Material essencial

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Casta de malditos

Do portal MOVIMENTO ENDIREITAR
Escrito por Olavo de Carvalho em 27 de janeiro de 2008

Há mais de dois séculos a casta dos intelectuais ativistas espalha terror e sofrimento por toda parte, sempre sob a desculpa de conduzir a humanidade a um reino de justiça igualitária. Não há genocídio, não há violência, não há brutalidade que não tenha por trás a criatividade incansável desses tagarelas iluminados, cujo maior talento é o de jogar os demais grupos humanos uns contra os outros enquanto mantêm oculta sua própria existência de agentes históricos principais, dirigentes máximos do processo e mandantes últimos de todos os crimes.

O intelectual ativista distingue-se do filósofo, do erudito, do cientista, do escritor, embora possa atuar sob a camuflagem de um ou vários desses papéis sociais, confundindo a platéia. A diferença é que, enquanto estes se esforçam para tentar compreender e expressar a realidade, ele só se ocupa de condená-la e de tentar transformá-la em outra coisa. O homem de estudos tem diante de si um mundo que já lhe parece complicado demais para a sua pobre cabecinha. O intelectual ativista tem na cabeça inchada um projeto de mundo, o plano integral de uma nova humanidade, que ele acha infinitamente superior a tudo quanto já existiu ou existe neste universo desmasiado estreito para a sua grandiosa imaginação.

Como não se pode interferir numa coisa sem jamais pensar nela, o intelectual ativista às vezes estuda algo da realidade, com o objetivo de alcançar prestígio num domínio especializado para depois poder falar com uma tremenda autoridade científica sobre assuntos dos quais ele sabe pouco ou nada e dos quais na verdade não quer saber coisa nenhuma. Voltaire ganhou fama como expositor da física de Newton, que ele havia estudado com certa atenção, para depois posar de guru em todas as áreas da atividade humana nas quais sua erudição era sofrível ou nula. Karl Marx estudou razoavelmente Epicuro e Demócrito para depois entrar na história como reformador da filosofia de Hegel, da qual ele tinha conhecimentos muito limitados e uma compreensão barbaramente deficiente. Richard Dawkins estudou genética e saiu dando palpites sobre religiões que ele desconhece no todo e nos detalhes. Noam Chomski dedicou alguns anos aos estudos lingüísticos para depois poder orientar a humanidade em questões de economia, guerra, política, direito e relações internacionais, onde seus conhecimentos se limitam àquilo que qualquer um pode ler diariamente na mídia popular esquerdista.

A quota de atividade intelectual séria a que esses indivíduos se entregam durante a primeira parte da vida não reflete seus interesses verdadeiros. É apenas uma fase temporária de conquista de credenciais que depois serão usadas e abusadas fora da sua jurisdição. É por isso que eles se chamam intelectuais ativistas e não intelectuais tout court. O objetivo de suas existências é o ativismo. A vida intelectual é somente um meio e pretexto. Eles não querem compreender a realidade. Querem modificá-la, e não apenas em algum detalhe que esteja ao seu alcance. Querem modificá-la no todo, de alto a baixo, corrigindo a natureza e Deus, que tiveram o desplante de fazer as coisas como elas são sem consultar antes a sabedoria de Voltaire, Karl Marx e Richard Dawkins.

Vejam o caso deste último. O fato de que todas as civilizações conhecidas tivessem alguma religião pode ser facilmente explicado pela razão de que as religiões são universalmente necessárias para dar abertura a uma dimensão da realidade que não poderia ser conhecida sem elas. Richard Dawkins prefere atribuir a existência das religiões a um efeito residual da evolução das espécies, que não logrou produzir ao longo dos tempos nenhuma criatura tão inteligente quanto Richard Dawkins e por isso deixou a humanidade à mercê de crendices e superstições bárbaras.

Com o risco de afastar-me perigosamente do assunto principal deste artigo, não resisto a observar que a simples redução da questão religiosa a uma matéria de “crença” ou “descrença” já é uma simplificação intelectualista que jamais poderia ter-se produzido antes que um assunto tão complicado e exigente fosse entregue ao arbítrio de palpiteiros ativistas que não têm a mínima condição de compreendê-lo.

Desde logo, a noção de “fé” só existe nas religiões do grupo abraâmico – judaísmo, cristianismo e islamismo. Não se fala disso no budismo, no hinduísmo, no xintoísmo ou nas religiões cosmológicas do Egito, da Babilônia, da Pérsia, etc. Um elemento tão limitado no tempo e no espaço não pode, com alguma razoabilidade científica, ser apontado como o traço universal definidor das religiões em geral. Mesmo dentro do estrito domínio cristão, a fé não significa “crença”, muito menos crença irracional, mas apenas confiança numa presença divina cujas provas iniciais tendem a ser esquecidas na agitação e dispersão de uma vida ilusória. A fé não é “crença”, é antes a fidelidade a uma recordação espiritual evanescente. O sujeito que não sabe nem isso deveria ser autorizado a participar do debate religioso, na melhor das hipóteses, só como ouvinte atento e mudo.

Em segundo lugar, o religioso não se distingue do materialista só na superfície intelectual das suas “crenças”, mas na profundidade da sua vida interior, na sua percepção da realidade. O materialista identifica-se com o seu corpo porque não tem capacidade de abstração suficiente para conceber sua pessoa como unidade espiritual, como “tipo” cuja estrutura essencial antecedia como possibilidade sua existência temporal e continuará inalterada como tal depois da morte. “Tel qu'en lui-même enfin l'éternité le change”, dizia Mallarmé ante o túmulo de Edgar Allan Poe: a eternidade o transforma enfim naquilo que ele sempre foi. Esse nível de percepção de si é inacessível ao indivíduo sensorialista, hipnotizado pelo fluxo das impressões corporais. Para ele, o discurso espiritual não diz, nada, é vazio, porque trata de realidades que transcendem a sua esfera de experiência. Ele só pode compreender esse discurso como seqüência de afirmativas sobre o universo físico, as quais, não podendo ser testadas pelos meios da ciência de laboratório, só podem ser objeto de “crença” ou “descrença”. Por trás da afetação de superioridade olímpica de um Dawkins ou de um Daniel Dennett existe a consciência humilhante e dolorida de uma deficiência psíquica, de um handicap espiritual deprimente. É por isso que seu “materialismo” não é só uma teoria, é uma atitude integral, carregada de ódio às religiões e de uma vontade radical de eliminá-las da face da Terra. O sentimento de inferioridade e exclusão que corrói as almas desses indivíduos é ainda mais intolerável do que aquele que poderia resultar de qualquer discriminação meramente social ou cultural: o homem privado de acesso à dimensão divina da existência sente-se em vida um condenado do inferno, sua alma é permanentemente acossada por uma inveja espiritual insanável e sem descanso. Ele é, literalmente, um pobre diabo.

Não espanta que tantos materialistas – explícitos ou disfarçados – venham engrossar as fileiras dos intelectuais ativistas e explorar o ressentimento dos excluídos sociais. Incitando estes últimos ao ódio e à revolta contra uma condição social específica que pode ser acidental e passageira, eles buscam alívio para seu próprio sentimento de exclusão, muito mais permanente, geral e insanável.

Também não é de estranhar que muitas vezes os intelectuais ativistas gostem de ostentar o título de “malditos”, dando a este termo a acepção de meros excluídos da sociedade. Essa acepção é falsa, porque em geral eles não são excluídos sociais de maneira alguma, são os queridinhos do sistema, paparicados e bem remunerados. Esse uso do termo é pura camuflagem irônica: eles sabem que são malditos num sentido muito mais real e profundo. São malditos espiritualmente, excluídos da experiência do divino no mundo.

É claro que muitos crentes das religiões são, nesse sentido, tão materialistas quanto Dawkins ou Dennett: estão privados da vivência espiritual e só podem assimilar o conteúdo da religião como “crença”, na esperança de alcançar algum dia, ao menos na hora da morte, uma percepção mais consistente da realidade divina. Só que nessa esperança existe mais sabedoria do que num desespero travestido de orgulhoso desprezo. O puro “crente”, que tem apenas “crença” e ainda não a verdadeira “fé”, está no caminho da vida espiritual. Mas aquele que pensa que toda fé é crença, esse é o mais ignorante de todos os ignorantes, que discursa com ares de certeza tanto mais infalível quanto menos concebe a realidade de que fala.

Mas, voltando aos intelectuais ativistas, dois acontecimentos recentes ilustram da maneira mais enfática o espírito que anima essas criaturas.

O primeiro, naturalmente, é a pressa indecente com que o prof. Roberto Mangabeira Unger aceitou um cargo no governo que ele vinha insistentemente rotulando – aliás com razão -- de “o mais corrupto da nossa história”. Acrescentando à obscenidade o cinismo, o ex-professor de Harvard prontificou-se a retirar suas críticas, atribuindo-as à ingenuidade de ter acreditado na mídia antipetista, sem nem mesmo lhe ocorrer que alguém pudesse desejar saber por que o arrependimento de tê-las publicado só lhe veio depois do convite para o ministério, nem um minuto antes.

O objetivo do intelectual ativista é sempre e invariavelmente o poder. Sua atividade intelectual é apenas um instrumento ou um derivativo provisório, sem qualquer significado em si mesmo. Não li toda a obra do prof. Unger, mas a parte que li não continha uma só página de análise da realidade: só a expressão obsessivamente insistente de projetos, de utopias, de deveres que as pessoas deveriam cumprir se elas tivessem a felicidade de ser o prof. Unger e se o mundo não fosse injusto ao ponto de ter feito desse profeta iluminado um simples professor universitário e não uma reencarnação de Júlio César ou Gengis-Khan. O prof. Unger sempre discursa na clave do “dever ser”, com profundo desinteresse pelo “ser”. Ante a oportunidade de exercer ainda que uma migalha insignificante de poder no governo podre de um país falido, situado na extrema periferia do mundo, ele não se fez de rogado como Jonas ante o chamamento divino. Mais que depressa, atirou ao lixo a camuflagem de estudioso e mostrou o que é: um oportunista afoito, ávido de meios para “transformar o mundo” à sua imagem e semelhança.

Mas, já que ele se arrependeu de suas próprias palavras, deu-me também a oportunidade de me arrepender das minhas: qualquer coisa que eu tenha dito ou escrito em louvor do prof. Unger fica nula e sem efeito a partir da sua nomeação. Os atos públicos de um filósofo são interpretações – às vezes radicais – que ele dá à sua própria filosofia. Sócrates, enfrentando a morte com um sorriso, deu o melhor esclarecimento possível sobre como se deveria interpretar sua teoria da vida eterna. Integrando o establishment que antes ele fingia desprezar, o prof. Unger mostrou o que é sua filosofia: mero discurso de autopropaganda, trocável por qualquer outro que sirva ao mesmo objetivo.

O outro acontecimento foi o discurso bombástico da professora de Literatura Inglesa, Nikki Giovanni, na noite de vigília da Virginia Tech em homenagem às vítimas de Cho Seung-hui. “Nós somos a Virginia Tech! Nós não seremos derrotados”, exclamava ela, adornando com uma retórica de triunfalismo retroativo o vexame da inermidade de milhares ante um agressor solitário e sendo instantaneamente celebrada pela mídia como uma espécie de antípoda do assassino sul-coreano, a encarnação da vida invencível da coletividade em contraste com a morte de uns quantos indivíduos.

Nenhum outro orador seria melhor para essa farsa. Nikki Giovanni foi quem, nas suas aulas, deu sentido e orientação prática à loucura de Cho Seng-hui, infundindo-lhe o ódio assassino aos protestantes, aos judeus e aos brancos em geral. As duas peças de teatro, deformidades literárias medonhas nas quais o criminoso em preparação anuncia ao mundo as intenções que lhe passavam pela alma, são um traslado quase literal de poemas da sua professora, onde é explícito e enfático o apelo à matança dos “honkies” – o equivalente branco do pejorativo “nigger”. Num deles, “The True Import of Present Dialog, Black vs. White” (“O verdadeiro alcance do presente diálogo, negro versus branco”), ela não deixa por menos: “We ain't got to prove we can die. We got to prove we can kill” (“Não temos de provar que somos capazes de morrer. Temos de provar que somos capazes de matar.”) E, num convite direto: “Do you know how to draw blood? Can you poison? Can you stab-a-Jew? Can you kill huh?” (“Você sabe como arrancar sangue? Sabe envenenar? Sabe esfaquear um judeu? Você sabe matar, hein?”). Mais adiante, ela sugere ao negro urinar numa cabeça loira e em seguida arrancá-la. Num outro poema, dedicado ao espirito das revoluções, ela propõe um kit especial para crianças, com gasolina e instruções sobre como montar um coquetel Molotov. Seus ensaios estão repletos de estereótipos racistas destinados a fomentar o ódio aos brancos. Mas talvez a melhor expressão da mentalidade que ela transmite a seus alunos seja a tatuagem que ela traz no braço, “Thug life”, (“vida de bandido”), em homenagem a Tupac Shakur, um delinqüente raper assassinado num tiroteio por outros rapers em 1997.

A história de Nikki Giovanni, que jamais aparecerá na mídia brasileira, pode ser lida no artigo de Steve Sailer, “Virginia Tech's Professor of Hate” (“A professora de ódio na Virginia Tech”, publicado na revista de David Horowitz, Front Page Magazine. Mas quem melhor a resumiu foi um dos leitores que enviaram comentários ao blog de Sailer: “Quantas vezes Cho Seng-hui ouviu na Virginia Tech as palavras ‘privilégio branco'?” Não dá para contar, mas, só no website da escola essa expressão aparece 33 vezes.

Enfie todo esse ódio na mente de um maluco e ele só não sairá matando gente se estiver dopado. E a própria Nikki Giovanni sempre soube que Cho não era bom da cabeça. Mas que importa? Os intelectuais ativistas, por definição, são sempre inocentes das conseqüências de seus atos e palavras. Se o prof. Unger disse tais ou quais coisas contra o governo, a culpa é da mídia que o enganou, pobrezinho. Se Cho Seng-hui levou à prática o ódio anti-branco que uma professora lhe inoculou, a culpa é dos próprios brancos, do sistema, do capitalismo, do mundo mau – de todos, menos dela.

Essa crença do intelectual ativista na sua própria inocência e na culpa radical dos outros é uma herança direta das heresias do fim da Idade Média, cuja continuidade nas ideologias revolucionárias modernas é hoje uma realidade histórica bem provada.

Às vezes não é só convicção de inocência. É um sentimento de ser vítima no instante mesmo em que se comete o crime. É uma inversão total da relação de atacante e atacado. Se querem um exemplo, vejam o projeto de lei PLC 122/2006, que quer punir como crime toda crítica ao homossexualismo. A desculpa é proteger uma comunidade discriminada, mas que comunidade é mais discriminada do que os cristãos, que morrem aos milhares toda semana, nos países islâmicos e comunistas, e que nas democracias ocidentais são cada vez mais privados do direito de expor sua fé em público? É contra eles que essa lei iníqua se volta diretamente, numa ameaça tenebrosa aos seus direitos mais elementares – uma perseguição aberta e cínica incomparavelmente mais temível do que qualquer risco que os homossexuais possam ter sofrido neste país ou em qualquer outro. O que esse projeto consagra como lei é a inversão de nomes entre o perseguidor e o perseguido, entre o opressor e o oprimido, fazendo o primeiro de coitadinho e o segundo de criminoso.

Se a história da origem das ideologias modernas fosse contada ao público, este reconheceria imediatamente, nessa lei, nas declarações do prof. Unger ou no discurso da profa. Nikki Giovanni, a mesma velha pretensão demencial dos cátaros e dos albigenses à pureza intocável, coroada pelo direito de condenar o universo.

Como ninguém conhece isso, a ordem dos tempos também fica invertida, as velhas reivindicações de heresiarcas assassinos aparecem como o cume do progresso e das luzes, a objeção racional às suas pretensões se torna “fanatismo” e “fundamentalismo opressor”.

***

Sobre os intelectuais ativistas, leiam, se puderem, estes dois livros:

(1) “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, trad. Paulo Neves, São Paulo, Editora Peixoto Neto, 2007. É tradução de “ La Trahison des Clercs”, um clássico de 1927 em que o filósofo judeu, um dos homens mais lúcidos que a França já produziu, denuncia a abdicação geral dos deveres da inteligência por parte de intelectuais ávidos de poder. O editor Peixoto Neto foi meu aluno. Não o vejo há muitos anos, mas não é errado um professor ter orgulho de seus ex-alunos quando estão fazendo um belo trabalho.

(2) “Le Socialisme des Intellectuels”, de Jan Waclav Makhaïski, trad. e ed. Alexandre Skirda, Les Éditions de Paris, 2001. Makhaïski, autor polonês que escrevia em russo, foi militante esquerdista e conheceu bem os meios revolucionários russos e internacionais no fim do século XIX. Das suas observações e experiências, tirou as seguintes conclusões: (1) a classe revolucionária efetiva não eram os proletários, mas os intelectuais; (2) eles não eliminariam o capitalismo, mas o modificariam até que ele começasse a trabalhar mais em proveito deles do que dos capitalistas. Batata. Não deu outra.

Publicado no Diário do Comércio - 30/04/2007

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