação e a solidariedade internacionais". Segundo parece interpretar o Pontífice, essa cooperação e solidariedade internacionais seriam desinteressadas, leais e sinceras ao ponto de que não estariam sujeitas a "mais interesses que a ajuda mesma às populações necessitadas".


4. Entretanto, com o máximo respeito devido à benevolência papal, tal como se verificará na continuação, a interpretação de um alegado desinteresse cubano se vê desmentida flagrantemente pela própria definição de "internacionalismo" incluída na Constituição desse país, uma definição que por certo não é nada desinteressada e não se reduz a uma simples intenção de "ajudar" os "necessitados".


Já em seu Preâmbulo, a Constituição de Cuba deixa claro seu sentido intrinsecamente maléfico quando define o "internacionalismo proletário" como a matriz inspiradora das numerosas aventuras revolucionárias impulsionadas em tantos países da América Latina e da África, qualificadas de "heróicas" pela mesma Constituição, porém que, na realidade, como se sabe, foram e continuam sendo sinônimo de sangue, revoluções e mais miséria para os necessitados.


Para não deixar dúvidas, a Constituição comunista, em seu Artigo 12, retoma e "faz seus" os "princípios internacionalistas" contemplados no Preâmbulo, deixando claro que eles estão de mãos dadas, sem separação possível, com os "princípios anti-imperialistas" (Parágrafo 2), ou seja, revolucionários. E chega a justificar no mesmo artigo não somente a "legitimidade" de "resistência armada", como também assume o "dever internacionalista" (Parágrafo 4) de se solidarizar com esses movimentos revolucionários, algo que Cuba comunista cumpriu ao pé da letra da maneira mais cruel possível.


5. Para desencargo do que foi dito anteriormente, se poderia argumentar que a alocução pronunciada por Bento XVI refere-se especificamente a duas "áreas vitais", definidas em tal discurso, respectivamente, como a "alfabetização" e a "saúde". Na realidade, o dito anterior dificilmente constituiria um desencargo senão, melhor, uma circunstância agravante. Com efeito, tal como demonstraram inúmeros estudos acadêmicos e como a própria Constituição cubana o reconhece, a educação e a saúde, esses tão mencionados e publicitados supostos "logros" do comunismo cubano, foram duas tenazes satânicas do controle psicológico, mental e social de jovens e adultos, durante cinco longas décadas de revolução castrista. Por isso, internacionalizar essas tenazes psicológicas, como o regime está fazendo na Venezuela, Bolívia, Equador, Nicarágua e outros países do "eixo do mal" latino-americano, é de suma gravidade.


Se houver alguma dúvida a respeito, o Artigo 39 da atual Constituição a dissipa: o Estado comunista "fomenta e promove a educação" exclusivamente em função do "ideário marxista", com o implacável objetivo de "promover" a"formação comunista das novas gerações" (Parágrafos 1 e 3), na realidade, uma suprema deformação espiritual e moral.


Qual seria então a essência desse "protagonismo" cubano aludido no discurso de Bento XVI? A paz, o bem e a prosperidade cristã? Ou o caos, a subversão e todas as demais formas de neo-revolução anti-católica inspiradas e impulsionadas desde Cuba? Como entender o destaque papal a esse "protagonismo", em um contexto explicitamente elogioso, quase se diria de "beatificação" do internacionalismo cubano?


6. Porém, as dolorosas surpresas do discurso papal não são somente essas. Na continuação, parece que o Pontífice trata de atenuar a verdadeira causa da situação de extrema miséria de Cuba comunista, diluindo-a na "grave crise internacional", nos "devastadores efeitos" dos "desastres naturais" e no denominado "embargo econômico" norte-americano. Ao mesmo tempo, omite a causa profunda da miséria cubana, que é um sistema econômico que aplica um implacável "embargo interno" contra a população através da abolição da propriedade privada e da asfixia da livre iniciativa.


7. A respeito dos "sinais concretos" da "abertura ao exercício da liberdade religiosa" que o Pontífice destaca como aspectos favoráveis da situação dos católicos cubanos, me permito lembrar o nefasto Artigo 62 da Constituição, que constitui um implacável "torniquete" jurídico-penal contra todas as "liberdades", inclusive e principalmente a "liberdade religiosa", que cinicamente oferece aos desditosos habitantes da ilha-cárcere. Esse artigo constitui literalmente uma ameaça: "Nenhuma das liberdades" reconhecidas aos cubanos poderá ser exercida "nem contra a existência e fins do Estado socialista, nem contra a decisão do povo cubano de construir o socialismo e o comunismo", advertindo que "a infração deste princípio é punível". Em Cuba, do dito ao feito nunca houve muito trecho. Essa "punição" tornou-se realidade contra centenas e milhares de opositores que foram assassinados no "paredão" ou que passaram pelas masmorras do regime, contra tantos outros presos políticos que permanecem nelas, contra as Damas de Branco, que são mães, esposas e irmãs de prisioneiros políticos, humilhadas e espancadas nas ruas de Havana e, inclusive recentemente, contra jovens blogueiros da ilha.

8. Em 6 de agosto de 1984, o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger, em sua "Instrução sobre alguns aspectos da 'teologia da libertação'", diagnosticava de maneira clara e categórica, como se estivesse descrevendo a realidade cubana de hoje: "Milhões de nossos contemporâneos aspiram legitimamente recuperar as liberdades fundamentais das quais foram privados por regimes totalitários e ateus que se apoderaram do poder por caminhos revolucionários e violentos, precisamente em nome da libertação do povo. Não se pode ignorar esta vergonha de nosso tempo: pretendendo proporcionar a liberdade se mantém nações inteiras em condições de escravidão indignas do homem". E concluía o atual Pontífice de maneira estremecedora: "Os que se tornem cúmplices de semelhantes escravidões, talvez inconscientemente, traem os pobres que tentam servir".


Hoje, 26 anos depois de haver inspirado, ditado e assinado essa brilhante análise, a pergunta que se coloca é se na mente do então prefeito de tão alta Congregação romana e atual Pontífice, Cuba comunista continua sendo, ou não, uma "vergonha de nosso tempo". Se Cuba continua sendo assim, como compreender, nesse contexto, as afirmações acima consignadas da recente alocução papal ao novo embaixador cubano? Se, pelo contrario, Cuba comunista tivesse deixado de ser uma "vergonha de nosso tempo", quais seriam as altíssimas razões que haveriam inspirado uma tal virada interpretativa de 180 graus a respeito de aspectos intrínsecos a esse regime?


9. Poderiam ser comentados outros aspectos não menos importantes do discurso papal que, lamentavelmente, não são menos dolorosos. Esses comentários, invariavelmente respeitosos, poderão ser efetuados em outra oportunidade, se as circunstâncias assim o exijam.


10. Consigno, finalmente, o estremecimento que me causou a alusão às relações "nunca interrompidas" entre a Santa Sé e o regime cubano. Foram-se sucedendo em minha memória, como em um trágico filme, episódios de décadas de política de distensão do Vaticano com Cuba comunista, com a peregrinação de tantos altos prelados, cardeais e secretários de Estado, incluindo o atual, vários dos quais chegaram a fazer rasgados elogios ao tirano Fidel Castro e a supostos "logros" do regime, assim como tantos lances de colaboração comuno-católica, encabeçados pelo atual cardeal de Havana, monsenhor Jaime Lucas Ortega y Alamino. Também evocando esse período de relações "nunca interrompidas", ressoaram em meus ouvidos, como se fosse hoje, os gritos de jovens mártires católicos, fuzilados no "paredão" da sinistra La Cabaña, que morriam proclamando "Viva Cristo Rei! Abaixo o comunismo!", e recordei o episódio dos três jovens irmãos García Marín, que em dezembro de 1980 procuraram asilo na Nunciatura de Havana, sendo posteriormente retirados dali com promessa de liberdade e segurança individual, por pessoas que entraram vestidas com roupas eclesiásticas no próprio automóvel da Nunciatura. Na realidade, não eram eclesiásticos e sim agentes da polícia política cubana que os arrancaram da Nunciatura mediante engano, para ser selvagemente torturados e finalmente fuzilados. Narro esse episódio em minhas Memórias e, até hoje, não fui desmentido. (Cf. A. Valladares, "Contra toda esperanza", Plaza & Janes, Barcelona, 1985, cap. 48, pág. 416).


11. Já expressei em artigos anteriores sobre a política de distensão do Vaticano com o regime cubano, e o reitero com especial ênfase nesta respeitosa e angustiada análise: enquanto católico, enquanto cubano e enquanto ex-preso político, me dói enormemente efetuar este tipo de considerações públicas, que faço como um desencargo ineludível de minha consciência, com toda a veneração devida a Cátedra de Pedro. Isso produz uma dor e dilaceração talvez maiores do que as piores torturas físicas que recebi durante 22 anos nas masmorras cubanas, porque o sofrimento espiritual é mais profundo, inclusive que o físico.



*Armando Valladares, escritor, pintor e poeta. Passou 22 anos nos cárceres políticos de Cuba. Foi embaixador dos Estados Unidos ante a Comissão de Direitos Humanos da ONU sob as administrações Reagan e Bush. Recebeu a Medalha Presidencial do Cidadão e o Superior Award do Departamento de Estado. Recentemente lhe foi outorgado em Roma o Prêmio Internacional de Jornalismo ISCHIA e, em Tegucigalpa, a Ordem José Cecilio del Valle, no grau de Comendador, a mais alta distinção que Honduras outorga a um estrangeiro.


Tradução: Graça Salgueiro

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