por Denis Rosenfield em 28 de março de 2008
Resumo: A democracia moderna, representativa, não é somente um regime político, mas envolve relações sócio-econômicas baseadas no direito de propriedade.
O desenvolvimento das últimas décadas, com a ampliação da economia de mercado em todo o mundo, se deve fundamentalmente ao fortalecimento do direito de propriedade, propiciando o crescimento do espírito empreendedor e da livre iniciativa. Se não há respeito ao direito de propriedade, a economia se desorganiza e o mercado funciona aleatoriamente, perdendo o seu caráter propriamente contratual.
Convém aqui ressaltar, sobretudo no ambiente atual latino-americano, que mercado não significa narcotráfico, nem desorganização completa das relações humanas. Mercado significa leis, instituições e regras, com um Poder Judiciário funcionando independentemente e assegurando a segurança jurídica. Confundir mercado e narcotráfico, como é feito por alguns marxistas brasileiros, conduz a manifestos contra-sensos que, na verdade, têm o sentido de abrir a via para uma repetição das experiências mal-sucedidas, bárbaras, do marxismo no século XX.
A economia de mercado pressupõe a existência de mecanismos reguladores, que se traduzem por regras e instituições que assegurem o seu funcionamento. Neste sentido, seria difícil falar de uma economia de mercado onde o direito de propriedade não fosse assegurado, embora se possa dizer que há relações de troca mercantil, que se assemelham ao que poderíamos considerar propriamente como sendo "mercado". Ou seja, uma economia de mercado se desenvolve e se efetiva graças a um Poder Judiciário que valida e garante os contratos que lá se fazem. Imagine-se uma situação em que os indivíduos que estabelecem relações comerciais não respeitem os termos acordados.
A médio prazo, toda relação comercial seria inviabilizada, sendo substituída pelo império da força bruta, em que cada um faria valer aquilo que considera como sendo o seu direito. O Estado, sob esta ótica, nasce das próprias necessidades de uma economia de mercado, garantindo o seu funcionamento.
Seria completamente impróprio falar de mercado em termos de anarquia. Há certos teóricos brasileiros que sustentam que, com a derrocada da União Soviética, surgiu o "mercado", identificado ao narcotráfico e ao roubo dos bens estatais. Poderiam também identificar o mercado ao contrabando! Ora, o que lhes escapa, pois o olhar da ideologia não lhes permite ver, é o caráter legal, civil, do mercado, onde confluem o direito de propriedade e a liberdade de escolha.
Caberia distinguir entre diferentes tipos de atividade econômica, com implicações legais, jurídicas, civis e estatais completamente diferentes. Na mentalidade marxista reinante, tudo o que não é atividade estatal ou empresa dita pública é necessariamente "privado" e, graças a essa ilação, identificado sem mais a "mercado". Se o Estado tudo controla e muito pouco consegue realizar, surge uma escassez de produtos que, dependendo das circunstâncias de cada país, é suprida por formas ilegais, também ditas de "mercado negro".
Aqui já surge a confusão, como se se tratasse do mercado propriamente dito, quando nada mais é do que uma conseqüência de um Estado incapaz de suprir as demandas dos seus cidadãos. Se ele aparece sob essa qualificação negativa de mercado "negro", é porque é ilegal, e ilegal na perspectiva dessa legalidade socialista-estatal. Dependendo da situação, em Cuba é ilegal comprar shampoo, creme dental e sabonete. O que fazem, porém, os ideólogos do socialismo? Identificam as formas deformadas do mercado negro, decorrentes do planejamento socialista, como sendo o verdadeiro mercado.
Procedimento análogo ocorreu com o mercado soviético, logo após derrocada daquele país. O que lá se viu foi o acaparamento dos bens estatais pela própria liderança do Partido Comunista e por seus quadros intermediários, que se aproveitaram da situação em benefício próprio, estabelecendo a partir daí "relações de mercado". Ora, essas relações de mercado, em sua anarquia e em seu caráter mafioso, são resultados do fracasso de uma economia planejada, que desmoronou. Dos seus destroços surgiram essas formas essencialmente deturpadas, corporificadas por mafiosos que, espertamente, souberam se aproveitar da situação. A corrupção socialista-comunista se perpetuou naquela forma perversa de mercado.
Agora, fazer como fazem os petistas, caracterizar tal processo como revelador da natureza do mercado é não somente um contra-senso histórico, uma falta de capacidade analítica, mas uma evidente má-fé do ponto de vista intelectual.
Apropriedade privada floresce onde os marcos institucionais possibilitam o seu fortalecimento. As sociedades que cresceram economicamente e se desenvolveram socialmente são as que asseguraram a proteção das invenções, a aquisição dos bens e a validade dos contratos, confiando na livre iniciativa. Há um nexo essencial entre a iniciativa individual e os marcos legais e institucionais que a garantam e legitimem. Nesta perspectiva, não há possibilidade de que o empreendedorismo se desenvolva se os direitos de propriedade não são garantidos. A questão não reside apenas, por assim dizer, numa opção pela livre escolha, mas numa opção pela livre escolha a partir de marcos institucionais que a viabilizem e perenizem.
A democracia moderna, representativa, não é somente um regime político, mas envolve relações sócio-econômicas baseadas no direito de propriedade. A liberdade de escolha não se refere tão somente ao processo de escolha de um dirigente político através de eleições, mas atravessa, por assim dizer verticalmente, todo o espectro das relações humanas. Trata-se da escolha de bens materiais, como a liberdade de comprar insumos e vender produtos agrícolas, de comprar e vender um imóvel ou um automóvel, até coisas mais imateriais como a escolha de uma pessoa para casar, passando pelo livre exercício do pensamento de cada um, pelas mais variadas convicções, sem medos e temores. Na verdade, não se pode dissociar a economia de mercado, a propriedade e a livre escolha que cada um faz de sua vida.
Denis Lerrer Rosenfield é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
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