W.H.Auden, August 1968.
A crise de 1929 está completando oitenta anos e de novo a humanidade encontra-se confrontada com peripécias equivalentes. As mentes lúcidas da época não se enganaram com o que estava acontecendo. Se a multidão idiotizada não sabia muito bem o que a esperava, tanto os agentes do mal sabiam o que faziam como aqueles que lhes davam combate. Hitler, Stalin e Mussolini tinham seus objetivos bem claros. Na América os progressistas dominavam a Presidência da República e não hesitaram em pôr em marcha a Grande Sociedade. Entre nós tivemos a experiência do Estado Novo, fascista em estado puro. Havia um acordo entre os lideres políticos de que o caminho da prosperidade e da redenção humana passava pelo Estado Grande. Pensadores e filósofos nos dois Hemisférios passaram a legitimar o retorno ao Estado Total, que vigeu desde os tempos bíblicos, tendo sido domesticado somente no Advento cristão.
Homens como Ortega y Gasset, Von Mises, Raymond Aron e Irving Babbit faziam solitário contraponto a essa regressão histórica. Eles viam o enorme perigo que era a construção da Grande Sociedade, seja aquela de vertente comunista ou nazista (sua variante nacionalista), seja a fascista, que teve nos EUA um seguidor entusiasta. O redemoinho de destruição que viria embaralhou um pouco o sentido das palavras, mas oitenta anos depois é possível retornar ao ponto de partida e ver mais claramente. Só com a eleição de Barack Obama e o triunfo completo do Partido Democrata é que essa plataforma fascista alcançou o apogeu nos EUA. Não podemos esquecer que na Europa essa forma de organização social em que o Estado é tudo, compra, vende, tributa, emprega e regula a vida cotidiana de cada um – o Estado Total – já é uma realidade há muito tempo.
Obviamente que a liberdade como aquela entendia pela tradição judaico-cristã e pelos liberais clássicos está em vias de desaparecer, com todas as conseqüências dessa constatação. O cultivo dos valores morais, dos direitos fundamentais e da ética visigótica que coloca o primado da moralidade sexual e da propriedade foi definitivamente sepultado. O mundo mudou violentamente, de tal sorte que ficamos espantados ao percorrer os caminhos de volta dessa jornada.
Isso não seria importante se não tivesse conseqüências para a vida prática e para a vida do espírito. Seria um simples passatempo de um observador diletante, mas infelizmente não é. Na vida prática temos a eclosão das crises econômicas e políticas, que teve agora um novo ciclo aberto com o setembro negro, de desdobramentos imprevisíveis. A vida do espírito, esta está em franca decadência, ficando agora confinada a indivíduos isolados, verdadeiros restos de Israel que são preservados pela graça de Deus, partilhando de angústias indizíveis.
O fato é que oitenta anos depois voltamos ao mesmo ponto da espiral descendente que então se formava, como um furacão demoníaco. Voltamos ao mesmo ponto, mas em alguns degraus inferiores. Estamos mais perto do olho do furacão. O deus dos ventos presente no Zaratustra de Nietzsche agora sopra seu bafo infernal com mais vigor. Essa realidade foi escrita em pedra, por toda a eternidade, no poema de Yeats:
Tudo se desmancha no ar. O centro não segura
a imensa anarquia solta sobre o mundo.
Terrível maré de sangue invade tudo e
as cerimônias da inocência são afogadas.
Os homens melhores não têm convicção;
e os piores estão tomados pela intensa paixão do mal.
Outro poeta não foi menos atento ao que estava acontecendo, W.H.Auden. Em 1929 ele escreveu o poema que ficou até 1945 sem título e inédito. Era demasiado profético e apenas com a consumação dos acontecidos é que veio à luz. O título foi sintomático: “
It is time for destruction of error.
The chair are being brought in from the garden,
The summer talk stopped on that savage coast
Before the storms, after the guests and birds:
In sanatoriums they laugh less and less,
Less certain of cure; and the loud madman
Sinks now into a more terrible calm.
The falling leaves know it, the children,
As play on the fuming alkali-tip
Or by the flooded football ground know it –
This is the dragon’s day, the devourer’s:
Orders are given to the enemy for a time
With underground proliferation of mould,
With constant whisper and with casual question,
To haunt the poisoned in his shunned house,
To destroy the efflorescence of the flesh,
The intricate play of the mind, enforce
Conformity with the orthodox bone.
You whom I gladly walk with, touch,
Or wait for as one certain of good,
We know it, know that love
Needs more than the admiring excitement of union,
More than the abrupt self-confident ferewell,
The heel on the finishing blade of grass,
The self-confidence of the falling root,
Needs death, death of grain, our death,
Death of the old gang; would leave them
In sullen valley where is made no friend,
The old gang to be forgotten in the spring,
The hard bitch and the riding-master,
Stiff underground; deep in clear lake
The lolling bridegroom, beautiful, there.
Oitenta anos depois podemos recitar o poeta com toda atualidade. Nada do que escreveu envelheceu, mas tudo se agravou. É como se o infernal Plutão rompesse nos céus em duelo apocalíptico com Saturno, devorando a humanidade. Os demônios estão à solta. O falcão não é mais controlado pelo falcoeiro.
De pouco adianta na prática analisar o Estado que se agigantou ao limite. Bem sabemos que análises brilhantes não livraram a humanidade dos tenebrosos anos Trinta, menos ainda os avisos apavorados das vozes proféticas. Os alertas não foram poucos, mas não havia ouvidos para ouvir. Foi como que um encontro com o Destino: forças postas em movimento garantiam que o desfecho seria inevitável e o curso dos acontecimentos não poderia ser mudado sem antes uma grande destruição.
Ortega y Gasset, em um dos seus brilhantes textos, mostrou que a combinação do idealismo com a poderosa máquina estatal moderna levou à tentativa de perfeição humana pelo Estado. Não por acaso ele partiu da obra de Cervantes, DOM QUIXOTE DE LA MANCHA, o grande profeta dos tempos modernos. O primeiro gesto dessa perfeição falsificada, que redundou na nefasta experiência do século XX, foi a expulsão dos judeus da Espanha quatrocentista, gesto capital que antecedeu Auschwitz. O primeiro Estado nacional moderno nem bem nasceu e enveredou pela engenharia social. Era o quixotismo com toda força em ação, o descolamento completo do real. Aquela primeira grande alucinação trouxe enorme sofrimento e perdas para o Reino de Espanha, mas quem se importou? Não haveria, desde então, mais lugar para aqueles que não se conformassem com os ditames estatais de ocasião. Antes os judeus, agora os cristãos. Os homens de poder não se contentariam mais em se dar conta dos fatos como eles são, precisarão agora aperfeiçoar a natureza. O poder crescente do Estado, junto com a alienação dos governantes, formou a receita letal que veio crescendo desde então.
O Estado não é apenas o novo deus, é o único deus desses homens arrogantes e desprovidos da Revelação. Mas o Estado é apenas a ferramenta pela qual indivíduos particulares, usando das prerrogativas dadas pelo poder, puderam dar dimensão ao seu ego inflado. Os reis não tão católicos de Espanha (não estou reescrevendo a história, estou dizendo que eram apenas católicos nominais, contrários à doutrina) provaram da maçã envenenada do poder absoluto. O grande símbolo desse momento é aquele criado por Leonardo da Vinci, contemporâneo de D. Fernando e D. Isabel, sua rainha: o homem vitruviano, que desde então foi largamente difundido, a ponto de suplantar o símbolo da cruz como representação religiosa. É Vênus, a Estrela da Manhã, o símbolo do Anticristo, desde então cantado em prosa e versos. “Eu vi Satanás cair do céu como um relâmpago!” (Lc 10,18)
Veja, caro leitor, que esse símbolo representará o novo humanismo renascentista, marcando o resgate das antigas filosofias gregas sepultadas, o epicurismo e o estoicismo, que ressurgiram com grande vigor àquela época. Hoje essas tradições tornaram-se dominantes, dando origem ao Novo Mundo, à própria modernidade. Não haveria Reforma religiosa sem o homem vitruviano. O homem vitruviano pretende tornar literal a máxima sofística de que “o homem é a medida de todas as coisas”, mais um resgate da antiguidade, de Protágoras. Foi descoberta a quadratura do círculo. Sua representação está em toda parte onde a estrela de cinco pontas estiver gravada. É a expressão da máxima arrogância humana, seu desprezo profundo pelas coisas de Deus. Praticamente esse símbolo tremula em todas as bandeiras das nações modernas, mais das vezes em substituição ao antigo símbolo da cruz no Ocidente. Basta ver o escudo da nossa República, que substituiu o escudo Imperial, mudança emblemática dos novos tempos.
[Fui encontrar em um texto despretensioso de Beckett[1] uma bela descrição do símbolo, associado à morte e à desolação. Ei-la: “De seu leito ela vê se levantar Vênus. Mais uma vez. De seu leito com tempo ela vê se levantar Vênus seguida pelo sol. Sente raiva então do princípio de toda vida. Mais uma vez. À tarde com céu claro ela desfruta da desforra de Vênus. Diante de outra janela. Sentada rígida em sua velha cadeira de carvalho com travessas e sem braços. Ela emerge dos derradeiros raios e cada vez mais brilhante declina e se abisma por sua vez. Vênus”. Não sei se Beckett, neste texto tardio, tinha a intenção de dar uma abordagem religiosa, mas o simbolismo é muito forte a despeito de suas intenções. O personagem feminino é como a nossa civilização, a morrer. Um trecho seguinte é ainda mais assustador: “De tanto – fiasco de tanto fiasco a loucura se imiscui. De tantos escombros. Vistos não importa como não importa como ditos. Receio de escuridão. Do branco. Do Vazio. Que ela desapareça. E o resto. De uma vez por todas. E o sol. Derradeiros raios. E a lua. E Vênus. Só céu preto”. Não escapa aqui ao observador o marcante simbolismo do Crescente, o Anticristo estampado na sua inteireza. Esta última descrição, de tão plástica, lembra um quadro de Van Gogh ou os versos de Walt Whitman citados por mim.]
Oitenta anos depois o triunfo do símbolo do pentagrama sobre o mundo é total. No poder assim como nas artes e no cotidiano. Tempos de cantar o Anticristo. Tempos de destruição. É o infernal Plutão rasgando o céu de Saturno.
[1] Beckett, Samuel, MAL VISTO MAL DITO, Editora Martins Fontes, São Paulo, 2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Olá internauta
O blog Cavaleiro do Templo não é de forma algum um espaço democrático no sentido que se entende hoje em dia, qual seja, cada um faz o que quiser. É antes de tudo meu "diário aberto", que todos podem ler e os de bem podem participar.
Espero contribuições, perguntas, críticas e colocações sinceras e de boa fé. Do contrário, excluo.
Grande abraço
Cavaleiro do Templo