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domingo, 7 de setembro de 2008

A EXISTÊNCIA HUMANA

Do portal PAPÉIS AVULSOS do HEITOR DE PAOLA

Por Jacy de Souza Mendonça



[Capítulo da obra:O Homem e o Direito – Ed. Quartier Latin, 2006 – SP – p. 457 e sgs]


Como ser vivo, o homem realiza sua essência na existência, durante determinado tempo, em determinado espaço da terra. Temporalidade e espacialidade são suas delimitações existenciais.


Como todo período de tempo tem começo e fim, a temporalidade do homem é delimitada pelo início e o fim de sua vida – nascimento e morte.


A primeira interpretação sobre o início da vida humana formou a tese natalista que, para defini-lo, leva em conta o fenômeno mais aparente em relação a ele: o parto. Por isso, a mãe é sempre conhecida, como afirmou PAULO [1], apoiando-se em certeza que hoje se revela absolutamente improcedente. Nascimento com vida foi acréscimo lógico dos legisladores positivos, afirmação pleonástica, pois, se não fosse com vida, não seria nascimento. A preocupação com o futuro do neonato levou à exigência da viabilidade, ou possibilidade de vida.


Identificados nascimento e parto, os legisladores positivos passaram a reconhecer a pessoa humana como sujeito de direitos (personalidade jurídica) a partir do nascimento (igual a parto) com vida, ou, mais do que isso, com viabilidade, ou seja, capacidade de perdurar na existência. O reconhecimento, no entanto, de que o feto, conceptus ou nasciturus, já merece proteção, melhor dizendo, já é titular de direitos antes do parto, fez com que esses mesmos legisladores criassem reserva segundo a qual a lei põe a salvo os direitos do nascituro. Contradição atroz, porque, se a vida humana inicia-se com o parto, não há como atribuir direitos antes deste, mas, se o nascituro é titular de direitos antes do parto, isso se deve ao fato de que ele é pessoa humana antes do parto, de que sua vida começou antes dele e, por isso, de que sua personalidade jurídica se inicia também antes. A conclusão lógica obrigatória importaria em admitir que a vida humana não começa com a délivrance, mas antes dela, conforme reconheciam juristas romanos clássicos: aqueles que estão no útero materno estão na natureza [2]. Esta é a tese concepcionista.


Em uma de suas poucas afirmações criticáveis, o extraordinário e genial Santo TOMÁS acolheu a tradição católica dominante em seu tempo ao sustentar a animação retardada do ser humano [3]. Acreditava que o embrião receberia a alma gradativamente: primeiro a potencialidade vegetativa, em seguida a sensitiva e finalmente a racional. Calculava também a duração desse processo de encontro da alma com o corpo em 45 dias para o homem e em 3 meses para a mulher, contados a partir da concepção. É tão evidente a arbitrariedade destas teses que, mesmo a Igreja católica, contrariando sua habitual recepção de todos os pensamentos do doutor angélico, rejeitou-a, por sua arbitrariedade e fragilidade científica, a ponto de o Código de Direito Canônico, no cânon 747, determinar que sejam batizados todos os fetos humanos, qualquer que tenha sido a duração de sua gestação, presumindo, portanto, que a vida tenha se iniciado a partir da concepção, pois mortos não são batizados.


A vida é efetivamente um processo. O desenvolvimento do ser humano atravessa fases diversas, facilmente observáveis, desde a infância até a senectude, passando pela juventude e a maturidade. Uma delas dá-se antes do parto, sob a forma de vida uterina. De vida humana, no entanto, já se trata, desde a formação do zigoto, que não é batata nem camundongo: é ser humano, é vida humana em processo de desenvolvimento, é vida humana in fieri. O processo vital já teve início, com vocação natural para perdurar determinado tempo, até esgotar-se. Antinatural é estabelecer qualquer lapso arbitrário de tempo, seja de oito (como propõe a Medicina atual) ou noventa dias, a partir da fecundação, para considerar que só então teve início a vida humana. O que havia antes era vida ou não era vida? Admitida a primeira hipótese, era vida de um animal, de um anjo ou de uma ameba?


Esta reflexão responde à problemática relativa a formas de aborto que os Códigos Penais têm tolerado e a Medicina atual pretende justificar, prestando homenagem ao progresso científico. O aborto resultante de uma disposição de vontade (seja ela da paciente ou de terceiros) é forma de eliminação intencional de vida humana in fieri é forma de interrupção do ciclo temporal de uma vida é forma, portanto, de violação da natureza e, na linguagem ética e juridica é homicídio. De pouco importam as graves e indiscutíveis razões médicas e psicológicas que costumam ser alegadas. Por mais impactantes que sejam, jamais terão o condão de mudar a natureza, transformando a vida em nada, o injusto em justo. Não legitimam o extermínio do feto nem sua origem sexualmente violenta nem suas precárias condições de saúde (como a anencefalia), assim como não o legitimam os riscos de vida da mãe. Embora, sob o ponto de vista moral, ninguém tenha competência para julgar aquele ou aquela que o pratica ou permite que o pratiquem, do ponto de vista jurídico trata-se, em todas estas hipóteses, de ruptura do processo natural de vida, portanto de homicídio. Os eventuais problemas psicológicos da mãe devem ser tratados de acordo com os critérios da Psicologia e os problemas criminais relativos ao estuprador devem ser tratados segundo as regras do Direito Penal. O essencial é que o feto, a criança, o ser humano que foi gerado e está se desenvolvendo indefeso e inocente nada tem a ver com isso. Deveriam ser suficientes, a este respeito, as duras lições da História: uma tuberculosa, vivendo penosa gravidez, na espera do quinto filho, gerado por um sifilítico, registrava terríveis antecedentes: o primeiro filho do casal nascera cego, o segundo morrera imediatamente após o parto, o terceiro nascera surdo e o quarto contraíra muito cedo a tuberculose. Tentava, por isso, o aborto. Sem sucesso, pois nasceu o indesejado filho, ao qual deu o nome de Ludwig – Ludwig van BEETHOVEN!... Outro filho incapaz! Um gênio incapaz...


Valem as mesmas considerações para a temática moderna resultante das experiências laboratoriais de clonagem, transplante e células-tronco. Embora, em princípio, todas as experiências científicas devam ser estimuladas, como obras que são da inteligência humana, destinadas, portanto, a proporcionar benefícios à humanidade, sempre que alguma dessas medidas exigir a eliminação de vida humana, ainda que em processo de desenvolvimento, por rudimentar que seja, como é o caso do embrião, haverá ilícito ético-jurídico por natureza (ainda que não reconhecido pelos Códigos em vigor), pois a vida que começa é destinada a um período que naturalmente deve terminar pela morte também natural. A autoridade que tolera tais atos pratica também homicídio, ainda que não tipificado na legislação positiva.


Tenta-se justificar as experiências com embriões e a conseqüente eliminação de alguns deles a partir dos benefícios que adviriam, como a cura de doenças até hoje consideradas incuráveis. Argumenta-se que um embrião eliminado poderá salvar milhões de vidas. Argumento, sem dúvida, falacioso. Nem o dado quantitativo o salva. A vida de uma pessoa vale tanto quanto a vida de bilhões de pessoas e não se pode, por isso, eliminá-la, mesmo que seja para a salvação de milhões. Se, em certas situações, a razão humana tolera a eliminação de uma vida visando à salvação de outra, como ocorre na legítima defesa e no estado de necessidade, essa rendição do legislador positivo resulta do inevitável. Na legítima defesa, de duas vidas uma necessita ser eliminada para salvação da outra aceita-se, então, o sacrifício daquele que, por sua culpa, deu azo ao dilema situacional, circunstância que não ocorre com o embrião, que nenhuma culpa tem pelo evento, ao qual não deu causa. De estado de necessidade também não se trata, pois este, outra vez, ocorre sem que as partes lhe tenham dado causa voluntariamente, o que não ocorre na hipótese de eliminação de embriões, resultante da manifesta intenção de matar.


As experiências de fecundação assistida, ou fecundação “in vitro”, provocam também reflexões. Como a vida humana, nestes casos, não se inicia com a coleta do óvulo ou do sêmen, mas só depois da exitosa união deles (que nem sempre tem sucesso), antes desta não há falar-se em restrições à pesquisa. Qualquer forma de interrupção da vida já iniciada, porém, agride o ser humano destinado por natureza à existência temporal. É, por isso, ilícita. Toda eliminação de embriões, mesmo os considerados supérfluos, é, portanto, homicídio, apesar das justificativas técnicas da ciência médica para realizá-la, apesar do indiscutível interesse pelo progresso científico e apesar dos legisladores positivos, porque nenhuma vida é supérflua.


Já a clonagem, objeto por vezes de preocupações mais intensas, não envolve eliminação e sim multiplicação da vida e, assim sendo, não representa nenhuma violência à natureza. Aliás, esta também a pratica, no fenômeno dos gêmeos univitelinos.


Considerações assemelhadas cabem em relação ao término do ciclo temporal da vida, ou seja, em relação à morte. Outra vez, por motivos médicos, para possibilitar o transplante de órgãos, tenta-se hoje distinguir diversas formas de morte: a cerebral, a biológica etc. A morte é, todavia, uma só: é a cessação do período vital. Também ela percorre, normalmente, um processo degenerativo, mais ou menos lento. É óbvio que tudo o que ocorre antes da morte, ainda que no final de seu processo, ocorre em vida. Falar em morte cerebral ou falência de órgãos essenciais como distintas e antecedentes à morte biológica é semântica que, embora possa servir a elogiáveis propósitos médico-científicos, fere a natureza humana. Se a vida ainda não se extinguiu, deve ser respeitada e preservada e não há porque qualificá-la como uma espécie de morte que não é morte.


A eutanásia ativa, mediante a qual alguém toma a iniciativa de eliminar a vida de outrem, ainda que sob a motivação mais caridosa que se possa imaginar, constitui outra agressão à existência de um ser. Mesmo praticada sob o manto do amor mais intenso, com o consentimento ou a pedido da vítima, é contrária à natureza humana. A eutanásia passiva, em que o agente apenas deixa as leis da natureza atuarem em direção à morte natural e renuncia a qualquer intervenção no sentido do prolongamento da vida, parece não conflitar com a natureza e, por isso, estar justificada. Se, no entanto, o agente deixa de adotar medida capaz de prolongar a existência, que deveria ou poderia adotar, é manifesta, também, a agressão à natureza humana, sob forma omissiva. Em nada se altera a situação quando o homicídio caridoso é praticado a pedido da vítima, pretensamente apoiado no respeito à liberdade individual. Esta é uma lógica ético-jurídica superada pelo tempo. O ser vivo não é titular da vida, pois não foi ele que a criou. Até mesmo os argumentos que permitiram, em certo período da história, aceitar-se como inexistente o crime e até qualificar-se como ato de nobreza o homicídio quando a vítima o aceitasse, como ocorria no duelo, são hoje repudiados por toda a humanidade.


Pelas mesmas razões, não há também o que justifique a pena de morte. Visto sob a perspectiva do apenado, o Direito deve servir somente como instrumento para retificação de sua conduta, o que é incompatível com a eliminação de sua vida e visto sob o ponto de vista dos demais membros da sociedade, nada ganharão eles com a morte do delinqüente, a não ser a satisfação psicológica que a vingança por vezes proporciona a alguns. Como poderíamos justificar hoje a condenação e execução do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o TIRADENTES, pelo horroroso crime de rebelião e alta traição que, na verdade, consistiu na rejeição ao abuso tributário dos governantes da época e no conseqüente incitamento à revolta popular contra o jugo português? Mas, apesar disso, ele, numa demonstração de força governamental, foi levado pelas ruas até a forca, bradando que morria pela liberdade. Enforcado, teve a cabeça decepada e o corpo dividido em quatro partes, com declaração oficial de infâmia que se estendeu a todos os seus parentes. Nem teve direito à sepultura, quando o mundo já conhecia a Declaração de Direitos de Virgínia (1776) e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que abominavam todas estas formas de violência, em atendimento aos direitos naturais do homem. Passados os anos, o povo brasileiro deixou de considerá-lo delinqüente e passou a tratá-lo como herói nacional... herói, assassinado publicamente pelos governantes, em nome do Direito e da liberdade.


Como justificar também a condenação de SÓCRATES à pena capital sob o argumento de que estava pervertendo a juventude com suas idéias filosóficas?... O mesmo SÓCRATES que é reputado até hoje como um dos maiores pensadores de todos os tempos!


Da mesma forma não se justificam guerras e revoluções, que são formas de destruição e não de construção da existência humana. Nem mesmo as guerras e revoluções qualificadas como justas, pois todas, na verdade, sem exceção, são injustas! Cumpre ao homem perseguir modos inteligentes e pacíficos de implantar suas idéias dentro de seu território político ou em relação a outros países, de forma a que todos possam realizar a plenitude dos fins de sua natureza. De nenhum modo justifica-se eliminar a vida de cidadãos de país inimigo ou expor a perigo a vida dos próprios cidadãos. Aliás, é condenável a aceitação até mesmo do direito-poder do Estado de recrutar e enviar seus cidadãos para os campos de batalha... No máximo, essa decisão deveria ser deixada ao arbítrio de cada cidadão. A temporalidade da vida integra a natureza humana e ninguém, menos ainda o Estado, tem poder sobre ela.


Mais complexo ainda é o tema dos congelamentos em vida, destinados a ulterior tentativa de cura de determinadas enfermidades. O pressuposto da medida é que a vida ainda não esteja extinta, que ainda se trate, portanto, de um ser vivo. Mas como, ao menos atualmente, não há possibilidade de manter essa vida sob as novas condições artificiais de temperatura, enquanto essa possibilidade não for absolutamente assegurada, estamos diante de mais uma forma de interrupção indébita da existência humana se e quando for tecnicamente possível assegurá-la, e se houver assentimento do interessado, haverá somente conseqüências jurídicas potenciais a serem contornadas no que diz respeito às regras de família e sucessões, cujos efeitos podem ficar protraídos no tempo.


A natureza busca sempre realizar-se por isso, a permanência na vida é a primeira de suas exigências, com relação ao homem. Aí radicam os fundamentos naturais da proteção moral e jurídica à vida humana. Os atos atentatórios à vida não passam a ser ilícitos, então, porque uma lei humana assim dispôs, mas a lei humana deve assim dispor por exigência da natureza.






[1] mater semper certa est – PAULO, D., Lv 5


[2] qui in utero sunt intelliguntur in rerum natura esse – JULIANO, Dig. I, 5, 26-LXIX


[3] Santo TOMÁS – Summa Theologiae, I, q. 118


O autor é ex-Presidente do Instituto Liberal de SP, Professor de (Filosofia do) Direito da PUC/SP e da UNICAPITASL

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