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segunda-feira, 17 de agosto de 2009

A morte do "painel da morte"

Fonte: BOTECO DA SAÚDE
Sábado, 15 de Agosto de 2009


SOB UM CLIMA EXALTADO Na foto à esquerda, Craig Miller, um eleitor de 59 anos, de dedo em riste, xinga um senador, num debate sobre a reforma da saúde, na qual Obama apostou seu futuro político: a oposição quer uma batalha de Waterloo


A ideia, exagerada, de que um comitê federal iria decidir sobre a vida e a morte dos doentes crônicos e dos velhos levou os americanos a uma onda de protestos contra a reforma da saúde proposta por Obama. A ideia sumiu.


Como pode terminar uma discussão nacional em que o governo é acusado de estar preparando um "painel da morte" para decidir sobre a eutanásia dos velhinhos que estão demorando a morrer e não têm dinheiro para pagar sua hospitalização? Com a justificativa do governo de que se trata de uma malévola invenção de seus opositores. Mas que fazer quando o presidente Barack Obama, o grande comunicador, em uma entrevista dada em abril, contribuiu ele próprio para o pânico que está dividindo o país de forma raramente vista?

Obama: Os doentes crônicos e aqueles que caminham para o fim da vida respondem por potencialmente 80% do total da conta de saúde que pagamos.

Repórter: Bem, como o senhor – como nós – vai lidar com isso?

Obama: Bem, penso que terá de haver um diálogo dirigido por médicos, cientistas e especialistas em ética. Depois terá lugar uma discussão democrática muito difícil. É triste imaginar o país tomando essas decisões por meio apenas dos canais políticos normais. Você precisa de um grupo independente para mostrar o caminho.

Os adversários de Obama chamaram esse comitê de "painel da morte". O nome colou. Bem, na sexta-feira, depois de protestos espontâneos, orquestrados, combinados por e-mail ou incentivados pelos hidrofóbicos radialistas de oposição, o comitê sumiu da proposta de reforma. Mas o dano estava feito. Eis o pêndulo da política americana tocando o ponto extremo do intervencionismo e detonando as reações naturais de um país construído sobre o "direito de ser deixado em paz", na memorável interpretação da Constituição feita pelo juiz da Suprema Corte Louis Brandeis (1856-1941).

Em uma simplificação exagerada, mas verdadeira, desde sua fundação como país independente, os Estados Unidos se movem entre dois eixos fundamentais de pensamento político. Um deles é focado no poder central e na união. Outro se revolve na direção contrária e prioriza o indivíduo, seu direito de ser deixado em paz pelo governo e de se responsabilizar pelas decisões que dizem respeito a sua vida, seu dinheiro e propriedade. Os inevitáveis choques entre as duas visões e as ações delas derivadas são arbitrados pela Suprema Corte. O pêndulo, porém, nunca deixa de oscilar de um lado para outro no decorrer da história. Às vezes, seu arco belisca a fronteira do inaceitável. O pêndulo esteve no limite do coletivismo centralizador no governo de Franklin Roosevelt, que, a pretexto de combater ao mesmo tempo dois inimigos, a Grande Depressão em casa e Adolf Hitler no exterior, exigiu – e lhe foram negados pela Suprema Corte – poderes especiais para comandar a economia. Com Ronald Reagan nos anos 80, o pêndulo bateu no extremo oposto, a entronização das ambições individuais em todos os campos da vida nacional. Ainda simplificando, mas sem perigo de turvar a visão, cada vez que um republicano substitui um democrata na Casa Branca, o pêndulo tende ao individualismo. Quando se dá o contrário, o pêndulo ruma para o intervencionismo e o centralismo. Esse movimento pendular e a sabedoria de não deixá-lo se fixar em nenhum dos extremos, à esquerda ou à direita, estão na base da grandeza dos Estados Unidos. Essa habilidade vai ser testada agora com a proposta de reforma do sistema de saúde emanada das mentes que cercam o presidente Obama. Os engenheiros de marketing político insistem que o presidente precisa vitalmente aprovar a reforma de saúde. Do contrário, sua popularidade, já no terreno negativo, vai afundar ainda mais. Parece uma causa perdida. Obama conseguiu dar um novo sentido à famosa frase de Ronald Rea-gan em sua cruzada antiburocracia: "As palavras mais assustadoras da língua inglesa são: 'Eu sou do governo e estou aqui para ajudar'". A versão sob Obama fica assim: "Eu sou do governo e estou aqui para ajudar – você a morrer!". Exagero da extrema direita? Um pouco. Mas ela simplesmente interpretou ao pé da letra o que Obama disse em abril.

DEMANDA REPRIMIDA Dentista de graça nos arredores
de Los Angeles: só no primeiro dia, apareceram 1.500 pessoas. Há filas

à noite e gente dormindo nos carros

Ninguém discute que os Estados Unidos precisam de uma reforma. Se nada for feito, o déficit do sistema estatal de saúde americano vai bater em 1 trilhão de dólares no prazo de uma década. Os Estados Unidos têm um sistema de saúde híbrido, em parte público e em parte privado, com diferenças significativas de um estado para o outro. No plano nacional, 110 milhões de americanos são atendidos por programas públicos, que beneficiam velhos, pobres, crianças, veteranos de guerra e funcionários públicos. Outros 140 milhões têm planos privados, comprados das seguradoras de saúde ou oferecidos pela empresa em que trabalham. No meio deles se espremem 50 milhões de pessoas que levam a vida sem nenhuma cobertura de saúde. Em geral, são ricos demais para se preocupar com os custos dos tratamentos, pobres demais para contratar um plano privado ou jovens sadios, ambiciosos e convencidos de sua invulnerabilidade que preferem fazer poupança a entregar dinheiro às seguradoras.

No fundo, o que o governo Obama propõe é a criação de um sistema universal e obrigatório de saúde em que todos têm de contribuir sob pena de ser multados – e, quem sabe, no futuro, processados. Deixemos o "painel da morte" no campo dos mal-entendidos (mas que Obama propôs sua criação, não há dúvida) e examinemos algumas outras intervenções estatais na vida íntima das pessoas e no funcionamento independente dos estados propostas por Obama.

Cada estado americano oferecerá um plano de saúde, e seus cidadãos serão obrigados a aderir ou a procurar um plano privado que ofereça exatamente as mesmas condições.

As pessoas que decidirem não aderir a nenhum plano de saúde terão sua vida financeira auditada por fiscais do governo.

Um comitê estatal decidirá o tipo de tratamento a que cada doente será submetido – sem direito de apelação caso não esteja de acordo.

Todos os americanos devem portar um carteira nacional de saúde.

Os planos de saúde privados passam ao controle do governo.

A proposta principal dos democratas – existem outras acessórias – tem mais de 1 000 páginas e, se aprovada, transformaria, pelo menos no que diz respeito à saúde, os Estados Unidos em um experimento socializante de consequências imprevisíveis. A reação está nas ruas.

No recesso parlamentar de agosto, deputados e senadores voltaram às suas bases e começaram as reuniões de praxe com eleitores. Em pauta, a reforma do sistema de saúde, um colosso que atende 250 milhões de americanos e movimenta 2,2 trilhões de dólares por ano. Virou um rebu danado. A foto maior desta página é um emblema da fúria dos americanos com os políticos que querem mexer no seu plano de saúde. O eleitor Craig Miller, 59 anos, coloca o dedo na cara do senador Arlen Specter, veterano republicano que se bandeou há pouco para o Partido Democrata. Furioso, trêmulo, o eleitor gritou: "Você está pisoteando a Constituição!". Tem sido assim pelo país afora. Em Mehlville, no Missouri, uma reunião no ginásio de esportes acabou com seis presos. Em Tampa, na Flórida, o auditório com 1 500 eleitores virou uma arena de gritos e empurrões. Em Alhambra, na Califórnia, uns levavam cartazes ("Reforma já!"), outros erguiam faixas ("Não à reforma nazista!"). Em Portsmouth, em New Hampshire, adversários se xingavam na frente da escola onde o presidente Barack Obama falava com eleitores. "Parasitas!", berrava um, aos reformistas. "Ignorantes!", respondia outro.

Com a obrigatoriedade de ter plano, o sistema incorporaria gente que tem dinheiro e queria ficar fora – e, é evidente, gente que não tem dinheiro e quer entrar. Na semana passada, nos arredores de Los Angeles, uma entidade de caridade resolveu oferecer serviços médicos e dentários de graça. Deu-se um alvoroço. Só no primeiro dia, apareceram 1 500. As filas se formavam na noite anterior. Famílias dormiam nos carros. A cidade mudou as rotas do transporte coletivo para dar conta do fluxo. É um sinal de que, de fato, existe uma vasta demanda reprimida, provocada pelos preços exorbitantes da medicina americana.

A outra ideia básica de uma reforma é justamente conter os preços, cuja escalada joga 14.000 americanos por dia na vala comum dos que não podem pagar seu plano. De cada 6 dólares que os americanos ganham, 1 é gasto com saúde. É caro, e está ficando mais caro ainda. Em 2003, 14 milhões de americanos tiveram dificuldades para pagar suas contas médicas. Em 2007, a massa de endividados subiu para 57 milhões. Os americanos são o povo que mais gasta com saúde. É um problema, mas decorre dos mais doces motivos: eles são os mais ricos e os mais bem informados sobre saúde (veja o quadro abaixo). A questão é que, mesmo gastando tanto, o sistema americano não é o melhor e sua população não é a mais saudável. Em 2000, um levantamento sobre os melhores sistemas apontou a França na cabeça. Os EUA ficaram em 37° lugar. Os americanos têm baixa incidência de alcoolismo e tabagismo e ficam num escalão intermediário em doenças cardiovasculares e diabetes. Mas como fazem cirurgias! Em 2006, foram 60 milhões. Dá uma cirurgia para cada cinco americanos.

Em 1965, o democrata Lyndon Johnson criou dois programas públicos gigantes. O Medicare, para idosos e deficientes, e o Medicaid, para atender os pobres. Na década de 90, Bill Clinton tentou revolucionar a saúde, fracassou estrepitosamente e lançou um programa para as crianças. Agora, com Obama, os democratas, que perseguem a universalização há dé-cadas, acharam que chegara a hora. Erraram feio. Uma pesquisa do instituto Gallup informa que 49% desaprovam o modo com que Obama está conduzindo o tema, enquanto 43% aprovam. O que está em jogo agora é mais do que o 1 trilhão do déficit projetado da saúde pública – é como atacá-lo sem arremessar o pêndulo rumo a extremismos insustentáveis.
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A medicina mais cara do mundo

CONTA MALANDRA
Baucus, veterano senador democrata envolvido na reforma da saúde: na sua proposta, não apareceu nada de combate a fraude


A cada trinta segundos, um americano abre falência em decorrência de despesa relacionada com tratamento de saúde. Há dois anos, um levantamento mostrou que 57 milhões tinham, em média, 2.000 dólares de dívida com plano de saúde ou hospitais ou médicos, e já haviam sido procurados pelo menos uma vez pelo setor de cobrança. Os custos da medicina nos Estados Unidos são os mais altos do mundo. Já passam de 16% do PIB do país, o que equivale a 2,2 trilhões de dólares anuais (veja o quadro). Nenhum outro povo no mundo gasta tanto assim. Na Suíça, a saúde responde por menos de 11% do PIB. Na Alemanha e no Canadá, esse índice não chega a 10%. O economista Uwe Reinhardt, da Universidade Princeton, calculou que a despesa per capita dos americanos com saúde deveria ser de 4.800 dólares, considerando a renda e a oferta de saúde. No entanto, os americanos gastam mais de 6.700 dólares anuais. A que se deve a gordura de quase 2.000 dólares? Em parte, deve-se ao que os Estados Unidos têm de melhor.

Como se trata do país mais rico, também se gasta mais. A riqueza nos Estados Unidos, apesar da crise, está se expandindo. À medida que vão enriquecendo, os países tendem a fazer mais despesas com saúde. Além disso, a disseminação de informações sobre cuidados com a saúde e novos tratamentos é cada vez maior, o que também contribui para fazer com que o investimento em saúde cresça num ritmo mais acelerado do que a economia em geral. Por fim, os americanos são grandes gastadores porque têm a mais abundante e mais sofisticada oferta de tecnologia na área da medicina. E, de novo, quem tem usa. Um estudo do Dartmouth Institute for Health Policy & Clinical Practice mostra que a oferta de recursos – de especialistas, de leito hospitalar, de tecnologia – tem influência decisiva sobre decisões médicas. Onde há mais leito, há mais hospitalização. Onde há mais especialista, há mais consulta.

A outra parte da gordura de gastos deve-se à ganância, em que médicos, por exemplo, fazem um procedimento desnecessário para aumentar o preço. Tanto que nos Estados Unidos se brinca que o equipamento mais caro é a caneta do doutor. Há, ainda, cobranças simplesmente exorbitantes. Na semana passada, irritadas com a constante acusação de que são responsáveis pelos altos preços, as seguradoras de saúde divulgaram cobranças absurdas que recebem de médicos – como 23.500 dólares por uma extração de apêndice. No contra-ataque, os médicos dizem que as seguradoras pagam pouco, quando pagam. Em alguns estados, é comum que um médico seja também dono de um laboratório de análises clínicas ou de um aparelho de ressonância magnética, aos quais remete seus pacientes para ganhar em duas frentes. Existem casos de profissionais que recebem das clínicas um salário para remeter seus pacientes até elas. À ganância, claro, aliam-se as fraudes.

No Congresso, onde há cinco comitês elaborando propostas de reforma, a mais promissora parece ser a do comitê financeiro do Senado, liderado pelo senador Max Baucus, um veterano democrata de Montana que tem conseguido formar alguns consensos com seus colegas republicanos. Mesmo ali, não se debateu até agora nenhum mecanismo mais efetivo contra fraudes, sobretudo em contas hospitalares. São tão intrincadas, com códigos e expressões tão enigmáticos para o leigo, que está surgindo até uma nova profissão no mercado: especialistas em interpretar contas hospitalares. Nessas contas, podem-se encontrar erros, mas também se pode fazer uma viagem pela retórica malandra. Os "especialistas" contam que já viram cobrança de 11 dólares por "sistema descartável de reparação de muco". O que é isso? Caixa de lenço. Ou 15 dólares por "aplicação de terapia térmica". Era bolsa de gelo. No mercado das irregularidades, já se descobriram também farmácias que vendem informações dos clientes a empresas de saúde – que, com base nelas, passam a enviar ao cliente ofertas de remédios ou produtos ligados à medicação adquirida. Num mercado de 2,2 trilhões de dólares por ano, controlar as fraudes pode ter resultado maior do que se espera.

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