Do portal do ESTADÃO
Quarta-Feira, 06 de Agosto de 2008
A má notícia é que a tradição da impunidade incrustada na vida nacional, combinada com a imensa desigualdade de acesso à Justiça entre os brasileiros, terá levado parcelas da população a aceitar, quando não a aplaudir, evidentes violações dos direitos fundamentais da pessoa, sempre que isso lhes parecer eficaz para as ações policiais de combate à corrupção e aos chamados crimes de colarinho-branco. Pelo menos nessa etapa, argumenta-se, os delinqüentes de costas largas provam do tratamento que fariam por merecer até pagar por seus ilícitos - e do qual são poupados por suas privilegiadas conexões com a elite do poder.
A boa notícia é que, contrapondo-se a tais expressões de tolerância a meios condenáveis para fins presumivelmente virtuosos, a questão das condutas indevidas na repressão aos violadores das leis instalou-se na agenda pública do País.
Tantas fez a Polícia Federal (PF) na Operação Satiagraha - da pirotecnia das prisões aos vazamentos em série de documentos protegidos pelo sigilo judicial - que inquietações até então restritas a uma minoria passaram a ecoar na imprensa e a ser compartilhadas por setores crescentes da sociedade, o Executivo e o Congresso Nacional. Esse dado novo é o que explica a direção que tomou o debate O Brasil e o Estado de Direito, promovido anteontem pelo Estado, do qual participaram o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, o ministro da Justiça, Tarso Genro, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, e o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto. Não obstante diferenças pontuais e de ênfase, os debatedores concordaram quanto ao imperativo de se criar "mecanismos mais efetivos" de controle das operações policiais, nas palavras do procurador-geral.
São dois os mecanismos fundamentais: a lei de abuso de autoridade, que o governo ficou de preparar, conforme acertado entre o presidente Lula e o titular do Supremo; e a lei do grampo, regulamentando a escuta telefônica permitida - que atingiu proporções epidêmicas no País. No ano passado, as polícias estaduais e a federal gravaram conversas em mais de 400 mil linhas. Essa extravagância foi superada apenas pelo acesso concedido à PF pela 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, para todos os efeitos práticos, ao registro completo das ligações feitas pela totalidade dos usuários dos serviços de telefonia no Brasil - uma decisão decerto sem precedentes no mundo, baseada numa interpretação inquisitorial da lei de 1996 sobre interceptações telefônicas em inquéritos policiais.
O juiz responsável pela façanha, Fausto De Sanctis, afirma que as senhas distribuídas para o acesso ao histórico das ligações dos assinantes não permitem a escuta das conversas, são pessoais e intransferíveis e o procedimento está "submetido a real controle". À parte a discutível licitude da autorização para essa monumental invasão de privacidade, a alegação do controle peca pela base. Nessa escala, envolvendo em tese toda a população do Brasil, simplesmente não há segurança alguma contra o uso criminoso da massa de informações liberadas. "Os meios tecnológicos para investigações evoluíram profundamente nos últimos 10, 15 anos", lembrou Tarso Genro no debate do Estado. Quanto mais avançada a tecnologia, porém, mais ampla a possibilidade de seu emprego para fins ilícitos. A sofisticação das fraudes na internet é uma confirmação explícita dessa realidade. Escutas abusivas, por parte de autoridades policiais, outra confirmação.
Órgãos policiais, setores do Ministério Público e até da magistratura perderam por completo o senso de medida ao recorrer à violação do sigilo das comunicações, incluindo mensagens eletrônicas, como instrumento de apuração de delitos. Banaliza-se dessa maneira um procedimento adotado apenas como último recurso nos países sérios, onde os direitos individuais não são descartados em nome do rigor contra o crime. Já não bastasse essa gritante anomalia, a divulgação para a imprensa de transcrições de diálogos grampeados pela Polícia Federal alcançou na Operação Satiagraha níveis hemorrágicos. "O vazamento não é mais a exceção, é a regra", denunciou Gilmar Mendes, do STF. "A capacidade de perpetrar abusos é hoje tão grande que é preciso que se engendrem novos modelos institucionais de defesa da cidadania."
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