Vocês já devem ter percebido que o chato não é um ser unívoco. O chato é no mínimo Legião, tem mesmo numerosas fuças, não fosse ainda o caso de dizer ser ele uma hidra na qual, para cada cabeça que lhe cortamos, nasce outra e outra - and counting until out of all count. Sob o sol, neste nosso humildíssimo plano de manifestação dos arithmós eidétikos in re, com todas as limitações impostas pela forma do abacateiro e da panturrilha gorda do Ronaldo, convenhamos que é uma perda de tempo ficar a lembrar a todos que determinadas coisas obviamente ruins são - vejam só - precisa e estritamente ruins. Embora haja aí compaixão, dos chatos é esse o chato mais inconveniente, imbuído que está de um senso de dever que nós não tivemos a felicidade de vê-lo guardar apenas para seu cachorrinho de estimação chamado Sucrilho; mas de cujo senso, em parte, dependemos. Imaginem, por exemplo, que a qualquer momento o tempo possa cessar de durar e você não consiga acender um cigarro de tão aterrorizado que está com essa possibilidade. E então, enquanto você deveria estar se concentrando em acender seu cigarro, sai às ruas dando a saber aos outros, com um misto de pantomima e gaguejo, que, bem, “o mundo pode acabar agora mesmo, cara, agora mesmo, eu quis dizer, antes que eu termine essa frase, essa frase, entendeu?” etc. Aqui se incluem - mais um exemplo - ambientalistas que nos mandam reciclar nosso lixo para que os tatus-bolinha não se sintam desconfortáveis ao saírem de seus respectivos buracos para tomar banho de sol. Enfim, este é o chato que está pelo menos um pouquinho certo, quero dizer, infinitamente certo, mas que só o está quanto a um detalhe extremamente ínfimo se devolvido ao plano maior da realidade. E é este chato que, por estar só um pouquinho certo, nos leva a perguntar por que diabos está ali nos falando aquilo - e talvez recorrendo a todos os mais abjetos subterfúgios a fim de dar prova de seu argumento, mesmo que bem intencionado -, se se trata de matéria tão idiota e obviamente ululante.
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Essa é uma das patologias dos tempos soberbamente vis, durante os quais corremos o risco de nos tornarmos uns chatos portadores de uma ou duas verdades e crermos que a inclinação do eixo planetário delas dependa, de tão imbecis e ineptos que são os outros a ponto de não aceitarem aquelas evidências. Não tenho - entendam de uma vez - como ser a favor, por exemplo, do aborto. Mas me ressinto de ter de, mesmo que só às vezes, muito às vezes mesmo, ficar dizendo que “o aborto é errado por isso e por aquilo”. Quando cercados em todas as frentes pelo erro, o apegarmo-nos a umas duas e mesmas verdades poderá fazer de nossa comunhão a Legião.
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