Por Miguel Gustavo Lopes Kfouri
Curitiba, 30-09-2002
A reportagem de capa (o ano é 2002) de uma das mais importantes revistas do país faz a apologia da mentira. Um candidato socialista radical pode ganhar a eleição para presidente já no primeiro turno. Os efeitos da instabilidade do câmbio sobre a economia revelam que o Estado brasileiro está falido e a beira de um colapso muito maior do que o da Argentina. A CNBB realiza um plebiscito para decidir se o Brasil deve ou não participar da ALCA. E o que é pior: em meio a esse cenário nada auspicioso (e meio kafkiano), vê-se que os membros das classes altas e médias estão completamente alheios e indiferentes aos desdobramentos inelutáveis dessa terrível situação.
Que cultura é essa onde campeia o egoísmo e a mentira como se fossem coisas naturais e até saudáveis? O que está acontecendo em nossa sociedade?
Em 1967, o filósofo Mário Ferrreira dos Santos escreveu um livro com o título que usei como epígrafe deste texto. No prefácio ele explica o significado dessa expressão dizendo o seguinte:
"A História nos relata que houve muitas invasões HORIZONTAIS de bárbaros; ou seja, invasões que se processaram com maior lentidão ou não, maior rapidez ou não, e que consistiram na penetração pacífica ou violenta dos povos, que se deslocavam para as regiões habitadas por outros, impondo-lhes o seu poder ou pelo menos os seus costumes. Mas só se pode falar em invasão de bárbaros, quando essa se processa no território que corresponde à civilização. Não foram essas invasões tão cruentas como muitas vezes são descritas, pois as que se processaram no antigo Império Romano, sobretudo no período final, processaram-se gradualmente, e muitas vezes com o apoio interno dos próprios civilizados, já barbarizados em muitos dos seus costumes.
Na verdade, a invasão que é a penetração gradual e ampla dos bárbaros não só se processa HORIZONTALMENTE pela penetração no território civilizado, mas também VERTICALMENTE, que é a que penetra pela cultura, solapando os seus fundamentos, e preparando o caminho à corrupção mais fácil do ciclo cultural, como aconteceu no fim do império romano, e como começa a acontecer agora entre nós."
Como o próprio filósofo destaca, essa "obra é uma denúncia dessa invasão, que, preparando-se e desenvolvendo-se há quase quatro séculos, atinge agora a um estágio intolerável, e que nos ameaça definitivamente."
Revelando todo seu gênio de verdadeiro filósofo ao refletir sobre essa corrupção cultural, Mário Ferreira dos Santos, sem apelar para radicalismos - que, em reflexão filosófica, é sintoma de superficialidade -, lembra também que,
"De outro lado, há disposições prévias corruptivas, que estão em todo ciclo cultural, e actuam desde o primeiro momento com maior ou menor intensidade, para destruir a forma do ciclo que repelem. E esse é o tema de outra obra nossa 'Vida e Morte dos Ciclos Culturais'."
O livro "A invasão vertical dos Bárbaros" é dividido em duas partes. A primeira trata de temas referentes à sensibilidade e à afetividade do homem. Nela são analisadas questões como a exaltação da força, valorização exagerada do corpo, a supervalorização romântica, a superioridade da força sobre o Direito, a propaganda desenfreada e tendenciosa, a valorização da memória mecânica, o surgimento da horda e do tribalismo, a exploração da sensualidade, a disseminação do mau-gosto etc.
Na segunda parte são tratados temas que se referem à intelectualidade, tais como a luta contra a universalização do conhecimento (com o conseqüente desaparecimento dos princípios comuns a várias ciências, corrupção da linguagem e atomização do conhecimento), o desvirtuamento da Universidade, a separação entre Religião, Filosofia e Ciência, a incompreensão entre Ética e Moral, o Proletário e a exploração ideológica, juventude transviada, nominalismo e realismo, o conceito de Deus etc.
A obra é de atualidade desconcertante, e constitui um diagnóstico preciso das doenças espirituais e culturais que podem levar uma civilização a um estado de barbárie e morte. Portanto, é de leitura fundamental, pois, como se sabe, o diagnóstico é também o primeiro passo para a cura da doença. Demais, a leitura desse livro ajudará a todos que buscam responder às perguntas que fiz acima a encontrar as respostas que procuram.
Contudo, o que quero destacar aqui é que o filósofo escreveu essa obra num momento histórico, cultural e político muito mais tumultuado que o nosso. E, sabendo há muito que a academia oficial, monopolizada pelo governo, jamais seria o lugar de onde deveria partir a luta para salvar o ciclo cultural em que vivemos, pôs-se a escrever durante a sua vida toda, às vezes até mimeografando as suas obras e, assim, cumprindo a sua parte na luta.
A vida e a obra de Mário Ferreira dos Santos constituem para todos nós, mais que um exemplo a seguir, um poderoso testemunho de que, para evitar a completa barbarização de toda uma cultura, basta que existam algumas pessoas cujas vidas estejam integralmente a serviço da Verdade.
Diante dessa afirmação, os pessimistas de hoje talvez dirão que é impossível deter a revolução cultural gramsciana que já está em estádio avançado. Ao que eu responderia: contemplar a realidade dessa ótica é cair naquele velho erro de ficar vendo o corpo através da sombra, atitude que, ao final, só nos levará a tomar a sombra pelo corpo e, no final das contas, "a conhecer o bem pelo seu reflexo no mal", como já disse o professor Olavo de Carvalho. Com efeito, se os que podem ver a luz preferem ficar olhando somente para as trevas, logo tudo para eles será choro e ranger de dentes.
A meu ver, mesmo num momento em que grande parte das pessoas parecem querer dirigir seus olhares somente para as sombras, todas as pessoas que buscam a verdade têm o dever de continuar a olhar para o corpo. E o que isso significa? Deixo a resposta para o mestre Mário Ferreira dos Santos:
"Se temos em nossa estrutura cultural, no âmbito das idéias superiores, tudo quanto de maior a humanidade ardentemente sonhou e desejou, como admitir que se destruiu o que é fundamento para uma caminhada mais promissora?
Que afastemos o que obstaculiza, que lutemos contra o que desvirtua, que fortaleçamos o que nos auxilia a marchar para frente, está bem! Mas renunciar, demitirmo-nos do conquistado, para volver atrás, isso nunca!
Lutar pelo nosso ciclo cultural, fortalecer os aspectos positivos para impedir o desenvolvimento do que é negativo, eis o nosso dever."
Miguel Gustavo Lopes Kfouri
mglkfouri@onda.com.br
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INVASÃO VERTICAL DOS BÁRBAROS
Trecho do livro "Invasão Vertical dos Bárbaros", de Mário Ferreira dos Santos
O problema ético - O que caracteriza a ética culta e civilizada é a sua fundamentação na prudência como hábito reiterado do saber (virtude é um hábito reiterado e bom), do conhecimento dos princípios, meios e fins, e inclui, subordinadamente, a sabedoria, a ciência, a filosofia, etc. Funda-se na moderação, no manter-se equilibradamente entre os excessos contrários, pois o vício, como hábito continuado do que é mau, pode surgir, também, de uma virtude tomada em excesso.
A moderação é a temperança nas paixões, o evitar-se os excessos, o saber manter-se no meio termo justo e bom. Por isso a moderação exige também a justiça, o reconhecimento do que é devido à natureza das coisas, o respeito aos seus direitos, a ausência da lesão ao direito alheio, o saber dar a cada um o que lhe cabe, com moderação. E exige ainda coragem, ânimo forte, a capacidade para saber arrostar os riscos, que a prática do bem pode exigir, sem cair nos excessos da temeridade e da audácia. Vê-se, assim, que a prudência precisa dos freios da moderação, da iluminação, da justiça e da força, da coragem, como a moderação necessita o auxílio da prudência, os limites da justiça, a coragem que faz vencer os ímpetos exagerados, e a coragem o conhecimento da prudência, os freios da moderação, a visão clara da justiça. Todas essas virtudes cooperam entre si para darem os melhores resultados. Soltas, são incompletas; cooperando, são poderosas. O homem verdadeiramente culto sabe dosar seus atos. O bárbaro, não. Este se deixa arrastar pelos excessos da coragem que o levam à temeridade, à audácia; aos excessos da prudência, que o tornam astucioso, manhoso; aos desvios da justiça, que o tornam cruel, inclemente; aos desvios da moderação, que o levam à ira, à cólera, à destruição.
Que nos mostra o espetáculo de hoje? Não há exemplos viciosos que se repetem e se multiplicam? Bárbaros intra muros... É mister apontá-los, e apontá-los até dentro de nós, porque em nossos momentos de fraqueza e de desfalecimento somos bárbaros também. Que cada um faça seu exame de consciência, e compreenda que não há nessas atitudes nenhuma grandeza, pois a temeridade e a audácia bárbaras não são manifestações de força, mas apenas de fraqueza na capacidade inibidora; revelam apenas que aquele que os sofre é um fraco em sua vontade e em sua inteligência. Por isso é presa fácil de suas paixões e de sua concupiscência. Só os fortes, só os corajosos são moderados e prudentes, porque tais virtudes exigem mais inteligência e vontade do que deixar desencadear as forças primitivas.
Dizia Nietzsche, e nisto ele era bem cristão, que o homem de real valor não é aquele que levanta o gládio e desfecha o golpe, mas aquele que, sendo capaz de levantar o gládio, não fere, e perdoa.
A ética do bárbaro é a ética do dente por dente, do olho por olho. É a ética da vingança, é a norma do que deseja apenas o castigo, do sádico que só se satisfaz ao ver o adversário morder o pó da derrota. Não é o que vence e dá a mão para levantar o vencido. Não é o que busca a solução que o tornará amigo de seus semelhantes. Não é o que ama, mas o que odeia.
O bárbaro ameaça a nossa ética. Invade todos os caminhos, penetra nos lares, nas escolas. Quer estabelecer a sua grandeza na sua miséria, proclama a sua força onde esta não está, aponta a sua exaltação, quando ela é depressão, e quando julga olhar a sua altura apenas está vendo o vale, em cujos pântanos ele perdura. Seus vôos são apenas saltos de sapos, ou arrancos de fera, nunca o vôo das aves que invadem o azul do céu, e que são símbolos da grandeza e da inteligência humana.
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