Material essencial

quinta-feira, 12 de março de 2009

Doutora da Unicamp defende depredação da escola

RELÍQUIAS DA CASA VERDE
Um observatório das teses produzidas nas universidades brasileiras
Quarta-feira, 12 de Novembro de 2008


"De que serviria uma educação que levasse à morte a sociedade que a praticasse?"
Émile Durkheim


Depredar como forma legítima de criticar


Para a pedagoga Áurea Guimarães, depredar escola é apenas uma manifestação crítica do aluno, que deve ser estimulada pelo professor. Ela não admite nem mesmo que o aluno sinta remorso por depredar a escola. Na prática, é a educação brasileira formando psicopatas mirins.


Em memória do prof. José Vieira Carneiro (1957-2001), vítima da pedagogia


Depredar a escola é uma forma legítima de contestação por parte do aluno, que, ao agir assim, está apenas sendo crítico em face do autoritarismo de diretores e professores. Cabe à escola aprofundar essa ação crítica, ao invés de condená-la. É o que defende, em trabalhos acadêmicos, a Dra. Áurea Maria Guimarães, professora titular da Unicamp e uma das mais requisitadas autoridades pedagógicas do país quando o assunto é violência e indisciplina nas escolas. Até 30 de março de 2007, Áurea Guimarães já havia orientado seis dissertações de mestrado e três de doutorado e estava orientando duas dissertações e duas teses. Também já havia participado, em várias universidades, inclusive na USP, de 25 bancas examinadoras de mestrado e 12 de doutorado, além de 11 bancas de qualificação de doutorado.


Graduada e licenciada em Ciências Sociais pela USP (1974-75) e mestre em Filosofia Social pela PUC de Campinas (1984), Áurea Guimarães defendeu seu doutorado em Filosofia e História da Educação na Unicamp em 1990, com a tese "A depredação escolar e a dinâmica da violência", sob a orientação do Dr. Newton Aquiles Von Zuben. Publicada em livro, com o título A Dinâmica da Violência Escolar: Conflitos e Ambigüidades (Editora Autores Associados, 1996, 172 páginas), sua tese de doutorado foi reeditada em 2005, pela mesma editora. Esta análise baseia-se não no livro, mas no texto original da tese de doutorado, um volume de 477 páginas, que será esmiuçado por partes, na medida do possível.


Em 1985, Áurea Guimarães defendeu sua dissertação de mestrado, também na Unicamp, publicada sob o sintomático título de Vigilância, Punição e Depredação Escolar (Campinas, Papirus, 2ª ed., 1988). Baseando-se na obra de Michel Foucault, especialmente nos livros Vigiar e Punir e Microfísica do Poder, sua dissertação de mestrado trata a escola como uma prisão, afirmando que o seu caráter repressivo é que provoca as depredações por parte dos alunos. Sua dissertação chegou a ser alvo de uma dura crítica científica, fato raro na vida acadêmica brasileira. No artigo Possíveis incompletudes e equívocos dos discursos sobre a questão da disciplina (Revista Educação e Sociedade, Vol. 19, nº 62, Campinas, Abril de 1998), o professor Luiz Carlos Faria da Silva, doutor em educação pela Unicamp e professor da Universidade Estadual de Maringá, critica os equívocos de Áurea Guimarães ao se apropriar de Foucault:


"Amiúde, os textos escritos pelos pedagogos cujo intuito é a análise da questão das relações entre educação e disciplina centram-se na categoria de poder tal qual a tematiza Michel Foucault. Isto é, por exemplo, o que faz Áurea Guimarães. Entretanto, estes autores parecem não dar muita importância ao fato de existir uma grande distância entre suas posturas teóricas e as de Michel Foucault."


Luiz Carlos Faria da Silva observa que relacionar educação e disciplina com base em Foucault sem rejeitar a centralidade do sujeito inerente à metodologia e à ontologia da obra do autor francês leva a problemas incontornáveis. No caso de Áurea Guimarães, ela parte de uma visão antropológica e teleológica da história, mas, para operacionalizar em sua pesquisa essa visão de mundo, recorre exatamente a um autor que aposta na exclusão do sujeito e na descontinuidade da história. Essa "síncope analítica" — observa Faria da Silva — resulta num "processo generalizado de desqualificação e de desautorização da disciplina", que deixa de ser reconhecida como "mediação necessária e imprescindível à ação humana em geral, e à ação educativa em especial":


"O poder e a autoridade são internos e inseparáveis do processo educativo no qual interferem consciências que dirigem e regulam as ações. Essa direção e essa regulação são construídas na história dos conflitos vividos socialmente e são obra dos homens e produto de suas ações conscientes. Exorcizar o poder e a autoridade, esvaziar as ações humanas e as ações educativas do conteúdo representado pela necessidade de direção e controle, que buscam encontrar os meios mais adequados aos fins a serem realizados, é esterilizar as mesmas e mergulhá-las na intransitividade, na abulia; é condená-las a ser um arremedo ligeiramente melhorado da atividade animal."


Se em sua dissertação de mestrado, Áurea Guimarães se apropriou de Michel Foucault sem discernimento, — como demonstra Faria da Silva, — em sua tese de doutorado ela apropria-se de Michel Maffesoli com deslumbramento. A mudança de guru foi reforçada pelo curso A Cultura Pós-Moderna, ministrado pelo próprio Maffesoli, na Escola de Comunicação e Artes da USP, de 18 de outubro a 1º de novembro de 1989. Aluna desse curso do sociólogo francês, a autora transcreve em sua tese anotações de aula:


"Cultura é o aspecto global do cotidiano. O modo de comer, de vestir, de utilizar o tempo, enfim o modo de viver. Costuma-se considerar cultura apenas as grandes obras da cultura, mas, na visão de Maffesoli, o cotidiano é o lençol freático da cultura. É por esse enfoque que se compreende a cultura cotidiana e a questão das mudanças de valores. Conforme anotações do curso 'A Cultura Pós-Moderna'."


Por trás das tautológicas anotações de Áurea Guimarães transparece a sua falta de leitura dos clássicos. Um século depois da afirmação da antropologia como ciência, ela ainda acredita que dissociar "cultura" de "grandes obras" é uma novidade teórica, capaz de promover uma revolução do conhecimento. Desde a consolidação científica da antropologia, na primeira metade do século XX, o conceito de cultura deixou de se limitar à exegese das grandes obras de arte para descrever a vida do homem em sua totalidade. Em sua obra, iniciada com a publicação do clássico Casa Grande & Senzala em 1933, o brasileiro Gilberto Freyre (1900-1987) já usa o conceito de cultura nessa acepção, ocupando-se dos costumes, da culinária, da vestimenta, dos gestuais, enfim, da totalidade da vida, para alicerçar a positividade da miscigenação na sociedade brasileira. Por sua vez, o antropólogo norte-americano Ralph Linton (1893-1953), no clássico O Homem: Uma Introdução à Antropologia (Livraria Martins Editora, 1959, 3ª Ed.), publicado originalmente em 1936, já contesta seus contemporâneos que insistiam em considerar Aristóteles como "o último homem a possuir a soma total dos conhecimentos de seu tempo":


"A afirmativa é absurda mesmo à primeira vista, porque já na época de Aristóteles existiam milhares de culturas das quais ele não conhecia nem sequer a existência, quanto mais o conteúdo. Aristóteles certamente não sabia atirar um boomerang nem obter a tinta do jenipapo. Pode ser que Aristóteles tenha conhecido tudo a respeito da filosofia, da literatura e da arte, mas provavelmente não saberia forjar, temperar uma espada, fazer uma armadilha para lobos ou dizer em que ponto podem ser encontrados mais facilmente os lúcidos. O conhecimento destas cousas fazia parte da cultura grega, tanto quanto as peças de Eurípedes ou as especulações de Platão." (p.102)


Entretanto, o mais grave erro de Áurea Guimarães não é o uso equivocado que faz de determinadas teorias e, sim, as implicações éticas de suas pesquisas para a educação brasileira. Sua obra acadêmica é um repúdio à disciplina, com base numa visão distorcida da realidade. Para ela, a escola é uma prisão e a suposta opressão que impõe aos alunos tem de ser denunciada. A autora vem fazendo esse tipo de afirmação tanto no que diz respeito à escola da década de 80 quanto em relação à escola do novo século, sem perceber que, nesse espaço de duas décadas, se havia algum autoritarismo nas escolas, ele já deixou há muito de existir. Mas nem é necessário recorrer ao tempo para desmentir a afirmação de Áurea Guimarães. Ela própria se desmente ao descrever as escolas que lhe serviram de objeto de pesquisa. Os alunos pesquisados por ela não se comportavam como se estivessem numa prisão — mais pareciam estar numa praça pública. A despeito dessa realidade que salta aos olhos, a autora prefere ver o mundo com a viseira da ideologia e afirma ter constatado que a depredação escolar era uma forma de contestação crítica por parte dos alunos. Confira, textualmente, o que escreve a Dra. Áurea Guimarães, professora titular da Unicamp:


"A depredação escolar surgia como uma forma de contestação aos modos pelos quais a uniformização se expressava, isto é, à vigilância e à punição. A depredação também abria um campo delimitado de violência sobre o qual era possível localizar os indivíduos portadores de um potencial desviante. De certo modo, a escola pretendia reduzir as depredações, esquadrinhando comportamentos, distinguindo os 'bons' dos 'maus' alunos. O padrão estabelecido era o do 'bom' aluno, aquele que não depredava a escola, quem depredava era o 'marginal', o 'mau' aluno. Esse procedimento impedia que a depredação resultasse em formas mais amplas de manifestação e que os alunos radicalizassem suas críticas à escola, pois eles mesmo acabavam associando depredação com 'marginalidade', e muitos até se culpavam por suas reações, não percebendo que a violência primeira partia da própria escola e que a depredação, na sua ambigüidade, expressava tanto uma forma de contestação, como uma maneira que a administração encontrava para neutralizar as ações que visassem críticas à escola." (grifos meus)


Se houvesse um Código de Ética do Magistério, Áurea Guimarães estaria em maus lençóis. Uma pedagoga justificar a depredação da escola como resposta do aluno ao autoritarismo dos mestres é como um médico defender que uma criança tem o direito de se automedicar em resposta à enfermeira autoritária que lhe aplica injeção no bumbum. Se um médico apresentasse uma tese dessas na faculdade de medicina, seria não apenas reprovado, mas também condenado pelo CRM, correndo o risco de perder a licença profissional. Por que na educação se dá o contrário e, em lugar de ser condenado, quem defende esse tipo de tese se torna autoridade pedagógica? Diante da crescente violência de alunos contra professores, chegando ao assassinato, esse tipo de pensamento mais parece terrorismo pedagógico: além de ser uma vítima física de alunos predadores, o professor da escola básica é uma vítima moral das faculdades de pedagogia.


Exemplo dessa tragédia cotidiana das escolas brasileiras foi o que ocorreu numa escola estadual de São Bernardo do Campo, em 9 de novembro de 2001, quando um aluno resolveu “radicalizar suas críticas” à escola e um professor acabou assassinado. Além de uns poucos dados colhidos na imprensa local e na revista Época (a mídia deu pouca importância ao caso), as informações que se seguem foram obtidas, por mim, para minha dissertação de mestrado, no final de fevereiro de 2002, em conversas telefônicas com a viúva do professor assassinado e com um dos diretores da Apeoesp (o Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo).


Enquanto dava aula, o professor de geografia José Vieira Carneiro havia posto seu molho de chaves em cima da mesa. Um aluno de 17 anos pegou as chaves e começou a girá-las. O professor pediu-lhe que parasse com a brincadeira porque poderia provocar um acidente, caso uma chave se soltasse. Irritado com o pedido, o aluno deu um soco no rosto do professor, com as chaves enfiadas entre os dedos, e elas ficaram cravadas na fronte do mestre. Socorrido por um colega, o professor foi levado ao hospital, onde o médico procedeu à retirada da chave. O paciente teve alta, mas continuou sentindo dores de cabeça. Voltou a passar mal dias depois, sendo levado às pressas para o hospital, em 24 de novembro de 2001, quando morreu em conseqüência de hemorragia interna provocada pelo ferimento com a chave.


A morte do professor de São Bernardo do Campo foi tratada com relativa indiferença pelas autoridades pedagógicas e pelos meios de comunicação. Sem dúvida, por influência da pedagogia do crime que se traveste de pedagogia progressista nas universidades brasileiras. Como freqüentemente acontece na abordagem da violência de alunos contra professores, a culpa acaba sendo da vítima (o professor), acusado de ser autoritário. No trágico caso de São Bernardo do Campo, essa inversão da culpa começou na própria escola. Como a agressão se deu na primeira aula, o diretor (que não estava no estabelecimento, sendo comunicado do fato por telefone) foi à escola e determinou que as aulas tivessem continuidade, inclusive para a turma em que ocorreu o incidente. A sala foi limpa do sangue do professor e os alunos continuaram a estudar, como se nada tivesse ocorrido. Nas poucas reportagens de jornal veiculadas sobre o caso, a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo recusou-se a fazer qualquer pronunciamento a respeito. A morte de um cachorro talvez merecesse mais consideração.


E o que é mais grave: o diretor da escola deu declaração à imprensa, desculpando o aluno, que, segundo ele, agiu sem querer. Segundo a versão oficial, a chave ter-se-ia desprendido do chaveiro acidentalmente e cravado na testa do professor, como se chave fosse peixeira. Somente se o chaveiro fora usado como soco inglês, a chave ficaria cravada na testa do professor. Mas a culpa por essa tentativa de desvirtuar os fatos para desculpar o aluno não pode recair apenas no diretor. Sem dúvida, ele tem curso superior e deve ter sido aluno de doutores como Áurea Guimarães que estão sempre dispostos a justificar qualquer transgressão dos estudantes.


A se crer nessa ideologia insana que tomou conta das universidades brasileiras, o aluno de São Bernardo apenas percebeu que "a violência primeira partia da própria escola" e não lhe convinha deixar que "a escola neutralizasse suas ações", impedindo-o de girar a chave como bem entendesse, atrapalhando o professor explicar a matéria. Por isso, enquanto a "forma de contestação" dos alunos pesquisados por Áurea Guimarães foi a depredação do prédio da escola, como se ele pudesse ser culpado de alguma coisa, o algoz do professor José Carneiro foi mais arguto — ele percebeu que um simples prédio não pode ser culpado pelo "autoritarismo" de que era vítima, então, "radicalizando sua crítica à escola", resolveu depredar o próprio professor.


É claro que casos como o de São Bernardo do Campo não são rotineiros, mas o caldo de cultura universitária que os torna possível nas escolas, sem dúvida, o é. Ao equiparar "depredação" com "crítica", chegando a condenar a escola por considerar o aluno predador como mau aluno, a autora faz uma descarada apologia da barbárie em detrimento da civilização. O caráter imoral dessa tese é auto-evidente, mas como a universidade brasileira virou uma Casa Verde, abrigo das maiores insanidades, é preciso recorrer a uma parábola para tornar a loucura mais explícita.


Suponhamos que Áurea Guimarães não fosse uma privilegiada professora titular da Unicamp, mas uma faxineira, trabalhando de sol a sol para dar uma vida digna ao filho. Suponhamos ainda que o menino correspondesse aos seus anseios, apresentando um comportamento exemplar, fazendo as tarefas de casa e tirando boas notas na escola. Pois bem, num certo dia, ao chegar exausta do trabalho, a faxineira Áurea depara com um calombo na testa do filho. Ao perguntar-lhe o que aconteceu, descobre que se trata de uma "pedra perdida", atirada por um aluno que estava querendo quebrar a vidraça da escola. Diante desse fato, o que a faxineira pode esperar da escola? Obviamente, a punição do aluno que feriu seu filho. E, se isso não for possível, que pelo menos a escola evidencie a diferença moral subjacente ao caso — um bom aluno foi ferido por um mau aluno. Se a escola não reconhecer ao menos isso, não resta dúvida que o filho exemplar da sofrida faxineira vai-se sentir duplamente injustiçado — ferido na pele e na alma. Felizmente, para a professora universitária Áurea, o caso da sofrida faxineira Áurea é apenas uma hipótese. Mas uma hipótese provável, levando em conta que as escolas são pautadas por teses como essa da privilegiada doutora da Unicamp.


Mais grave é que, além de justificar a depredação da escola, Áurea Guimarães não quer que o mau aluno se arrependa do seu ato. Ela lamenta que o discurso dos professores condenando a depredação tenha encontrado eco em muitos alunos:


"Muitos até se culpavam por suas reações, não percebendo que a violência primeira partia da própria escola e que a depredação expressava tanto uma forma de contestação, como uma maneira que a administração encontrava para neutralizar as ações que visassem críticas à escola."


Novamente é preciso chamar atenção para a gravidade das afirmações da autora. Além de defender a depredação, Áurea Guimarães não quer que o aluno se sinta culpado por depredar a escola. É como se depredar fosse um direito inalienável do aluno, que não deve sentir remorso por quebrar carteiras e vidraças. Mas se o aluno não pode nem mesmo se arrepender de seus erros, como é possível fazer com que pare de errar? O sentimento de culpa é a base da recuperação moral de qualquer pessoa. Só psicopatas não sentem remorso. Um trabalho acadêmico que condena o necessário sentimento de culpa de alguém que erra não é exatamente uma tese de doutorado, mas um manual de formação para psicopatas mirins.


A tese de doutorado de Áurea Guimarães baseia-se em pesquisa de campo realizada a partir de 1987. Ela pesquisou um grupo de crianças e adolescentes que não eram regularmente matriculados como alunos, mas faziam atividades supervisionadas na escola, "cujo objetivo era ocupá-los e afastá-los dos 'perigos da rua'", segundo expressão da própria autora. Como se vê, a autora não reconhece os "perigos da rua" temidos pelos professores da escola pesquisada, uma vez que grafa a expressão entre aspas. É de se perguntar se as crianças de seu círculo social, os filhos de seus pares da Unicamp, passam o dia na rua, fazendo malabares nos semáforos, ou se estudam em escolas privadas, cercadas de muros e guardas, e os espera, depois das aulas regulares, uma agenda cheia de atividades, como natação, inglês, balé, música etc. A resposta é óbvia. Nenhum filho de professor universitário fica exposto nas ruas, porque, na vida real, fora do desatino de suas teses, os doutores universitários sabem que rua, para criança, é sinônimo de perigo. Só não reconhecem isso quando estão fazendo pesquisa "científica" sobre os pobres. É como se filho de pobre fosse vira-lata, natural das ruas.


Em seu contato com o grupo de crianças e adolescentes, Áurea Guimarães não demonstra nenhum distanciamento crítico. Cristã nova da seita sociológica de Michel Maffesoli (parece que já não tem a mesma fé na seita de Michel Foucault), ela adere ao conceito de "formismo sociológico" do intelectual francês, que se ocupa em elaborar uma "sociologia compreensiva que descreve o vivido por aquilo que é". Ora, essa sempre foi a grande meta da sociologia desde que ela se tornou ciência nas mãos de Émile Durkheim (1858-1917). O clássico As Regras do Método Sociólogo (1894) já tinha este objetivo — o de descrever a realidade da forma mais fiel possível. Mas o próprio Durkheim — que não era charlatão, como muitos sociólogos contemporâneos — reconhece que, na prática, isso é impossível. Trata-se mais de uma ética a ser perseguida do que de uma prática que garanta resultados. Entretanto, desde George Simmel, surge, a cada estação, nas universidades e botequins da França (se é que há diferença entre ambos), um novo teórico da sociologia que acredita ter solucionado os incontornáveis mistérios que alicerçam e fermentam as relações entre indivíduo e sociedade, mediante a simples criação de vocábulos novos, no mais das vezes, pomposos e vazios. Esses sociólogos não se comportam como cientistas — são chefes de seita. Uma vez que costumam ser escritores criativos, convencem muito mais pelo estilo aparentemente poético do que pela força dos argumentos.


No Brasil, sua força é ainda maior. Retórico desde as origens, como demonstra Antônio Luiz Machado Neto, no livro A Estrutura Social da República das Letras (São Paulo: Editora da USP, 1973), o intelectual brasileiro é facilmente influenciável pelo estilo alheio. Sobretudo os intelectuais incultos, que só tiveram contato com livros tardiamente. Muitos doutores universitários jamais leram os clássicos da literatura antes de entrar na faculdade, salvo o resumo dos livros indicados para o vestibular. Ao longo da graduação, tornam-se escravos das fotocópias, em que passam a ler apenas pedaços de obras técnicas. Só quando estão perto da pós-graduação, é que alguém lhes apresenta Guimarães Rosa e Clarice Lispector, sem que tenham passado antes por um Machado de Assis ou um Eça de Queirós. O resultado é desastroso. Qualquer frase um pouco mais enviesada, que manga da razão e deifica os sentidos, já é suficiente para obrigá-los a uma genuflexão cognitiva. Daí o sucesso de pensadores como Michel Maffesoli. Suas obras não são usadas como teoria científica, mas como espartilho ideológico — ou a realidade se encaixa na tese deles, ou ela não existe.


Em sua pesquisa maffesoliana, Áurea Guimarães não consegue "descrever o vivido por aquilo que é". Não só porque a tarefa é impossível em si, mas também por lhe faltar um mínimo de distanciamento crítico. Esquecendo-se que seu próprio guru prega o "politeísmo de valores", a autora acaba incorrendo na sociologia normativa que tanto combate, ao tomar o partido do grupo pesquisado e negar os valores do mundo circundante. Só que sua norma é construída pelo avesso: o certo é renegado como erro, e o erro é idolatrado como certo. Tanto que ela não hesita em acompanhar um bando de alunos em suas incursões predatórias pelos arredores da escola. E, pelo que se depreende de sua própria descrição, não o faz como observadora neutra, mas como torcedora participante, que não chega a jogar pedra, mas sorri para a mão que a atira. Duvidam? Então, constatem abaixo:


"Nos passeios que fizemos juntos, algumas crianças tocavam a campainha de algumas casas para pedirem comida e somente quem os maltratasse é que teria a casa depredada por eles. Aqueles que negavam a comida, mas os tratavam bem, não tinham suas residências 'marcadas' para serem depredadas. Os garotos e garotas me diziam que adoravam tocar a campainha de uma casa, abrir e bater um portão, às vezes até quebrá-lo, para depois sair correndo: 'Dá uma emoção'."


O trecho acima pode ser resumido numa frase: "Dá-me comida ou te depredo a casa". Era assim que as crianças e adolescentes agiam na frente de uma pessoa adulta, ainda por cima professora, que em nenhum momento as repreendeu quando incursionou com eles nessas aventuras. Pelo contrário, Áurea Guimarães justifica essa ética da chantagem textualmente, quando afirma que os pequenos vândalos só depredavam as casas em que eram maltratados. É a pedagogia do seqüestro: uma criança estimulada a depredar casas para obter comida pode achar correto, quando adulto, sequestrar pessoas para obter dinheiro. E é também a pedagogia da mentira, porque a própria autora desmente a si mesma. Logo depois de justificar a depredação das casas como reação aos maus-tratos, ela conta que os garotos e garotas adoravam tocar a campainha de uma casa e bater o portão até quebrar, para depois saírem correndo, deliciando-se com as emoções fortes do ato. Mas ela não havia dito que os alunos só depredavam a casa de quem os maltratava? Sem querer, ela confessa que depredavam por depredar, pela "emoção forte" do ato. Seu afã de minimizar a violência e indisciplina dos alunos é tanto que ela se contradiz a cada frase. E, nunca é demais frisar, essas contradições primárias não são obra de um jovem vestibulando — são da lavra de uma candidata a doutora, em sua própria tese de doutoramento.


Áurea Guimarães conta que, na escola estudada, os alunos inventaram o "futebol sem bola", que consistia em chutar quem estivesse por perto. Ela própria ficou com medo de andar no meio deles e sair ferida. Acabado o recreio, alunos suados — e alguns machucados — pediam mais tempo à professora para irem ao banheiro. A autora minimiza todo esse pandemônio, incompatível com o aprendizado, alegando que não se trata propriamente de uma briga, "pois os alunos pareciam estar se divertindo". A seguir, grafando "brigas" entre aspas, ela relata:


"Presenciei muitas 'brigas' não só no recreio, como também nas salas de aula, onde havia uma tensão permanente. Qualquer brincadeira ou comentário poderia ser interpretado como ofensa e daí para a briga corporal era só um passo. Quando terminei o estágio nessa escola soube de um aluno do noturno que, sem motivo aparente, pelo menos, tentou estrangular uma colega durante a aula."


Ao mencionar esse caso, quase não se percebe que se trata de um aluno que tentou estrangular uma aluna. Ao usar a palavra colega (substantivo de dois gêneros) em lugar de aluna (substantivo feminino), a autora induz o leitor a não atentar para o fato de que a vítima era mulher. A violência de gênero fica camuflada. Diante da gritante covardia de um aluno que quase estrangula uma aluna, Áurea Guimarães não faz nenhum comentário, mesmo tendo sido pródiga em comentários negativos a respeito dos professores da escola ao longo de toda a sua tese. A autora chega a aventar a possibilidade de haver desculpa mais profunda, não visível, para o agressor da aluna, quando escreve que a tentativa de estrangulamento se deu "sem motivo aparente, pelo menos".


A exemplo da Dra. Sueli Itman Monteiro, da Unesp, e da Dra. Eloísa Guimarães, professora aposentada da UFRJ e consultora da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora (cuja tese sobre violência nas escolas será analisada aqui), Áurea Guimarães também menospreza a violência de gênero. O trecho acima é sintomático de uma tendência perniciosa da maioria das pesquisas científicas feitas por mulheres — a tendência de relevar e até mitificar a violência perpetrada pelos homens. É o que ficará claro na continuação da análise desta tese e na análise de outras teses acadêmicas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá internauta

O blog Cavaleiro do Templo não é de forma algum um espaço democrático no sentido que se entende hoje em dia, qual seja, cada um faz o que quiser. É antes de tudo meu "diário aberto", que todos podem ler e os de bem podem participar.

Espero contribuições, perguntas, críticas e colocações sinceras e de boa fé. Do contrário, excluo.

Grande abraço
Cavaleiro do Templo