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sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Príncipe herdeiro do Kwait se converte ao cristianismo: “a Bíblia me levou para o caminho certo”

 

GOSPEL+

Publicado por Tiago Chagas em 14 de janeiro de 2012

 

Príncipe herdeiro do Kwait se converte ao cristianismo: “a Bíblia me levou para o caminho certo”

Um arquivo em áudio, divulgado por um árabe cristão chamado Al-haqiqa, que transmite programas de televisão via satélite, mostra um diálogo de um ex-muçulmano convertido ao cristianismo assumindo os riscos a que estava exposto pelo fato de ter se convertido.

No diálogo, o novo convertido afirma estar consciente de que a divulgação de sua conversão pode custar-lhe a vida: “Em primeiro lugar, eu concordo totalmente com a distribuição desse arquivo de áudio e declaro que, se eles me matarem, por causa disso vou entrar na presença de Jesus Cristo e estar com ele por toda a eternidade. Estou satisfeito, porque a verdade na Bíblia me levou para o caminho certo”.

A voz é atribuída ao Príncipe Abdollah Al-Sabah, membro da família real do Kwait, país de maioria islâmica e com apenas quatro por cento de cristãos em sua população. A Constituição do Kwait reconhece o islamismo como religião oficial e a Sharia (lei islâmica) como principal fonte de orientação na criação de leis.

Segundo o site Noticias Cristianas, durante o programa em que a conversa foi divulgada, foi comentado que o príncipe havia renunciado à sua fé de berço. Trecho do áudio divulgado mostra o Príncipe Abdollah relacionando as revoltas dos povos árabes à religião: “As muitas comunidades islâmicas sempre quiseram dominar diferentes partes do mundo, mas Deus tem preservado o mundo e ainda o protege. É por isso que temos visto as discrepâncias que aparecem entre os grupos islâmicos que agora estão lutando entre si”.

Sites de orientação xiita desmentiram a notícia, afirmando que não há “ninguém na família real do Kuwait com esse nome”. A conversão do príncipe foi notícia nos principais canais de TV por assinatura com conteúdo árabe e na agência de notícias do governo do Irã, país vizinho ao Kwait, porém o destaque dado foi pequeno.

Fonte: Gospel+

Cachorros de Palha: Prefácio OU Réquiem para um Sonho

 

LUCIANO AYAN

Fonte: “Cachorros de Palha” (Editora Record, 2005)

Cachorros de Palha é um ataque às crenças impensadas de pessoas pensantes. O humanismo liberal dos dias de hoje possui o poder disseminado que antes pertencia à religião revelada. Os humanistas gostam de pensar que tem uma visão racional do mundo, mas sua crença essencial no progresso é uma superstição, mais afastada da verdade sobre o animal humano do que qualquer outra das religiões existentes.

Fora da ciência, o progresso não passa de um mito. Parece que em alguns leitores de Cachorros de Palha essa observação produziu um pânico moral. Será mesmo verdade, perguntam eles, que ninguém pode questionar o principal artigo de fé das sociedades liberais? Sem ele, não nos desesperamos? Como trêmulos vitorianos aterrorizados diante do risco de perder a fé, esses humanistas agarram-se ao brocado roto das esperanças progressistas. Os crentes religiosos atuais são mais livres-pensadores. Levados para as margens de uma cultura na qual a ciência reivindica autoridade sobre o conhecimento humano, tiveram que cultivar uma capacidade de duvidar. Já os crentes seculares – firmemente subjugados pela sabedoria convencional do tempo – estão sob forte influencia de dogmas não examinados.

A visão de mundo secular predominante é um pastiche da ortodoxia científica atual e de esperanças piedosas. Darwin mostrou que somos animais; mas – como os humanistas nunca se cansam de pregar – a maneira como vivemos “depende de nós”. Diferentemente de qualquer outro animal, dizem-nos, somos livres para viver como escolhemos. No entanto a idéias de livre-arbítrio não vem da ciência. Suas origens estão na religião – não numa religião qualquer, mas na fé cristã contra a qual os humanistas se batem tão obsessivamente.

No mundo antigo, os epicuristas especulavam sobre a possibilidade de que alguns eventos pudessem ser não causados; mas a crença de que os humanos se distinguem de todos os outros animais por terem livre-arbítrio é uma herança cristã. A teoria de Darwin não teria causado tanto escândalo se tivesse sido formulada na Índia hinduísta, na China taoísta ou na África animista. Da mesma forma, é apenas nas culturas pós-cristãs que os filósofos se esforçam tão piedosamente por reconciliar o determinismo científico com uma crença na capacidade única dos humanos de escolher o modo como vivem. A ironia do darwinismo evangélico é que ele usa a ciência para apoiar uma idéia da humanidade que tem sua origem na religião.

Alguns leitores viram Cachorros de Palha como uma tentativa de aplicar o darwinismo à ética e à política, mas em parte alguma o livro sugere que a ortodoxia neodarwiniana detenha a última palavra sobre o animal humano. Em vez disso, o darwinismo é estrategicamente exposto, a fim de romper a visão de mundo humanista predominante. Os humanistas buscam em Darwin um apoio para sua abalada fé moderna no progresso; mas não há progresso no mundo revelado por ele. Uma perspectiva verdadeiramente naturalista do mundo não deixa espaço algum para a esperança secular.

Entre filósofos contemporâneos, é uma questão de orgulho ser ignorante em teologia. Por conseqüência, as origens cristãs do humanismo secular raramente são compreendidas. No entanto eram perfeitamente claras para os seus fundadores. No inicio do século XIX, os positivistas franceses Henri Saint-Simon e Auguste Comte inventaram a Religião da Humanidade, uma visão de uma civilização universal baseada na ciência; o positivismo tornou-se o protótipo das religiões políticas do século XX. Através do impacto que tiveram sobre John Stuart Mill, fizeram do liberalismo o credo secular que é hoje. Através da profunda influencia que exerceram sobre Karl Marx, ajudaram a moldar o “socialismo científico”. Mas ironicamente, pois Saint-Simon e Comte eram críticos ferozes do laissez-faire econômico, também inspiraram, no final do século XX, o culto do livre mercado global. Contei essa história paradoxal, e com freqüentes traços de farsa, em meu livro Al-Qaeda e o significado de ser moderno.

O humanismo não é ciência, mas religião – a crença pós-cristã de que os humanos podem fazer um mundo melhor do que qualquer outro em que tenham vivido até agora. Na Europa pré-cristã assumia-se que o futuro seria igual ao passado. O conhecimento e a invenção poderiam avançar, mas a ética permaneceria basicamente a mesma. A história era uma série de ciclos, sem nenhum significado geral.

Contra essa idéia pagã, os cristãos entenderam a história como uma narrativa sobre o pecado e a redenção. O humanismo é a transformação dessa doutrina cristã da salvação em um projeto de emancipação humana universal. A idéia de progresso é uma versão secular da crença cristã na providencia. É por isso que era desconhecida entre os antigos pagãos.

A crença no progresso tem uma outra fonte. Na ciência, o crescimento do conhecimento é cumulativo. Mas a vida humana, como o todo, não é uma atividade cumulativa; o que se ganha numa geração pode ser perdido na próxima. Na ciência, o conhecimento é um bem puro; na ética e na política, tanto pode ser um bem quanto um mal. A ciência aumenta o poder humano – e amplia as imperfeições da natureza humana. Ela nos permite viver mais e ter padrões de vida mais elevados do que no passado. Ao mesmo tempo, permite-nos causar destruição – uns aos outros, e à própria Terra – numa escala jamais vista.

A idéia de progresso baseia-se na crença em que o crescimento do conhecimento e o avanço das espécies caminham juntos – se não agora, pelo menos a longo prazo. O mito bíblico da Queda do Homem contém a verdade proibida. O conhecimento não nos torna livres. Ele nos deixa como sempre fomos, vítimas de todo tipo de loucura. A mesma verdade é encontrada no mito grego. A punição de Prometeu, acorrentado a uma rocha por ter roubado o fogo dos deuses, não foi injusta.

Se a esperança no progresso é uma ilusão, como – pode-se perguntar – haveremos de viver? A pergunta parte do princípio de que os humanos podem viver bem apenas se acreditarem que tem o poder de refazer o mundo. No entanto a maior parte dos humanos que já existiram não acreditava nisso – e um grande número teve vidas felizes. A questão presume que o objetivo da vida seja a ação, mas isso é uma heresia moderna. Para Platão, a contemplação era a mais elevada forma de atividade humana. Uma idéia semelhante existia na Índia antiga. O objetivo da vida não era mudar o mundo. Era enxergá-lo corretamente.

Atualmente, essa é uma verdade subversiva, pois implica a vacuidade da política. A boa política é medíocre e improvisada, mas, no inicio do século XXI, o mundo está apinhado de grandiosas ruínas de utopias fracassadas. Com a esquerda moribunda, a direita tornou-se o abrigo da imaginação utópica. O comunismo global foi seguido pelo capitalismo global. As duas imagens do futuro tem muito em comum. Ambas são horrendas e, felizmente, quiméricas.

A ação política veio a ser um substituto para a salvação, mas nenhum projeto político pode salvar a humanidade de sua condição natural. Por mais radicais que sejam, os programas políticos são modestos expedientes concebidos para lidar com males recorrentes. Hegel escreve em algum lugar que a humanidade só se contentará quando estiver vivendo num mundo construída por si mesma. Ao contrário, Cachorros de Palha argumenta a favor de uma mudança que se afaste do solipsismo humano. Os humanos não podem salvar o mundo, mas isso não é razão para desespero. Ele não precisa de salvação. Felizmente, os humanos nunca viverão num mundo construído por si mesmo.
John Gray, maio de 2003.

Meus comentários

Antes de tudo, que fique claro: eu não endosso todas as idéias de John Gray. Mas eu não endosso a totalidade das idéias de NENHUM AUTOR. Assim como eu posso aproveitar até idéias de autores que eu critico. Por exemplo, eu uso a explicação de Richard Dawkins para a “origem da religião”, mas aplico-a para a crença no humanismo.

Assim sendo, quero deixar claro que eu tenho discordâncias em relação a John Gray. Gray ainda acredita em estados fortes, eu não. Gray afirma que o humanismo é sequência do cristianismo, já eu afirmaria que o humanismo é uma sequência DE UMA VERSÃO do cristianismo, especialmente o milenarista.

Mas essas discordâncias são detalhes, pois meu maior ponto de concordância com Gray se relaciona ao fato de que humanismo é UMA RELIGIÃO (no caso, uma religião política, pois é parte da esquerda, de acordo com a arquitetura de esquerda definida por mim), e como tal deve ser questionada.

Por ser uma religião mais absurda do que as religiões tradicionais, o questionamento deve ser ainda maior.

Em relação ao ceticismo quanto ao humanismo EM ESPECÍFICO, o livro “Cachorros de Palha” serve como um antídoto.

Quando surgiu o Iluminismo e a religião foi colocada na arena para ser questionada de TODAS as formas possíveis, provavelmente muitos líderes religiosos sentiram uma sensação de espanto. Provavelmente não estavam esperando este questionamento.

Hoje, tendo como uma das principais fontes de inspiração o livro de John Gray, quando eu entro em debates com esquerdistas e humanistas coloco-os sob um severo questionamento, tão severo quanto o questionamento que James Randi faz em relação aos médiuns.

Depois da argumentação de Gray, fica claro que já passou da hora de colocarmos toda a esquerda na arena. Eles não tem mais o direito moral de ficarem sem serem questionados.

E enfim faço-os sentir na pele a mesma sensação que os líderes religiosos sentiram no início dos questionamentos iluministas, vários séculos atrás.

É, agora a bola caiu para o lado do humanismo. ;)

As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem

 

MONERGISMO

por Dorothy Sayers [1]

Eu, cuja experiência de ensino é extremamente limitada, devo presumir que discutir educação é uma matéria, certamente, que não requer apologia. Isto é uma espécie de comportamento que o presente clima de opinião é inteiramente favorável. Os bispos ventilam suas opiniões sobre economia; biólogos, sobre metafísica; químicos inorgânicos, sobre teologia; as pessoas mais irrelevantes são designadas aos ministérios altamente técnicos; e claro, homens rudes escrevem para os jornais para dizer que Epstein e Picasso não sabem como pintar. Até certo ponto, e desde que as críticas sejam feitas com uma modéstia razoável, essas atividades são recomendáveis. Demasiada especialização não é boa coisa. Há também uma excelente razão porque o amador pode sentir-se com o direito de ter uma opinião sobre a educação. Porque se nem todos nós somos professores profissionais, todos nós temos, em algum tempo ou outro, sidos ensinados. Até se não aprendemos nada – talvez em detalhe se não aprendemos nada – nossa participação para a discussão pode ter um valor potencial.

Entretanto, está no mais alto grau de improbabilidade que as reformas que eu proponho, em algum tempo implicarão em efeito. Nem pais, nem treinamento em faculdades, nem bancas examinadoras, nem secretarias de governos, nem os ministros de educação, as encarariam e aprovariam. Pois elas redundam nisto: que se vamos formar uma sociedade de pessoas educada, preparadas para preservar a sua liberdade intelectual no meio das fortes pressões da nossa sociedade moderna, precisamos voltar a roda do progresso até uns quatrocentos ou quinhentos anos atrás, mais ou menos no final da Idade Média, até o ponto em que a educação começou a perder de vista o seu verdadeiro objetivo.

Antes que me despeçam com a frase apropriada — reacionária, romântica, medieval, laudator temporis acti [fã do passado], ou qualquer que seja o rótulo que primeiro lhes venha às mãos — eu pedirei que considerem uma ou duas perguntas que ficam escondidas na nuca, talvez, de todos nós; e ocasionalmente apareçam para preocupar-nos.

Quando pensamos sobre a idade tão jovem na qual os rapazes iam para a universidade nos tempos, digamos, da dinastia Tudor; e dali em diante eram considerados capazes de assumir responsabilidade pela condução dos seus próprios assuntos, nós nos confortamos.

Quando pensamos sobre a incrível tenra idade com a qual os jovens iam para a universidade, digamos, nos tempos da dinastia Tudor, e a partir de então eram tidos como capazes de assumir a responsabilidade pela condução dos seus próprios atos, de uma maneira geral nos sentimos confortáveis com a prolongação artificial da infância e adolescência intelectual, que adentra os anos de maturidade física, a qual é tão marcada na nossa própria época? O fato de adiar a aceitação de responsabilidade para uma data posterior traz consigo um número de complicações psicológicas que, enquanto possam ser de interesse para psiquiatras, raramente são de benefício seja para o indivíduo ou para a sociedade. O principal argumento em favor de adiar-se a idade de deixar a escola prolongando o período de educação é geralmente o de que há hoje em dia muito mais para ser aprendido do que havia na Idade Média. Isto em é verdadeiro, mas não inteiramente. Muito mais matérias são ensinadas aos meninos e às meninas de hoje em dia — mas isto significa que eles realmente sabem mais?

Já lhe ocorreu como estranho, ou lamentável, que atualmente, quando a proporção de alfabetismo em toda a Europa Ocidental é mais alta do que jamais foi, as pessoas devessem tornar-se suscetíveis à influência de anúncios e de propaganda em massa, em proporção até então desconhecida, nem imaginada? Você atribui isto meramente ao fator mecânico de que a imprensa e o rádio e demais meios têm tornado muito mais fácil a distribuição da propaganda numa grande área? Ou você é algumas vezes incomodado pela suspeita de que o produto dos modernos métodos educacionais é menos bom do que ele ou ele podem ser em distinguir o fato da opinião; e o provado do plausível?

Ao acompanhar um debate entre pessoas adultas e presumivelmente responsáveis, você já se sentiu perturbado pela extraordinária incapacidade de um debatedor médio para referir-se à questão, ou para acompanhar e refutar os argumentos dos seus oponentes? Ou você já parou para pensar sobre a incidência extremamente alta de assuntos irrelevantes que surgem nas reuniões de comitês; e sobre a grande escassez de pessoas capazes de agirem como dirigentes de reuniões de comitês? E quando você pensa sobre isso, e pensa que a maioria dos nossos assuntos públicos são solucionados por debates e por comitês, você alguma vez já se sentiu como se seu coração naufragasse?

Você já acompanhou uma discussão no jornal ou em qualquer outro lugar e notou o quão freqüente os escritores falham em definir os termos que usam? Ou o quão freqüente, se alguém definir mesmo os seus termos, um outro assumirá, na sua resposta, que ele estava usando os termos no sentido exatamente oposto àquele no qual ele já os havia definido? Você já se sentiu tonto com a quantidade de sintaxe descuidada que existe? E se sim, você se sente incomodado porque é deselegante ou porque pode levar a uma incompreensão perigosa?

Você acha que as pessoas jovens, ao deixarem a escola, não somente se esquecem muito do que aprenderam (isto somente é o esperado), mas também se esquecem, ou traem-se por nunca haverem na verdade aprendido, como lidar sozinhos com um assunto novo? Você se incomoda com freqüência ao encontrar-se com homens e mulheres adultos que parecem incapazes de distinguir entre um livro que seja bom, acadêmico and apropriadamente documentado e um que seja, para qualquer olho treinado, notadamente nada daquilo? Ou que não consigam manusear um catálogo de biblioteca? Ou que, quando face a face com um livro de referência, demonstrem uma curiosa incapacidade de extrair dali as passagens relevantes para o assunto que lhes seja de particular interesse?

Você freqüentemente depara-se com pessoas para quem, suas vidas todas, um “assunto” permanece sendo um “assunto”, separado de todos os demais “assuntos” como se num compartimento estanque, de maneira que encontram dificuldade muito grande ao tentar uma conexão mental entre, digamos, álgebra e ficção policial, entre tratamento de esgoto e o preço de salmão – ou, mais geralmente, entre esferas tais do conhecimento como filosofia e economia, ou química e artes?

Perturba-o, ocasionalmente, as coisas escritas por homens e mulheres adultos para mulheres e homens adultos lerem? Um biólogo bem conhecido escreve sobre este assunto num jornal semanal que “É um argumento contra a existência de um Criador” (acho que ele colocou de forma mais forte, mas já que eu, muito infelizmente, perdi a referência, colocarei seu raciocínio o mais brando possível) – “um argumento contra a existência de um Criador, que o mesmo tipo de variações que são produzidas por seleção natural possam ser produzidas à vontade, por criadores”. Alguém pode sentir-se tentado a dizer que isto mais é um argumento a favor da existência de um Criador. Na realidade, é claro que não é nenhuma das situações; tudo o que isto prova é que as mesmas causas materiais (seja a re-combinação dos cromossomos, sejam os cruzamentos e assim por diante) são suficientes para explicar todas as variações observáveis – tanto como as várias combinações da mesma dúzia de notas são materialmente suficientes para explicar a Sonata ao Luar de Beethoven e os sons produzidos por um gatinho andando sobre as teclas. Mas o fato de o gato andar sobre as teclas do piano não prova nem contesta a existência de Beethoven; e tudo o que é provado pelo argumento do biólogo é que ele era incapaz de distinguir entre uma causa material e uma causa final.

Eis aqui uma frase de fonte não menos acadêmica que um artigo de primeira página no Suplemento Literário do jornal Inglês “The Times”: “O Francês Alfred Epinas, afirmou que certas espécies (e.g. formigas e vespas) somente podem encarar os horrores da vida e da morte em associação”. Não sei o que o Francês realmente disse, o que o Inglês diz que ele disse é patentemente sem sentido. Não podemos saber se a vida tem algum horror para a formiga, nem em que sentido pode ser dito que aquela vespa que você mata no peitoril da janela “encara” ou “não encara” os horrores da morte. O tema do artigo é o comportamento coletivo do homem; e as razões humanas foram inobstrutivamente transferidas da proposição principal para a situação de suporte. Assim o argumento, efetivamente, assume o que deveria provar – um fato que se tornaria imediatamente aparente se fosse apresentado num silogismo formal. Este é somente um exemplo pequeno e aleatório, de um vício que permeia livros inteiros — particularmente livros escritos por homens da ciência, sobre temas metafísicos.

Uma outra citação da mesma edição do Suplemento Literário do “The Times” vem muito apropriadamente completar esta despretenciosa coleção de pensamentos inquietantes — esta vez da revisão da obra “Algumas Tarefas para a Educação” escrita por Sir Richard Livingstone: “Mais de uma vez o leitor é lembrado do valor de um estudo intensivo de pelo menos um tema, de modo a aprender o significado do conhecimento e que precisão e persistência é preciso para alcança-lo. Todavia, há um reconhecimento completo, em toda a volta, do desconfortável fato de que um homem pode ser um mestre numa determinada área sem mostrar julgamento melhor que o do seu vizinho em qualquer outro assunto; ele se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como aprendeu.”

Eu chamaria a sua atenção em particular para aquela última sentença, a qual oferece uma explicação do que o escritor corretamente chama de “fato desconfortável” que as capacidades intelectuais a nós conferidas pela nossa educação não são prontamente transferíveis a assuntos outros que não aqueles nos quais nós as adquirimos: “ele se lembra do que aprendeu, mas se esquece por completo de como aprendeu”.

Não é o grande defeito da nossa educação atual — defeito este rastreável através de todos os inquietantes sintomas de problema que mencionei — que embora nós muitas vezes obtenhamos sucesso em ensinar “assuntos” aos nossos alunos, nós falhemos lamentavelmente em ensina-los como pensar: eles aprendem tudo, exceto a arte de aprender. É como se embora ensinássemos a uma criança tocar “O Ferreiro Harmonioso” no piano, mecanicamente, só com a prática; mas nunca a ensinássemos a escala musical ou como ler uma partitura; de modo que, havendo memorizado “O Ferreiro Harmonioso”, ele ainda assim não teria a mínima noção de como proceder dali e atacar “A Última Rosa do Verão”. Por que eu digo “como se embora”? Em certas áreas das artes, nós fazemos precisamente isto — requerendo que uma criança “expresse-se” com tinta antes de ensinarmo-la como lidar com cores e com o pincel. Há uma escola de pensamento que acredita ser esta a maneira correta de se iniciar. Mas observe: este não é o método do qual um artista treinado se utilizará para uma nova criação. Ele, tendo aprendido pela experiência a melhor forma de economizar esforços e pegar a coisa pelo lado certo, começará desenhando em rascunhos uma peça qualquer de material, de maneira a “sentir a ferramenta”.


O ESQUEMA DE EDUCAÇÃO MEDIEVAL

Observemos agora o esquema medieval de educação — o programa das Escolas. Não importa, no momento, se foi elaborado para crianças pequenas ou para estudantes mais velhos, ou qual a duração esperada do mesmo. O que importa é a luz que ele joga sobre o que os homens da Idade Média supunham ser o objeto e a ordem certa do processo educativo.

O programa era dividido em duas partes: o “Trivium” e o “Quadrivium”. A segunda parte — o “Quadrivium” — era constituído de “assuntos”; e no momento não precisa nos dizer respeito. O que nos interessa é a composição do “Trivium”, que precedeu o “Quadrivium” e que era a disciplina preliminar para o mesmo. O “Trivium” consistia-se de três partes: Gramática, Dialética e Retórica, nesta ordem.

Agora, a primeira coisa que notamos é que dois destes “assuntos” em qualquer ordem não são o que chamaríamos de “assuntos”: eles são somente métodos de lidar com assuntos. A Gramática, de fato, é um “assunto” no sentido de que ela significa definitivamente o aprendizado de um idioma — naquela época, gramática significava o aprendizado do Latim. Mas em si mesmo, um idioma é simplesmente o meio através do qual um pensamento é expresso. O propósito do “Trivium” como um todo era, na verdade, ensinar o aluno o uso apropriado das ferramentas do aprendizado, antes que ele começasse a aplica-las aos “assuntos”. Primeiro ele aprendia um idioma; não simplesmente como pedir uma refeição num idioma estranho, mas a estrutura de um idioma, e destarte o próprio idioma—o que era, como era formado, e como funcionava. Em segundo lugar, ele aprendia como usar o idioma; como definir os seus termos e fazer declarações acuradas; como construir um argumento e como detectar falácias em um argumento. A Dialética, equivale dizer, compreendia a Lógica e a Disputa. Em terceiro lugar, ele aprendia como se expressar num idioma—como dizer o que ele tinha a dizer, elegantemente e com persuasão.

Ao final do seu curso, requeria-se dele a composição de uma tese sobre algum tema indicado pelos seus mestres ou de sua própria escolha; e em seguida a defesa de sua tese contra o criticismo da faculdade. Nesta altura, ele teria aprendido — ou azar dele — não meramente como escrever um ensaio num pedaço de papel, mas como falar audível e inteligentemente numa plataforma, e usar rapidamente sua inteligência quando questionado. Também haveria perguntas, argumentativas e astutas, daqueles que já haviam sido confrontados em debates.

É bem verdade que resquícios da tradição medieval ainda perduram, ou foram revividos, no programa escolar ordinário de hoje em dia. Algum conhecimento de gramática ainda é requerido no aprendizado de um idioma estrangeiro – talvez eu devesse dizer, “é novamente requerido”, pois durante a minha própria vida, passamos por uma fase quando o ensino de conjugações e inflexões era tido como mais repreensível, e era considerado ser melhor que tais coisas fossem ‘pegas’ conforme avançássemos. Sociedades de debate escolar florescem; ensaios são escritos; enfatiza-se a necessidade de uma “auto-expressão”; e talvez até mesmo o seja em demasia. Mas estas atividades são cultivadas mais ou menos em separado, como que pertencendo aos temas especiais nos quais elas são ‘andorinha sozinha’, ao invés de formando um único e coerente esquema de treinamento mental no qual todos os “temas” encontram-se numa relação subordinada. A “Gramática” pertence especialmente ao “tema” de idiomas estrangeiros, e a elaboração de ensaios ao “tema” chamado “Língua Inglesa”; enquanto que a Dialética veio a estar quase que inteiramente divorciada do restante do currículo, e é freqüentemente praticada sem qualquer sistemática e fora do horário de aulas, como um exercício em separado, apenas muito pobremente relacionada ao assunto principal do aprendizado. Em muito, a grande diferença da ênfase entre as duas concepções: a educação moderna concentra-se no “ensino de matérias”, deixando o método de pensamento, a argüição e a expressão das conclusões individuais para serem assimiladas pelo acadêmico conforme ele avança pela educação medieval, concentrado em primeiro forjar e aprender a manusear as ferramentas do aprendizado, utilizando qualquer que seja o assunto que lhe venha às mãos como uma peça de material para ser modelado, até que o uso da ferramenta se torne uma segunda natureza.

É claro que devem existir “matérias” de algum tipo. Uma pessoa não pode aprender a teoria da gramática sem aprender um idioma real, ou aprender argüição e oratória sem falar sobre algum tema em particular. Os temas de debates da Idade Média provinham em muito da teologia, ou da ética ou da história da antigüidade. É fato que, freqüentemente, eles tornavam-se estereotipados, especialmente próximo ao final do período; e os tremendos absurdos do argumento Escolástico vexaram Milton e proveram combustível para ‘jocosidade’ até os dias de hoje. Se eram eles próprios mais banais e fúteis do que os temas usuais atualmente apresentados para “produção de ensaios”, eu não gostaria de dizer: nós podemos cansarmo-nos um pouco de “Um Dia nas Minhas Férias” e de todo o resto. Mas muito da ‘jocosidade’ não tem lugar, porque de há muito perdeu-se de vista o assunto e o objetivo das teses de debate.

Um comentarista sem respeito no “Brain Trust” [programa e periódico Inglês de sátira, também com site na web] divertiu sua audiência (e reduziu a memória de Charles Williams a trapos) ao afirmar que na Idade Média era uma questão de fé saber quantos arcanjos podiam dançar na ponta de uma agulha. Eu não preciso dizer, espero, que nunca foi uma “questão de fé”; tratava-se simplesmente de um exercício de debate, cujo tema proposto era a natureza da substância angelical: os anjos eram materiais, e se o eram, ocupavam lugar no espaço? A resposta usualmente considerada como correta é, eu creio, que os anjos são inteligências puras; não materiais, mas limitados, de modo que eles podem ter localização no espaço, porém não extensão. Uma analogia pode ser traçada com o pensamento humano, o qual é similarmente não material e similarmente limitado. Assim, se o seu pensamento está concentrado numa coisa — digamos, a ponta de uma agulha— ele está localizado lá, no sentido de que não está em nenhum outro lugar; mas embora ele (o seu pensamento) esteja “lá”, ele não ocupa nenhum lugar, e não há nada que evite que um número infinito de pensamentos de diferentes pessoas estejam concentrados na ponta da mesma agulha ao mesmo tempo. O tema apropriado do argumento é assim visto como sendo a distinção entre localização e extensão no espaço; o assunto no qual o argumento é exercido apenas ocorre de ser a natureza dos anjos (embora, como temos visto, poderia muito igualmente ter sido qualquer outra coisa); a lição prática a ser tirada do argumento é não usar palavras tais como “” num sentido vago e não científico, sem especificar se você quer dizer “localizado ” ou “ocupando espaço ”.

Muito escárnio foi jogado sobre a paixão medieval de separar o cabelo, mas quando olhamos ao desavergonhado abuso, feito tanto por escrito como nas plataformas, de expressões controversas com conotações ambíguas e de duplo sentido, podemos sentir em nossos corações o desejo de que cada leitor e cada ouvinte tivesse sido tão defensivamente armado por sua educação, que pudesse ser capaz de bradar: “Distinguo”.

Pois nós permitimos que os nossos jovens, rapazes e moças, saiam desarmados, numa época em que uma armadura nunca foi tão necessária. Por ensiná-los a ler, temos deixado-os à mercê da palavra impressa. Pela invenção do rádio e do filme, temos feito certo de que nenhuma aversão à leitura os livrará da bateria incessante de palavras, palavras, palavras. Eles não sabem o que as palavras significam; eles não sabem como refutá-las, ou como torná-las inofensivas ou como resistir a elas; eles são presas das palavras, nas suas emoções, ao invés de serem os seus mestres, nos seus intelectos. Nós que nos escandalizamos em 1940 quando homens eram enviados para lutar contra tanques armados, não nos escandalizamos quando jovens moças e rapazes são enviados para o mundo para lutar contra propaganda massificada somente com conhecimento superficial de “matérias”; e quando classes inteiras e nações inteiras tornam-se hipnotizadas pelos estratagemas do livro de feitiços, nós temos a impudência de nos espantarmos. Como esmolas nós pouco trabalhamos pela importância da educação — trabalhamos pouco e, apenas ocasionalmente, gastamos um pouco do nosso dinheiro; nós prorrogamos a idade de finalizar os estudos, e planejamos a construção de escolas maiores e melhores; os professores escravizam-se deliberadamente seja durante ou fora do horário de aulas; e todavia, tanto quanto eu creio, a devoção de todo esse esforço é largamente frustrada, porque nós perdemos as ferramentas do aprendizado, e na falta delas nosso trabalho é incompleto e desconjuntado.

O QUE, ENTÃO ?

O que, então, devemos fazer? Não podemos regredir à Idade Média. Este é um lamento ao qual nós nos acostumamos. Não podemos voltar — ou podemos? Distinguo. Eu gostaria que cada termo na proposição acima fosse definido. O termo “voltar” quer dizer um retrocesso no tempo, ou a revisão de um erro? A primeira hipótese é claramente impossível ‘per se’; a segunda é algo que homens sábios fazem todo dia. A expressão “Não podemos”—significa que o nosso comportamento é irreversivelmente determinado, ou meramente que uma ação como tal seria muito difícil, em vista da oposição que provocaria? O século vinte obviamente não é e nem pode ser o século catorze; mas se “a Idade Média” for, neste contexto, simplesmente uma frase pitoresca denotando uma teoria educacional em particular, então a priori não parece haver nenhuma razão porque não devêssemos “voltar” — com modificações — da mesma forma como já “voltamos”, com modificações, para, digamos, a idéia de apresentar peças de Shakespeare como ele as escreveu, e não nas versões “modernizadas” de Cibber e Garrick, que uma vez pareceram ser a última moda em termos de progresso teatral.

Vamos divertirmo-nos imaginando que tão retrocesso progressivo seja possível. Façamos uma limpeza completa de todas autoridades educacionais, e tomemos uma pequena escola mista, de garotos e garotas, a quem podemos experimentalmente equipar para o conflito intelectual segundo linhas que nós mesmos escolhemos. Dotá-los-e-mos com pais excepcionalmente dóceis; contrataremos para a nossa escola professores e mestres que sejam perfeitamente familiares com os métodos e com o objetivo do “Trivium”; teremos as instalações físicas da nossa escola em proporções tais que possibilitem as classes serem pequenas o suficiente para atenção adequada; e postularemos uma Banca de Examinadores desejosos e qualificados para testar os produtos que lhes apresentarmos. Assim preparados, tentaremos delinear um programa — um “Trivium” moderno, “com modificações”, e veremos aonde chegaremos.

Mas primeiro: as crianças, que idade devem ter? Bem, se alguém educá-los em linhas novelescas, será melhor que eles não tivessem nada para aprender; além do mais, ninguém pode começar algo cedo demais, e o “Trivium” é por sua natureza não um aprendizado, mas uma preparação para o aprendizado. Vamos, então, “pegá-los enquanto jovens”, exigindo de nossos alunos somente que eles sejam capazes de ler, de escrever e que conheçam números.

Meus pontos de vista sobre a psicologia infantil são, eu admito, nem ortodoxos nem iluminados. Olhando para o meu próprio passado (uma vez que eu sou a criança que melhor conheço e a única criança que eu posso fingir conhecer no interior) eu reconheço três estágios de desenvolvimento. Estes, numa forma simples chamarei o ‘Papagaio’, o ‘Arrojado’ e o ‘Poético’ — este último coincidindo, aproximadamente, com a ocorrência da puberdade. O estágio ‘Papagaio’ é aquele no qual o aprendizado intuitivo é fácil e, como um todo, prazeroso; enquanto que o raciocínio é difícil e, como um todo, de pouco prazer. Nesta idade, a pessoa memoriza as formas e as aparências de coisas com facilidade; gosta de recitar os números das placas de carros; alegra-se com as rimas e os sons guturais de polissílabos ininteligíveis; gosta do simples acúmulo de coisas. A idade do estágio ‘Arrojado’, que se segue àquela (e, naturalmente, durante algum tempo mescla-se com ela), é caracterizada por contradizer, por responder, por gostar de “descobrir erros dos outros” (especialmente parentes mais velhos); e pelo gostar de propor charadas. Sua capacidade de incomodar é extremamente alta. Usualmente se aquieta mais durante o nível escolar secundário. A idade do estágio ‘Poético’ é conhecida popularmente como a idade “difícil”. Nela o indivíduo é introvertido, tem forte necessidade de expressar-se; de certa forma torna-se especialista em ser incompreendido; é incansável e tenta alcançar independência; e, com sorte e um bom direcionamento, deveria mostrar os começos de criatividade; um esticar-se ao encontro de uma síntese do que já sabe, e uma ânsia deliberada de conhecer e de fazer alguma coisa, em preferência a todas as demais. Agora, a mim me parece que o desenho do “Trivium” se adapta com singular perfeição a estas três idades: a Gramática para a idade ‘Papagaio’, a Dialética para a idade ‘Arrojada’ e a Retórica para a idade ‘Poética’.

O ESTÁGIO DA GRAMÁTICA

Comecemos, então, com a Gramática. Esta, na prática, significa a gramática de algum idioma em particular; que deve ser um idioma flexionado. A estrutura gramatical de um idioma não flexionado é por demais analítica para ser abordada por alguém sem uma prévia prática em Dialética. Ademais, as linguagens flexionadas interpretam as não flexionadas, enquanto que as não flexionadas são de pouco proveito interpretando as flexionadas. Direi agora, com bastante firmeza, que o melhor fundamento para a educação é a gramática do Latim. Digo isto, não porque o Latim é tradicional e medieval, mas simplesmente porque até um conhecimento rudimentar do Latim reduz o labor e as dores da aprendizagem quase de qualquer outro assunto em pelo menos cinqüenta por cento. É a chave para o vocabulário e para a estrutura de todos os idiomas Românticos, e para a estrutura de todos os idiomas Teutônicos, bem como para o vocabulário técnico de todas as ciências e para a literatura de toda civilização Mediterrânea, juntamente com todos os seus documentos históricos.

Aqueles cuja preferência pedante por uma linguagem viva os persuade a privar seus alunos de todas vantagens acima, podem substituir pelo Russo, cuja gramática é ainda mais primitiva que a do Latim. O Russo é, certamente, útil para com outros dialetos Eslavos. Há algo também para ser dito pelo Grego Clássico. Porém, minha escolha pessoal é o Latim. Tendo assim satisfeito aos Classicistas entre vocês, vou escandalizá-los, ao acrescentar que não acho ser sábio ou necessário limitar o aluno ordinário, o aluno mediano, na “cama de Procusto da Idade Augusta”[2], com as suas artificiais e mui elaboradas formas de verso e oratória. O Latim Pós-Clássico e medieval, que era língua viva até o fim da Renascença, é mais fácil e em alguns aspectos mais cheio de vida; um estudo dele ajuda dissipar a noção disseminada de que o aprendizado e literatura pararam por completo quando Cristo nasceu e somente despertaram novamente quando da Dissolução dos Mosteiros.

O Latim deve começar tão cedo quanto possível – em um tempo quando a fala flexionada parece não mais surpreender do que qualquer outro fenômeno em um mundo surpreendente; e quando o cantar de “Amo, amas, amat” é tão ritualmente agradável aos sentimentos como o cantar de “eeny, meeny, miney, moe” [cantiga infantil muito popular em países da língua Inglesa].

Nesta idade devemos, certamente, exercitar a mente em outras coisas além da gramática do Latim, quando a Observação e a Memória são as faculdades mais vivas; e se formos aprender uma língua estrangeira contemporânea, devemos começar agora, antes que os músculos faciais e mentais se tornem rebeldes a entonações estranhas. Francês ou Alemão falados podem ser praticados lado a lado com a disciplina gramatical do Latim.

Em Inglês, por enquanto, verso e prosa podem ser aprendidos ‘de ouvido’, e a memória do aluno deve ser estocada com estórias de todas espécies – mito clássico, lenda Européia, e assim por diante. Eu não acredito que as estórias clássicas e obras primas de literatura antiga devam ser as vítimas nas quais pratiquemos as técnicas de Gramáticas –- aquilo foi um erro da educação medieval que não necessitamos perpetuar. As estórias podem ser aproveitadas e relembradas em Inglês e relacionadas à sua origem num estágio subseqüente. Recitação em voz alta deve ser praticada, individualmente ou em coro; pois não devemos esquecer que nós estamos assentando o alicerce para a Discussão e para a Retórica.

Eu penso que a gramática da História deve consistir de datas, de eventos, de anedotas, e de personalidades. Um conjunto de datas nas quais alguém possa pregar todo conhecimento histórico posterior é de enorme ajuda um pouco mais adiante, no estabelecimento da perspectiva da história. Não importa muito quais datas: aquelas dos Reis da Inglaterra servirá, desde que sejam acompanhados de figuras de vestuários, de arquitetura e de outras coisas cotidianas, de forma que a simples menção de uma data remeta a um retrato visual muito forte de todo o período.

A Geografia será similarmente apresentada em seu aspecto factual, com mapas, características naturais, e apresentação visual de costumes, traje, flora, fauna, e assim por diante; e eu mesma creio que a desacreditada e antiquada memorização de algumas poucas cidades, rios, cordilheiras, etc., não prejudica. A coleção de selos pode ser encorajada.

A ciência, no período ‘Papagaio’, se arranja fácil e naturalmente ao redor de coleções – a identificação e nomeação de espécimes e, em geral, o tipo de coisa que é usualmente chamado “filosofia natural”. Conhecer o nome e propriedades das coisas é, nesta época, uma satisfação em si mesmo, reconhecer um besouro no jardim imediatamente [3], e assegurar aos tolos mais velhos que, apesar de sua aparência, ele não pica; ser capaz de escolher Cassiopéia e as Plêiades, e talvez até saber quem foram Cassiopéia e Plêiades; estar ciente de que uma baleia não é um peixe, e uma morcego não é um pássaro – todas estas coisas dão uma agradável sensação de superioridade; enquanto que saber diferenciar uma cobra cascavel de uma víbora ou uma cogumelo comestível de um venenoso é uma espécie de conhecimento que também tem valor prática.

A gramática da Matemática começa, certamente, com a tabuada, a qual se não for aprendida agora, com prazer, nunca o será; e com o reconhecimento de formas geométricas e conjuntos de números. Esses exercícios conduzem naturalmente à realização de somas simples na aritmética. Processos matemáticos mais complexos podem, e talvez devam, ser postergados, por razões que presentemente aparecerão.

Até aqui (exceto, é claro, pelo Latim), nosso currículo não contêm nada que se distancie muito da prática comum. A diferença será sentida mais na atitude dos professores, que devem olhar sobre todas estas atividades menos como “matérias” em si mesmas, do que como um agrupamento de material para ser usado próxima etapa do “Trivium”. O que é esse material é de importância secundária; mas trata-se de tudo e de qualquer coisa que possa utilmente ser armazenado na memória, neste período, seja imediatamente inteligível ou não. A tendência moderna é tentar e forçar explanações racionais na mente de uma criança numa idade demasiadamente tenra. Perguntas inteligentes, feitas espontaneamente, devem certamente receber respostas imediatas e racionais; mas é um grande erro supor que uma criança não pode aproveitar com prazer e lembrar coisas que estão além do seu poder de analisar – particularmente se todas aquelas coisas têm forte um apelo imaginativo (como, por exemplo, “Kubla Kahn”) [4], um jingle atrativo (como algumas das rimas de memória para o gênero Latim), ou uma abundância de riqueza, polissílabas ressonantes (como “Quicunque vult”). [5]

Isto me lembra da gramática de Teologia. Eu devo adicioná-la ao currículo, porque Teologia é a ciência-mestra sem a qual toda a estrutura educacional estará necessariamente desprovida de sua síntese final. Aqueles que discordam disso, ficarão contentes em deixar a educação de seus alunos ainda cheia de finais imprecisos. Isto importará menos do que poderia, desde que quando as ferramentas da aprendizagem tiverem sido forjadas, o estudante será capaz de lidar com a Teologia por si mesmo, e provavelmente insistirá nisso, e fazendo-o com sentido. Pois bem, é bom também termos esta matéria à mão e pronta para ser trabalhada. Na idade da gramática, portanto, devemos familiarizarmo-nos com a história de Deus e o Homem em linhas gerais — i.e., o Antigo e o Novo Testamentos apresentados em partes, por narrativas completas da Criação, da Rebelião, e da Redenção — e também com o Credo, a Oração do Pai Nosso, e os Dez Mandamentos. Neste estágio inicial, não importa tanto que estas coisas devam ser compreendidas inteiramente, já que elas devem ser conhecidas e lembradas.

O ESTÁGIO DA LÓGICA

É difícil dizer com que idade, precisamente, deveríamos passar da primeira para a segunda parte do “Trivium”. Falando de maneira geral, a resposta é: tão logo que o aluno mostre-se pronto para argumentos ‘arrojados’ e intermináveis. Pois assim como na primeira parte as faculdades predominantes são a Observação e a Memória, na segunda parte a faculdade que predomina é a Razão Discursiva. Na primeira, o exercício ao qual o restante do material estava, assim dizendo, ligado, era a gramática do Latim; na segunda, o exercício chave será a Lógica Formal. É aqui que o nosso currículo apresenta sua primeira divergência acentuada para com os padrões modernos. A perda de reputação sofrido pela Lógica Formal é injustificada; e a sua negligência é a raiz de quase todos os sintomas inquietadores que notamos na constituição intelectual moderna. A Lógica tem sido descreditada, em parte porque passamos a supor que somos quase que totalmente condicionados pelo inconsciente e pelo intuitivo. Não há tempo para discutir se tal é verdadeiro ou não; eu simplesmente farei a observação de que negligenciar o treinamento apropriado da razão é a melhor forma possível de torná-lo verdadeiro. Uma outra causa do estado de desfavor no qual a Lógica caiu é a crença de que ela seja inteiramente baseada em pressuposições universais que são ou improváveis ou redundantes. Isto não é verdade. Nem todas proposições são deste tipo. Mas mesmo que fossem, não faria diferença, já que cada silogismo cuja maior premissa esteja no formato “Todo ‘A’ é ‘B’” pode ser reapresentado de forma hipotética. A lógica é a arte de argüir corretamente: “Se ‘A’, então ‘B’”. O método não é invalidado pela natureza hipotética de ‘A’. Verdadeiramente, a utilidade prática da Lógica Formal hoje em dia está não tanto no estabelecimento de conclusões positivas, como na detecção imediata e exposição de inferência inválida.

Revisemos agora, rapidamente, nosso material e vejamos o quanto ele está relacionado com a Dialética. Deveremos, agora, no lado da Linguagem, ter nosso vocabulário e morfologia ao alcance das mãos; doravante podemos nos concentrar em sintaxe e em análise (i.e. a construção lógica do pronunciamento) e na história da linguagem (i.e. como viemos a arranjar nossa fala como o fazemos, de forma a expressar nossas idéias).

Nossa Leitura progredirá de narrativa e lirismo para ensaios, argumento e criticismo; e o aluno aprenderá a aventurar-se na escrita deste tipo de coisa. Muitas lições — em quaisquer que sejam as matérias — terão a forma de debates; e no lugar de recitações, individuais ou em coro, haverá desempenhos dramáticos, com atenção especial para peças nas quais um argumento seja apresentado de forma dramática.

A Matemática — a álgebra, a geometria e os mais avançados tipos de aritmética — entrarão agora no programa e terão seu lugar como o que realmente são: não uma “matéria” separada, mas um sub departamento da Lógica. É nem mais nem menos que a regra do silogismo em sua aplicação particular a números e medidas; e deveria ser ensinada como tal, ao invés de ser, para alguns, mistério nebuloso; e, para outros, revelação especial, nem iluminando ou sendo iluminada por qualquer outra parte do conhecimento.

A História, auxiliada por um sistema simples de ética derivado da gramática da teologia, proverá muito material apropriado para discussão: ‘O comportamento deste estadista foi justificado?’ ‘Qual foi o efeito da promulgação de lei como esta?’ ‘Quais são os argumentos pró e contra esta ou aquela forma de governo?’ Conseguiremos assim uma introdução à história constitucional — um assunto sem significado algum para crianças pequenas, mas de interesse absorvente para aqueles que encontram-se preparados para argüir e debater. A própria Teologia fornecerá material para discussões sobre moral e conduta; e fosse o seu escopo estendido por um simples curso de teologia dogmática (i.e. a estrutura racional do pensamento Cristão), esclarecendo as relações entre dogma e ética, e emprestando-se a si mesma àquela aplicação de princípios éticos em situações particulares, o que é apropriadamente chamado casuísmo. A Ciência e a Geografia, semelhantemente proverão material para a Dialética.

Mas acima de tudo, não devemos negligenciar o material que é tão abundante na vida diária do próprio aluno.

Há uma deliciosa passagem no livro de Leslie Paul intitulado “The Living Hedge” que conta como um grupo de garotos divertiram-se por dias discutindo sobre uma extraordinária chuvarada que caíra na sua cidade — uma pancada de chuva tão localizada que molhou apenas metade da rua principal, a outra metade permanecendo seca. Poderia alguém apropriadamente afirmar, eles discutiram, que naquele dia havia chovido na cidade, ou sobre a cidade, ou dentro da cidade? Quantas gotas de água requeria-se para que se constituísse chuva? E assim por diante. O argumento sobre este tema levou a uma multidão de situações similares, sobre movimento e descanso, sono e vigília, ‘est’ e ‘non est’, e a divisão infinitesimal do tempo. O trecho todo é um exemplo admirável do desenvolvimento espontâneo da faculdade de raciocínio e da sede natural e apropriada do despertar da razão, para a definição de termos e para a exatidão de enunciados. Todos eventos são alimento para tal apetite.

A decisão de um juiz num jogo; o grau até o qual alguém pode transgredir o espírito de uma regra sem incorrer na penalidade prevista na lei: em questões como estas, as crianças são casuístas natos, e a sua natural propensão precisa somente de ser desenvolvida e treinada — e especialmente, trazida até um estado de relacionamento inteligível com os eventos do mundo adulto. Os jornais são repletos de bom material para tais exercícios: decisões legais, por um lado, em casos onde o motivo em questão não é por demais ambíguo; e por outro, raciocínio tendencioso e argumentos confusos e desordenados, com os quais as colunas de correspondência de certos periódicos, poder-se-ia nomear, são abundantemente estocadas.

Onde quer que o assunto para a Dialética seja encontrado, é claro que é extremamente importante focalizar a atenção sobre a beleza e a economia de uma demonstração bem feita ou de um argumento bem construído, pelo medo que a veneração morresse por completo. O Criticismo não deve ser meramente destrutivo; embora professor e alunos devam ao mesmo tempo estar prontos para detectar falácia e tendenciosidade, raciocínio descuidado, ambigüidade, irrelevância e redundância; e atacá-los como gatos sobre ratos. Este é o momento quando a inclusão de um abstrato (N.T.: resumo, sumário) pode ser utilmente empregado junto com exercícios tais como a produção de um ensaio, e a redução do mesmo, quando escrito, por 25 ou 50 porcento.

A objeção será feita, indubitavelmente, que encorajar pessoas jovens na idade ‘Arrojada’ a intimidar, corrigir e argüir com mais velhos fará com que tornem-se perfeitamente intoleráveis. Minha resposta é que crianças naquela idade já são intoleráveis de qualquer forma; e que a sua capacidade natural de argumentação pode tão bem ser canalizada para um bom propósito, quanto ser desperdiçada. Pode ser, na verdade, bem tolerável em casa se for disciplinada na escola; e de qualquer forma, pessoas mais velhas que abandonaram o salutar princípio de que crianças devem ser vistas mas não ouvidas, têm a ninguém mais a não ser eles próprios para culpar.

Uma vez mais, o conteúdo do programa neste ponto pode ser qualquer coisa que você queira. As “assuntos” fornecem material; mas deve-se pensar neles todos apenas como grãos para o trabalho do moinho da mente. Os alunos devem ser encorajados a ir e procurar sua própria informação; e então guiados na direção do uso apropriado dos livros de referência e das bibliotecas, e ser-lhes mostrado como reconhecer quais fontes são confiáveis e de excelência, e quais não o são

O ESTÁGIO DA RETÓRICA

Caminhando para o encerramento deste estágio, os alunos provavelmente estarão começando a descobrir por si próprios que o seu conhecimento e a sua experiência são insuficientes, e que as suas inteligências treinadas necessitam de muito mais material para digerir. A imaginação — usualmente dormente durante a idade ‘Arrojada’ — despertará e os incitará a suspeitar das limitações da lógica e da razão. Isto significa que estão adentrando à idade ‘Poética’ e que estão prontos para embarcar no estudo da Retórica. As portas do armazém do conhecimento devem agora ser-lhes abertas de par em par para entrarem e fartarem-se o quanto quiserem. As coisas uma vez aprendidas pela repetição agora serão vistas em contextos novos; tudo aquilo uma analisado friamente, formará agora uma síntese inteiramente nova; aqui e ali uma percepção repentina trará à tona a mais excitante de todas as descobertas, o dar-se conta de que a verdade óbvia é verdadeira.

É difícil de mapear qualquer programa geral para o estudo da Retórica: demanda-se um certo grau de liberdade. Na literatura, à apreciação deveria ser novamente permitido prevalecer sobre o criticismo destrutivo; e a auto expressão na escrita pode ir adiante, agora com suas ferramentas afiadas para um corte limpo e em justa proporção. A qualquer criança que já apresente uma disposição para se especializar deve lhe ser permitido e incentivado: pois quando o uso das ferramentas tiver sido aprendido bem e verdadeiramente, elas estarão disponíveis para qualquer estudo que seja. Seria bom, eu penso, que cada aluno devesse aprender a lidar realmente bem com um, ou dois, assuntos, enquanto ainda tendo algumas aulas em matérias subsidiárias, de forma a manter a sua mente aberta ao inter-relacionamento de todo o conhecimento. De fato, neste estágio, a nossa dificuldade será manter as “matérias” separadas; pois a Dialética terá mostrado serem todos os ramos do aprendizado interrelacionados, então a Retórica tenderá a mostrar que todo o conhecimento é um. Mostrá-lo, tanto quanto mostrar porquê o é, trata-se de tarefa preeminentemente da ciência mestra. Mas se a teologia é ou não estudada, nós deveríamos pelo menos insistir que crianças que aparentam estar inclinadas a especializarem-se no lado científico e matemático deveriam ser obrigadas a tomar algumas lições no lado das humanas, e vice-versa. Também, neste estágio, a gramática do Latim, havendo completado seu trabalho, pode ser deixada de lado por aqueles que preferirem continuar seus estudos de idiomas no segmento moderno; enquanto que àqueles que provavelmente não venham a ter uma grande utilidade ou aptidão para matemática podem também ser-lhes permitido descansar, mais ou menos, os seus remos. De maneira geral, o que quer que seja simplesmente aparato, pode agora vir a ficar em segundo plano, enquanto que a mente treinada é gradualmente preparada para a especialização em “matérias” nas quais que, quando o “Trivium” for completado, ela (a mente) esteja perfeitamente bem equipada para lidar por si mesma. A síntese final do “Trivium” — a apresentação e a defesa pública de uma tese — deveria ser restaurada de alguma forma; talvez como uma espécie de “exame final” durante o último período na escola.

O escopo da Retórica também depende de se o aluno será ‘apresentado’ ao mundo na idade de 16 ou se ele prosseguirá para a universidade. Uma vez que a Retórica, realmente, devesse ser abordada mais ou menos na idade de 14, a primeira categoria de alunos estudaria Gramática a partir da idade de 9 e até 11, e Dialética dos 12 aos 14; assim os seus dois últimos anos na escola seriam então devotados à Retórica, a qual, neste caso, seria de um tipo razoavelmente especializado e vocacional, capacitando-o então a abraçar imediatamente alguma carreira prática. Um aluno da segunda categoria terminaria seu curso em Dialética na sua escola preparatória, e teria aulas de Retórica durante os primeiros dois anos na sua escola pública. Aos 16, ele estaria pronto para começar com aquelas “matérias” as quais são propostas para estudo na universidade: e esta parte da sua educação corresponderá ao “Quadrivium” medieval. Isto equivale dizer que o aluno regular, normal, cuja educação formal termina aos 16, somente terá passado pelo “Trivium”; enquanto que acadêmicos terão ambos, o “Trivium” e o “Quadrivium”.

O “TRIVIUM” DEFENDIDO

É o “Trivium”, então, uma educação suficiente para a vida? Ensinado apropriadamente, eu creio que deveria ser. Ao final da Dialética, as crianças provavelmente parecerão estar muito atrás dos seus contemporâneos que foram educados conforme os bons e velhos métodos “modernos”, tanto quanto diga respeito a conhecimento detalhado de assuntos específicos. Mas após a idade de 14 eles deveriam ser capazes de facilmente ultrapassar os outros. Eu não estou de forma alguma certa se um aluno que tenha atingido completa proficiência no “Trivium” não seja capaz de prosseguir imediatamente para a universidade, com a idade de 16, assim provando ser a igualdade dos seus correspondentes medievais, cuja precocidade nos maravilhou no início desta discussão. Isto, com certeza, transformaria em forragem o sistema de escola pública Inglês, e desconcertaria em muito as universidades. Isto faria, por exemplo, com que os barcos de corrida de Oxford e de Cambridge fossem muito diferentes [6].

Mas não estou aqui para considerar os sentimentos dos corpos acadêmicos: eu me preocupo somente com o treinamento correto da mente para encontrar-se e para lidar com a massa formidável de problemas indigestos que lhe são apresentados pelo mundo moderno. Pois as ferramentas do aprendizado são as mesmas, em cada um e em qualquer assunto; e a pessoa que sabe como usá-las comandará, dominará um assunto, uma matéria nova com qualquer idade, na metade do tempo e com um quarto do esforço despendido pela pessoa que não tem tais ferramentas sob seu comando. Aprender seis matérias sem lembrar-se como elas foram aprendidas nada faz para facilitar o início de uma sétima; ter aprendido e lembrar-se da arte de aprender faz com que cada nova matéria, cada novo assunto seja uma porta aberta.

Antes de concluir estas sugestões necessariamente muito superficiais, eu devo dizer a razão porque julgo necessário, nestes dias, voltar a uma disciplina a qual tínhamos descartado. A verdade é que nos últimos trezentos anos mais ou menos, temos vivido do nosso capital educacional. O mundo pós renascentista, confuso e excitado pela profusão de novas “matérias” lhe oferecidas, apartou-se da velha disciplina (a qual tinha, de fato, se tornado tristemente obtusa e estereotipada na sua aplicação prática) e imaginou que doravante poderia, como se fosse, divertir-se feliz no seu novo e ampliado “Quadrivium” sem passar pelo “Trivium”. Mas a tradição escolástica, embora quebrada e desfigurada ainda persistiu nas escolas públicas e universidades: Milton, conquanto muito protestasse contra, foi formado por ela — o debate dos Anjos Caídos e a disputa de Abdiel com Satã têm neles as marcas das Escolas, e podem, incidentemente, figurar positivamente como passagens obrigatórias para os nossos estudos Dialéticos. Até o século dezenove, nossos assuntos públicos eram em sua maioria conduzidos, e nossos livros e nossos periódicos eram na maior parte escritos por pessoas educadas em casas, e treinadas em lugares, onde aquela tradição ainda estava viva na memória e quase que no sangue. Tanto assim, muitas pessoas atualmente, que são ateístas ou agnósticas em termos de religião, são governadas em sua conduta por um código de ética Cristão, o qual tem raízes tão profundas que nunca ocorreu a eles questioná-lo.

Mas ninguém pode viver de capital para sempre. Conquanto uma tradição tenha raízes firmes, se nunca receber água ela morre, mesmo que morra firme. E hoje em dia um grande número — talvez a maioria — dos homens e mulheres que são responsáveis pelos nossos interesses, que escrevem nossos livros e nossos jornais, que conduzem nossas pesquisas, que atuam em nossas peças e nossos filmes, que nos falam das plataformas e dos púlpitos — sim, e quem educam nossos jovens — têm, mesmo que numa tênue memória, experimentado a disciplina Escolástica. Menos e menos as crianças que tornam-se educadas trazem consigo qualquer daquela tradição. Nós perdemos as ferramentas da aprendizagem — o machado e a cunha, o martelo e a serra, o cinzel e a plaina — que eram tão adaptáveis a todas as tarefas. Ao invés deles, temos meramente um conjunto de presilhas complicadas, cada qual servirá somente para uma tarefa e nada mais, que para o uso das quais nem o olho nem a mão recebem qualquer treinamento, de modo que ninguém jamais vê o trabalho como um todo ou “vê o final da obra”.

Que proveito há no empilhar-se tarefa sobre tarefa e prolongar os dias de labuta, se ao final o objetivo principal não é alcançado? Não é a falha dos professores – eles já trabalham muitíssimo duramente. A tolice combinada de uma civilização que se esqueceu das suas próprias raízes, está forçando-lhes a apoiar o peso cambaleante de uma estrutura educacional que está construída sobre a areia. Eles estão fazendo por seus alunos o trabalho que eles próprios deveriam fazer. Porque o único e verdadeiro fim da educação é este: ensinar os homens como aprender por si mesmos; e qualquer que seja a instrução que falhe em fazê-lo, é esforço despendido em vão.


Tradução livre: Eli Daniel, Felipe Sabino de Araújo Neto e Helder Nozima

[1] - Paul M. Bechtel escreve que Dorothy Leigh Sayers (1893-1967) iniciou rapidamente uma carreira no ensino, depois de se graduar em Oxford. Ele publicou uma série longa e popular de romances policiais, traduziu a “Divina Comédia”, escreveu uma série de radionovelas, e uma defesa da crença Cristã. Durante Segunda Guerra Mundial, ela viveu em Oxford, e integrou o grupo que incluía C. S. Lewis, Charles Williams, J. R. R. Tolkein, e Owen Barfield. Por natureza e preferência, ela foi uma erudita e especialista em Idade Média. Neste ensaio, a Srta. Sayers sugere que atualmente ensinamos nossas crianças tudo, exceto como aprender. Ela propõe que adotemos uma versão apropriadamente modificada do currículo escolástico medieval, por razões metodológicas. “As Ferramentas Perdidas da Aprendizagem” foi primeiramente apresentada pela Srta. Sayers em Oxford, em 1947. Os direitos autorais são da “National Review” (150 East 35th Street, New York, NY 10016); e é aqui reproduzida com permissão.

[2] - (N.T.: Procusto - figura da mitologia clássica. A autora alude à “Cama de Procusto” expressão que remete à exigência da aderência a um protótipo, friamente e sem respeito a quaisquer circunstâncias ou opiniões que possam ser divergentes).
[3] - (N.T. “devil’s coach-horse” em inglês, nome científico é “staphylinus olens” é um besouro de jardim, de formato alongado, cor escura e aparência assustadora).
[4] - [N.T.: “Kubla Kahn ou, Uma Visão num Sonho” - poema escrito por Samuel Taylor Coleridge, escrito no outono de 1797 ou (mais provavelmente na primavera de 1798, publicado pela primeira vez em 1816]

[5] - [N.T.: “Quicunque Vult” (ou “O Credo de Santo Atanásio”) – apesar do título comum, tal documento reflete uma distinta abordagem teológica Latina à Doutrina Trinitariana]

[6] - (N.T.: a autora faz alusão às provas de remo entre as duas universidades, notórias rivais, cujos remadores são alunos de porte atlético, certamente mais velhos que 16 anos).

O igualitarismo é uma revolta contra a natureza por Murray N. Rothbard

 

MISES BRASIL

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012


igualitarismo.jpgIntrodução à primeira edição

Provavelmente, a pergunta que mais me fizeram — com alguma exasperação — ao longo dos anos é: "Por que você não se atém à economia?" 

Por razões distintas, essa pergunta tem sido endereçada a mim por colegas economistas e por pensadores e ativistas políticos de variadas filiações: conservadores, esquerdistas e libertários que discordam de mim em questões de doutrina política e se incomodam com um economista que se aventure "fora de sua disciplina." 

Entre os economistas, tal pergunta é um triste reflexo da hiperespecialização dos intelectuais de nossos tempos.  Creio ser evidente que pouquíssimos especialistas em economia — mesmo entre aqueles mais dedicados — passaram a se interessar por economia por terem se fascinado por curvas de custo, classes de indiferença e o resto da parafernália da teoria econômica moderna.  Quase a unanimidade deles se interessou por economia após ter se interessado por problemas sociais e políticos e por ter percebido que os problemas políticos realmente complicados não podem ser resolvidos sem o conhecimento de economia.  Afinal, se eles estivessem de fato interessados sobretudo em equações e tangentes em gráficos, teriam se tornado matemáticos profissionais e não gastado suas energias em teorias econômicas que são, no máximo, uma aplicação de terceira categoria da matemática. 

Infelizmente, o que em geral acontece com essas pessoas é que, ao aprenderem a estrutura e o aparato imponentes da teoria econômica, elas ficam tão fascinadas pelas minúcias da técnica que perdem de vista os problemas políticos e sociais que originalmente despertaram seu interesse.  Esse fascínio também é reforçado pela estrutura econômica da própria profissão de economista (e de todas as outras profissões acadêmicas): a saber, que prestígio, recompensas e gratificações são colhidos não por reflexões acerca dos problemas mais significativos, mas, sim, por agarrar-se a um horizonte estreito e tornar-se um dos principais especialistas em um problema técnico insignificante. 

Entre alguns economistas, essa síndrome foi levada tão longe que eles desprezam qualquer atenção conferida a problemas político-econômicos como uma impureza degradante e vil, ainda que tal atenção seja dada por economistas que tenham deixado sua marca no mundo da técnica especializada.  E mesmo entre aqueles economistas que de fato lidam com problemas políticos, qualquer consideração dedicada a temas extra-econômicos mais amplos como os de direitos de propriedade, da natureza do estado ou da importância da justiça é desprezada como incuravelmente "metafísica" e inadmissível.

Não é por acaso, no entanto, que os economistas de visão mais ampla e de espírito mais penetrante do século XX — homens como Ludwig von Mises, Frank H. Knight e F.A. Hayek — chegaram cedo à conclusão que o domínio da teoria econômica pura não era o bastante, e que explorar problemas relacionados e fundamentais da filosofia, da teoria política e da história era vital.  Em especial, eles notaram que era possível e de crucial importância elaborar uma teoria sistemática mais ampla, que abarcasse a ação humana como um todo e em que a economia ocupasse um lugar consistente mas subsidiário. 

Em meu próprio caso, o principal foco do meu interesse e dos meus trabalhos ao longo das três últimas décadas tem sido uma parte dessa abordagem mais ampla — o libertarianismo, que é a disciplina da liberdade.  Pois vim a crer que o libertarianismo é de fato uma disciplina, uma "ciência", se preferirem, independente, embora tenha sido pouco desenvolvida ao longo do tempo.  O libertarianismo é uma disciplina nova e em crescimento intimamente ligada a outras áreas de estudo da ação humana: à economia, à filosofia, à teoria política, à história, e até — mas de modo não menos importante — à biologia.  Todas essas áreas proporcionam de variadas maneiras a base, o corpo e a aplicação do libertarianismo.  Algum dia, talvez, a liberdade e os "estudos libertários" serão reconhecidos como uma parte independente, mas afim, do currículo acadêmico. 

Esse ensaio foi apresentado em uma conferência sobre a diferenciação humana organizada pelo Institute for Humane Studies, em Gstaad, na Suíça, no verão de 1972.  Uma razão e alicerce fundamental da liberdade são os fatos inelutáveis da biologia humana; em especial, o fato de que cada indivíduo é uma pessoa única, diferente de todas as outras em muitos aspectos.  Se a diversidade individual não fosse a regra universal, então a defesa da liberdade seria realmente frágil.  Afinal, se os indivíduos fossem intercambiáveis como insetos, por que alguém se preocuparia em maximizar a oportunidade de todos desenvolverem sua mente e suas capacidades e sua personalidade o mais completamente possível?  O ensaio identifica o horror primordial do socialismo na tentativa igualitarista de eliminar a diversidade entre indivíduos e grupos. Em suma, ele reflete a fundamentação do libertarianismo no individualismo e na diversidade individual. 

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Murray N. Rothbard 1974

O igualitarismo é uma revolta contra a natureza

Já faz bem mais de um século que se tem considerado que a esquerda tem a moralidade, a justiça e o "idealismo" do seu lado; a oposição conservadora tem se limitado a apontar a "falta de praticidade" dos ideais da esquerda.  Uma visão corrente, por exemplo, é que o socialismo é fantástico "na teoria", mas que não pode "funcionar" na vida prática.  O que os conservadores não perceberam é que, embora ganhos de curto prazo possam de fato ser obtidos ao se recorrer a falta de praticidade de desvios radicais do status quo, reconhecer que a ética e os "ideais" pertenciam à esquerda destinava-os à derrota a longo prazo.  Afinal, se se concede a ética e os "ideais" desde o início a um dos lados, então este conseguirá realizar mudanças graduais mas seguras em sua própria direção; e, à medida que essas mudanças se acumulam, o estigma da "falta de praticidade" torna-se cada menos relevante.  A oposição conservadora, tendo apostado todas as fichas na base aparentemente firme da "prática" (isto é, do status quo) está fadada à derrota à medida que o status quo aproxima-se da direção da esquerda.  O fato de que os stalinistas ultrapassados são universalmente tidos como os "conservadores" na União Soviética é uma feliz piada lógica sobre o conservadorismo; porque, na Rússia, os estatistas impenitentes são de fato os repositórios de uma "praticidade" ao menos superficial e de um apego ao status quo existente.

Em nenhum lugar o vírus da "praticidade" se alastrou mais do que nos Estados Unidos, porque os americanos consideram-se um povo "prático", e, assim, a oposição à esquerda, embora originalmente mais forte do que em outros países, talvez nunca tenha se mantido sobre bases menos firmes.  Agora, são os defensores do livre mercado e da sociedade livre que têm de confrontar a acusação comum de "falta de praticidade."

Em nenhuma área reconheceu-se tão profundamente e quase universalmente que a justiça e a moralidade estavam do lado da esquerda quanto em seu apoio à igualdade máxima.  Na verdade, é raro encontrar alguém nos Estados Unidos, principalmente um intelectual, que conteste a beleza e a virtude do ideal igualitarista.  Todos estão tão comprometidos com esse ideal que a "falta de praticidade" — isto é, o enfraquecimento dos incentivos econômicos — tem sido quase a única crítica até aos mais bizarros programas igualitaristas.  A marcha inexorável do igualitarismo é indicação suficiente da impossibilidade de evitar-se compromissos éticos; os americanos estritamente "práticos", ao tentarem evitar doutrinas éticas, não deixam de incorrer nelas, mas agora só o fazem de maneira inconsciente, ad hoc e assistemática.  A famosa observação de Keynes de que "homens práticos, que se consideram virtualmente livres de qualquer influência intelectual, são em geral escravos de algum economista já falecido" — é verdadeira sobretudo quanto a juízos éticos e à teoria ética.[1]

A incontestada condição ética da "igualdade" pode ser vista na prática corrente dos economistas.  Os economistas se veem com frequência diante de um problema de juízos de valor — ansiosos para fazer declarações políticas.  Como eles podem fazê-las sem deixarem de ser "científicos" e livres de juízos de valor?  No campo do igualitarismo, eles têm conseguido sustentar categoricamente, com notável impunidade, um juízo de valor em defesa da igualdade.  Às vezes, esse juízo é abertamente pessoal; outras vezes, o economista tem a pretensão de ser o representante da "sociedade" emitindo o juízo de valor desta.  O resultado, no entanto, é o mesmo.  Considere, por exemplo, Henry C. Simons.  Após criticar com razão vários argumentos "científicos" a favor do imposto progressivo, ele apoia categoricamente a progressão, da seguinte maneira:

A defesa da progressão drástica na taxação tem de basear-se na crítica à desigualdade — no juízo ético ou estético de que a distribuição prevalecente de riqueza e de renda revela um grau de desigualdade que é nitidamente mau ou desagradável.[2]

Outra tática típica pode ser colhida de um texto-padrão sobre finanças públicas. De acordo com o professor John F. Due,

O argumento mais forte para a progressão é o fato de que a opinião consensual na sociedade hoje considera a progressão necessária para a igualdade.  Isso, por sua vez, baseia-se no princípio de que o padrão de distribuição de renda, antes dos impostos, envolve desigualdade excessiva.

Esta "pode ser censurada com base em injustiça inerente em termos dos padrões aceitos pela sociedade."[3]

Independentemente de o economista defender com coragem seus próprios juízos de valor ou ter a pretensão de refletir os valores da "sociedade", sua imunidade a críticas tem sido extraordinária.  Embora a franqueza na proclamação de valores pessoais possa ser admirável, ela certamente não é suficiente; na busca da verdade, não basta proclamar os próprios juízos de valor como se tivessem de ser aceitos como tábuas vindas do céu que não estão sujeitas a críticas e avaliações intelectuais.  Não há nenhuma exigência de que esses juízos de valor sejam em algum sentido válidos, significativos, cogentes, verdadeiros?

Suscitar essas considerações, é claro, significa escarnecer os cânones modernos de wertfreiheit pura nas ciências sociais à partir de Max Weber, assim como a tradição filosófica ainda mais antiga da separação rígida entre "fato e valor", mas talvez já tenha chegado a hora de levantar essas questões fundamentais.  Suponha, por exemplo, que o juízo ético ou estético do professor Simons não tenha sido em defesa da igualdade, mas de um ideal social muito diferente.

Suponha, por exemplo, que ele fosse favorável ao assassinato de todas as pessoas baixas, de todos os adultos com menos de 1,80m.  E suponha que ele tivesse escrito que "a defesa do extermínio de todas as pessoas baixas tem de basear-se na oposição à existência de pessoas baixas — no juízo ético ou estético de que o número prevalecente de adultos baixos é nitidamente mau ou desagradável."  Alguém acha que a acolhida dada às observações do professor Simon por seus colegas economistas ou cientistas sociais teria sido a mesma?

Ou podemos imaginar o professor Due escrevendo, de modo semelhante, em defesa da "opinião na sociedade hoje" na Alemanha dos anos de 1930 a respeito do tratamento social conferido aos judeus.  O ponto é que, em todos esses casos, a condição lógica das observações de Simons ou de Due teria sido exatamente a mesma, embora sua acolhida pela comunidade intelectual americana fosse completamente diferente.

Meu ponto, até agora, tem dois lados:

1. não é suficiente que um intelectual ou um cientista social proclame seus juízos de valor — esses juízos têm de ser racionalmente defensáveis e têm de ser demonstravelmente válidos, cogentes e corretos: em suma, eles não podem mais ser tratados como imunes a críticas intelectuais; e

2. o objetivo da igualdade tem sido tratado acrítica e axiomaticamente há tempo demais como o ideal ético.

Assim, os economistas favoráveis a programas igualitaristas tipicamente pesam seu "ideal" incontestado contra possíveis efeitos desincentivadores sobre a produtividade econômica; mas o ideal em si raramente é questionado.[4]

Passemos, então, a uma crítica do ideal igualitarista em si — deveríamos conferir à igualdade sua condição atual de ideal ético incontestado?  Em primeiro lugar, temos de confrontar a própria ideia de uma separação radical entre algo que é "verdadeiro na teoria" mas "inválido na prática."  Se a teoria estiver correta, então ela funcionana prática; se ela não funcionar na prática, então é uma teoria ruim.  A separação tradicional entre teoria e prática é artificial e falaciosa.  Mas isso é tão verdadeiro na ética quanto em qualquer outro campo.  Se um ideal ético é inerentemente "não prático", isto é, se ele não pode funcionar na prática, então é um ideal insatisfatório e deve ser rejeitado de imediato.  Em termos mais precisos, se um objetivo ético viola a natureza humana e/ou o universo e, portanto, não pode funcionar na prática, então é um ideal ruim e deve ser rejeitado como um objetivo.  Se o objetivo em si viola a natureza do homem, então também é uma má ideia trabalhar na direção daquele objetivo.

Suponha, por exemplo, que todos os homens serem capazes de voar batendo os braços tenha sido adotado como um objetivo ético universal.  Presumamos que se tenha reconhecido a beleza e a virtude do objetivo dos "defensores do voo", mas que estes tenham sido criticados por serem "não práticos."  Mas o resultado é a desgraça social sem fim, na medida em que a sociedade não deixa de tentar se aproximar do voo braçal, e os defensores do voo desgraçam a vida de todos por serem frouxos ou pecadores o bastante para não se manterem fiéis ao ideal comum.  A crítica apropriada aqui é contestar o objetivo "ideal" em si; salientar que o objetivo em si é impossível, dados a natureza física do homem e o universo; e, assim, libertar a humanidade da escravidão a um objetivo inerentemente impossível e, portanto, mau.

Mas esta libertação nunca poderia ocorrer enquanto os contrários ao voo braçal se mantivessem apenas no âmbito da "prática" e concedessem a ética e o "idealismo" aos apologistas do voo braçal.  A confrontação tem de se dar na essência — na suposta superioridade ética de um objetivo disparatado.  O mesmo vale, eu sustento, para o ideal igualitarista, exceto que suas consequências sociais são muito mais nocivas do que as de uma busca incansável do voo humano autônomo.  Porque a condição de igualdade provocaria danos muito mais graves sobre a humanidade. 

O que, de fato, é a "igualdade"?  O termo tem sido muito invocado mas pouco analisado. A e B são "iguais" se são idênticos um ao outro quanto a uma característica dada.  Assim, se Smith e Jones têm exatamente 1,80m de altura, então pode-se dizer que são "iguais" em altura.  Se duas estacas são idênticas em comprimento, então seus comprimentos são "iguais" etc.  Existe uma e apenas uma maneira, portanto, pela qual duas pessoas podem ser "iguais" no sentido mais puro: elas têm de ser idênticas em todas as suas características.  Isso significa, é claro, que a igualdade de todas as pessoas — o ideal igualitarista — só pode ser alcançada se todas as pessoas forem exatamente uniformes, exatamente idênticas quanto a todas as suas características.  O mundo igualitário seria necessariamente um filme de terror — um mundo de criaturas sem rosto e idênticas, desprovidas de toda individualidade, variedade ou criatividade particular. 

Na verdade, é exatamente nas obras de ficção de terror que as implicações lógicas de um mundo igualitário são apresentadas sem retoques.  O professor Schoeck ressuscitou para nós o retrato daquele mundo no romance britânico distópico Facial Justice, de L.P. Hartley, em que a inveja é institucionalizada pelo estado, que garante que os rostos de todas as meninas sejam lindos na mesma medida por meio de cirurgias plásticas realizadas tanto nas meninas bonitas quanto nas feias, para nivelar a beleza de seus rostos segundo um denominador comum universal.[5]

Um conto de Kurt Vonnegut oferece uma descrição ainda mais completa de uma sociedade inteiramente igualitária.  Vonnegut começa o conto "Harrison Bergeron" da seguinte maneira:

Era o ano de 2081 e todos finalmente eram iguais.  Não eram iguais apenas perante Deus e a lei.  Eram iguais de todas as maneiras.  Ninguém era mais inteligente do que ninguém.  Ninguém era mais bonito do que ninguém.  Ninguém era mais forte ou mais rápido do que ninguém.  Toda essa igualdade era produto das emendas 211, 212 e 213 à Constituição e da vigilância incansável dos agentes do Ministério de Incapacitação dos Estados Unidos.

A "incapacitação" se dava em parte do seguinte modo:

Hazel tinha uma inteligência exatamente mediana, o que significava que ela não conseguia pensar sobre nada exceto em breves repentes.  E George, embora sua inteligência estivesse bem acima do normal, tinha um pequeno rádio de incapacitação mental em seu ouvido.  A lei obrigava-o a usá-lo sempre.  Ele sintonizava um transmissor do governo.  A cada vinte segundos, em média, o transmissor emitia algum barulho estridente para impedir que pessoas como George tirassem injusto proveito de seus cérebros.[6]

O horror que todos instintivamente sentimos ao ler essas histórias é o reconhecimento intuitivo de que as pessoas não são uniformes, de que a espécie, a humanidade, é excepcionalmente caracterizada por um alto grau de variedade, de diversidade e de diferenciação — em suma, de desigualdade.  Uma sociedade igualitária só pode aspirar a alcançar seus objetivos por meio de métodos totalitários de coerção; e, nesse caso, todos acreditamos e esperamos que o espírito humano do indivíduo se revoltará e frustrará qualquer tentativa de se implantar um mundo de insetos.  Em suma, o retrato de uma sociedade igualitária é uma história de terror porque, quando as implicações daquele mundo são apresentadas por inteiro, reconhecemos que tal mundo e as tentativas de alcançá-lo são gravemente desumanos; sendo desumano no sentido mais profundo, o objetivo igualitarista é, assim, mau, e qualquer tentativa em sua direção deve ser igualmente considerada má.

O fato extraordinário da diferença e da variabilidade (isto é, da desigualdade) humanas é evidente, dado o longo histórico de experiência humana; decorre daí o reconhecimento geral da natureza desumana de um mundo de uniformidade forçada.  Social e economicamente, essa variabilidade se manifesta na divisão universal do trabalho e na "Lei de Ferro da Oligarquia" — a percepção de que, em toda organização ou atividade, alguns poucos (geralmente, os mais capazes e/ou mais interessados) se tornarão líderes, com a massa dos membros ocupando as fileiras dos seguidores.  Em ambos os casos, o mesmo fenômeno está em operação — sucesso fora do comum ou liderança em qualquer atividade são obtidos pelo que Jefferson chamava de uma "aristocracia natural" — aqueles que estão em sintonia mais fina com a atividade. 

O antiquíssimo histórico de desigualdade parece indicar que estas variabilidade e diversidade estão baseadas na natureza biológica do homem.  Mas é exatamente essa conclusão sobre a biologia e a natureza humana que é o incômodo que mais atormenta nossos igualitaristas.  Nem os igualitaristas seria capazes de negar o registro histórico, mas sua resposta é que a culpa é da "cultura"; e uma vez que eles obviamente consideram que a cultura é um puro ato da vontade, o objetivo de mudar a cultura e de inculcar o valor da igualdade na sociedade parece ser alcançável.  Nesse campo, os igualitaristas abandonam qualquer pretensão de cautela científica; eles não ficam contentes ao reconhecerem que a biologia e a cultura são influências de interação mútua.  A biologia deve ser expulsa do tribunal imediata e completamente.

Reflitamos sobre um exemplo que é deliberadamente um tanto frívolo.  Suponha que observamos nossa cultura e descobrimos que um ditado comum é o de que "os ruivos são irritadiços."  Aqui está um juízo que contém desigualdade, uma conclusão de que os ruivos como um grupo tendem a diferir da população não-ruiva.  Suponha, então, que os sociólogos igualitaristas investigam o problema e descobrem que os ruivos de fato tendem a ser mais irritadiços que os não-ruivos a um nível estatisticamente relevante.  Ao invés de admitirem a possibilidade de algum tipo de diferença biológica, os igualitaristas rapidamente acrescentarão que a "cultura" é responsável pelo fenômeno: o "estereótipo" aceito de modo generalizado de que os ruivos são irritadiços havia sido incutido em cada criança ruiva desde a mais tenra idade, de modo que ela havia simplesmente internalizado tais juízos e agia da maneira pela qual a sociedade esperava que ela agisse.  Os ruivos, em resumo, haviam sofrido uma "lavagem cerebral" pela cultura não-ruiva predominante.

Embora não neguemos a possibilidade de um processo assim ocorrer, essa alegação habitual parece decididamente improvável, sob uma análise racional. Afinal, os igualitaristas implicitamente supõem que o bicho-papão da "cultura" aparece e cresce ao acaso, sem referência alguma a fatos sociais.  A ideia de que "os ruivos são irritadiços" não surgiu do nada ou como um mandamento divino; como, então, a ideia tomou corpo e se alastrou?

Um dos truques prediletos dos igualitaristas é atribuir todas essas declarações que identificam grupos a impulsos psicológicos obscuros.  O povo tinha uma necessidade psicológica de acusar algum grupo social de irritabilidade, e os ruivos foram assacados como bodes expiatórios.  Mas por que os ruivos foram os escolhidos?  Por que não os louros ou os morenos?  A suspeita horrível começa a ganhar forma de que talvez os ruivos tenham sido os escolhidos porque eles de fato eram e são mais irritadiços e de que, portanto, o "estereótipo" social é simplesmente uma observação comum dos fatos da realidade.  Certamente, os dados e os processos em operação se amoldam muito melhor a essa explicação, que é de resto muito mais simples.

Considerada objetivamente, essa explicação parece ser muito mais razoável do que a concepção da cultura como um espantalho arbitrário e ad hoc.  Sendo assim, podemos concluir que os ruivos são biologicamente mais irritadiços e que a pregação dirigida aos ruivos pelos igualitaristas, exortando-os a serem menos irritadiços, é uma tentativa de induzir os ruivos a violarem sua natureza; portanto, é essa última propaganda que pode mais precisamente ser chamada de "lavagem cerebral."

Isso não quer dizer, é claro, que a sociedade nunca possa cometer um erro e que seus juízos de identidade de grupo estejam sempre baseados em fatos.  Mas me parece que o ônus da prova repousa muito mais nos ombros dos igualitaristas do que dos seus oponentes supostamente "não esclarecidos."

Uma vez que os igualitaristas começam com o axioma a priori de que todas as pessoas, e portanto todos os grupos de pessoas, são uniformes e iguais, segue-se que, para eles, toda e qualquer diferença entre grupos quanto a status, prestígio ou autoridade na sociedade tem de ser o produto de "opressão" injusta e "discriminação" irracional.  Provas estatísticas da "opressão" sobre os ruivos seriam apresentadas de uma maneira muito familiar na vida política norte-americana; poderia ser demonstrado, por exemplo, que a renda média dos ruivos é inferior à renda de não-ruivos, e, adicionalmente, que a proporção de executivos, professores universitários ou parlamentares ruivos é menor do que seu percentual de representação na população.

A manifestação mais recente e proeminente desse tipo de pensamento aritmético se deu no movimento McGovern, na convenção democrata de 1972.  Alguns grupos são apontados como vítimas de "opressão" devido ao número de delegados presentes em convenções anteriores ter ficado aquém de seu percentual de participação na população como um todo.  Em especial, mulheres, jovens, negros, chicanos (aqueles vindos do terceiro mundo) foram intitulados vítimas de opressão; em consequência, o Partido Democrata, sob a orientação do pensamento aritmético dos igualitaristas, passou por cima da escolha dos eleitores a fim de impor a devida cota de representação daqueles grupos.

Em alguns casos, o rótulo de "opressão" foi uma construção quase grotesca.  O fato de os jovens de 18 a 25 anos de idade terem sido "subrepresentados" poderia ter sido colocado em uma perspectiva apropriada por umreductio ad absurdum: certamente, algum exaltado reformista seguidor de McGovern poderia ter se levantado para lamentar a grave "subrepresentação" das crianças de cinco anos na convenção e para exigir que o bloco das crianças de cinco anos recebesse imediatamente o que lhe era devido.  É uma consideração biológica e social marcada pelo bom senso perceber que os jovens abrem seu caminho pela sociedade por meio de um processo de aprendizagem; os jovens sabem menos e têm menos experiência do que os adultos maduros e, assim, deveria ser claro por que eles tendem a ter menos status e autoridade do que os mais velhos.  Mas aceitar isso implicaria lançar dúvidas substanciais sobre o credo igualitarista; além disso, contrariaria o culto à juventude que é há muito tempo um problema grave da cultura norte-americana.  E assim os jovens foram devidamente intitulados uma "classe oprimida", e a imposição de sua proporção na população é concebida apenas como justa reparação por sua anterior condição de explorados.[7]

As mulheres formam outra "classe oprimida" recém-descoberta, e o fato de que representantes políticos têm tradicionalmente sido em muito mais de 50% homens é agora considerado um sinal evidente da opressão sobre as mulheres.  O sdelegados das convenções políticas vêm das fileiras de ativistas partidários, e dado que as mulheres nunca foram nem de perto tão ativas politicamente quanto os homens, sua participação tem sido compreensivelmente baixa.  Mas, confrontados com esse argumento, as forças em crescimento da "libertação das mulheres" nos Estados Unidos recaem no argumento talismânico a respeito da "lavagem cerebral" por nossa "cultura."  Mas as liberacionistas feministas dificilmente podem negar o fato de que toda cultura e civilização na história, da mais simples à mais complexa, foram dominadas pelos homens.  (Desesperadas, as liberacionistas têm ultimamente respondido com fantasias sobre o poderoso império amazônico.)  Sua resposta, mais uma vez, é que desde tempos imemoriais uma cultura dominada pelo homem produz lavagens cerebrais sobre mulheres oprimidas para prendê-las aos cuidados com os filhos, à casa e ao lar doméstico.  A tarefa das liberacionistas é levar a cabo uma revolução na condição feminina pela pura força da vontade, por um "despertar da consciência." Se a maioria das mulheres continuar a se ater às preocupações domésticas, isso apenas revelará a "consciência falsa" que tem de ser extirpada.

É claro, uma resposta negligenciada é que, se de fato os homens conseguiram dominar todas as culturas, então isso é em si uma demonstração da "superioridade" masculina; afinal, se ambos os gêneros são iguais, como pôde o domínio masculino surgir em todos os casos?  Mas, afora essa questão, a própria biologia está sendo raivosamente negada e posta de lado.  A palavra de ordem é que não há, não deve haver, não pode haver nenhuma diferença biológica entre os sexos; todas as diferenças históricas ou atuais têm de ser produto de lavagens cerebrais culturais.

Irving Howe, em sua brilhante refutação da liberacionista feminista Kate Millet, esboça várias diferenças biológicas importantes entre os sexos — diferenças importantes o bastante para ter efeitos sociais duradouros.  São elas:

1. "a singular experiência feminina da maternidade", incluindo o que o antropólogo Malinowski chama de "um vínculo íntimo e completo com a criança (...) associado a efeitos psicológicos e a emoções fortes";

2. "os componentes hormonais de nossos corpos, os quais variam não apenas entre os sexos, mas também entre idades diferentes no mesmo sexo";

3. "as possibilidades distintas para o trabalho criadas por níveis distintos de musculatura e de controles físicos"; e

4. "as consequências psicológicas de posturas e possibilidades sexuais diferentes," em especial a "distinção fundamental entre papéis sexuais ativos e passivos" determinados biologicamente no homem e na mulher, respectivamente.[8]

Howe segue citando o reconhecimento, pela Dra. Eleanor Maccoby, em seu estudo da inteligência feminina, de que

é bem possível que existam fatores genéticos diferenciando os dois sexos e guiando seu desempenho intelectual (...)  Por exemplo, há boas razões para acreditarmos que os meninos são inatamente mais agressivos do que as meninas — e digo "agressivo" em um sentido amplo, que implica não apenas brigas, mas também domínio e iniciativa — e se esse atributo está na base do desenvolvimento posterior do pensamento analítico, então os meninos têm uma vantagem que as meninas (...) dificilmente poderão superar.

A Dra. Maccoby acrescenta que "se tentarmos separar a educação de crianças entre meninos e meninas, poderemos descobrir o que as mulheres têm de fazer e os homens, não."[9]

O sociólogo Arnold W. Green destaca o surgimento recorrente do que os igualitaristas denunciam como "papéis sexuais estereotipados" mesmo em comunidades originalmente dedicadas à igualdade absoluta.  Assim, ele cita o relato dos kibbutz de Israel:

O fenômeno é mundial: as mulheres se concentram em atividades que exigem, isoladamente ou em combinação, habilidades de dona de casa, paciência e rotina, destreza manual, apelo sexual, contato com crianças.  A generalização mantém-se de pé nos kibbutz de Israel, com seu firme ideal de igualdade sexual.  Uma "regressão" a uma separação entre "trabalho para mulheres" e "trabalho para homens" ocorreu na divisão do trabalho, chegando-se a um estado de coisas que espelha o de outros lugares.  O kibbutz é dominado por homens e por atitudes masculinas tradicionais, em equilíbrio ao conteúdo de ambos os sexos.[10]

Irving Howe nota certeiramente que, na raiz do movimento pela libertação feminina, está o ressentimento contra a própria existência da mulher como uma entidade distinta:

Porque o que parece incomodar a Senhora Millett não são meramente as injustiças que as mulheres sofreram ou as discriminações às quais elas continuam sujeitas.  O que a incomoda acima de tudo (...) é a própria existência da mulher.  A distinção psicobiológica das mulheres desagrada a Senhora Millett, e o máximo que ela faz é reconhecer — infelizmente, que escolha havia? — as diferenças inevitáveis da anatomia.  Ela não suporta a perversa recusa da maioria das mulheres em reconhecer a magnitude de sua humilhação, a dependência vergonhosa que demonstram em relação aos homens (não muito independentes), os prazeres enlouquecedores que chegam a sentir preparando jantares para o "grupo dominante" e limpando o nariz de seus pirralhos catarrentos.  Lutando contra a noção de que tais papéis e atitudes são determinados biologicamente, uma vez que até ideias biológicas lhe parecem uma maneira de reduzir para sempre as mulheres a uma condição subordinada, ela no entanto atribui à cultura um leque tão amplo de costumes, ultrajes e males que tal cultura chega a parecer uma força mais inflexível e ameaçadora do que a própria biologia.[11]

Em uma crítica aguda ao movimento de libertação feminista, Joan Didion distingue sua raiz em uma rebelião não apenas contra a biologia, mas também contra a própria "organização da natureza em si":

Se a necessidade de reprodução convencional da espécie parece injusta às mulheres, então transcendamos, por meio da tecnologia, "a própria organização da natureza", a opressão, como Shulamith Firestone a via, "que percorre a história conhecida até o próprio reino animal." Eu aceito o Universo, Margaret Fuller finalmente declarou: Shulamith Firestone não o aceitou.[12]

Diante disso, ficamos tentados a parafrasear a advertência de Carlyle: "Por Deus, a senhora deveria."

Outra rebelião em crescimento contra normas sexuais biológicas, assim como contra a diversidade natural, é representada pelos apelos cada vez mais fortes à bissexualidade, provenientes dos intelectuais de esquerda.  Os atos de evitar a heterossexualidade "rígida, estereotipada" e de adotar a bissexualidade indiscriminada deveriam alargar a consciência, eliminar distinções "artificiais" entre os sexos e tornar todas as pessoas simples e unissexualmente "humanas."

Mais uma vez, a lavagem cerebral produzida por uma cultura dominante (nesse caso, heterossexual) supostamente oprimiu uma minoria homossexual e estorvou a uniformidade e a igualdade inerentes à bissexualidade.  Porque, se não, todo indivíduo poderia desenvolver ao máximo sua "humanidade" na "perversidade polimórfica" tão cara aos corações de importantes filósofos sociais da nova esquerda, como Norman O. Brown e Herbert Marcuse.

Nos últimos anos, ficou cada vez mais claro que a biologia representa uma barreira às fantasias igualitaristas.  As pesquisas do bioquímico Roger J. Williams enfatizaram repetidamente a incrível amplitude da diversidade individual por todo o organismo humano.  Nesse sentido,

os indivíduos diferem um do outro até nos detalhes mais minuciosos da anatomia e da química e física corporais; nas digitais dos dedos das mãos e dos pés; na textura microscópica do cabelo; no padrão de pelos do corpo, nos sulcos das mãos; na espessura da pele, sua cor, sua tendência a ficar com bolhas; na distribuição de terminações nervosas pela superfície do corpo; no tamanho e formato das orelhas, dos canais auditivos ou dos canais semicirculares; no comprimento dos dedos; no caráter das ondas cerebrais (pequenos impulsos elétricos emitidos pelo cérebro); no número exato de músculos no corpo; na atividade cardíaca; na força dos vasos sanguíneos; nos grupos sanguíneos; na taxa de coagulação do sangue — e assim por diante, quase ad infinitum.

Já sabemos bastante sobre como a hereditariedade funciona e sobre como é não apenas possível mas certo que cada ser humano possua, por hereditariedade, um mosaico extraordinariamente complexo, composto por milhares de itens, que é característico apenas dele.[13]

A base genética da desigualdade de inteligência também ficou cada vez mais evidente, apesar das ofensas emotivas lançadas sobre esses estudos tanto por cientistas quanto pelo público leigo.  Estudos de gêmeos idênticos criados em meios contrastantes estão entre as maneiras pelas quais se chegou a tal conclusão; e o professor Richard Herrstein estimou recentemente que 80%da variabilidade na inteligência humana têm origem genética.  Herrstein conclui que qualquer tentativa política de proporcionar ambientes iguais para todos os cidadãos apenas intensificará o grau de diferenças socioeconômicas provocadas pela variabilidade genética.[14]

A revolta igualitarista contra a realidade biológica, por mais significativa que seja, é apenas um subconjunto de uma revolta mais ampla: contra a estrutura ontológica da própria realidade, contra a "própria organização da natureza"; contra o universo como ele é.  No cerne da esquerda igualitarista, está a crença patológica de que não existe nenhuma estrutura da realidade; de que todo o mundo é uma tabula rasa que pode ser modificada a qualquer momento e em qualquer direção desejada pelo mero exercício da razão humana — em suma, de que a realidade pode ser instantaneamente transformada pelo mero desejo ou capricho dos seres humanos.  Certamente, esse tipo de pensamento infantil está no cerne do apelo apaixonado de Herbert Marcuse à negação por completo da estrutura existente da realidade e à sua transformação no que ele reputa ser seu potencial verdadeiro.

Em nenhum lugar o ataque esquerdista à realidade ontológica se mostra mais nítido do que nos sonhos utópicos de como a futura sociedade socialista será.  No futuro socialista de Charles Fourier, de acordo com Ludwig von Mises,

todas as feras perigosas terão desaparecido, e, em seu lugar, estarão animais que ajudarão o homem em suas atividades — ou mesmo farão seu trabalho por ele.  Um anticastor cuidará da pesca; uma antibaleia empurrará os barcos em uma calmaria; um anti-hipopótomo rebocará os barcos fluviais. Ao invés do leão, haverá um antileão, um corcel de agilidade fabulosa, sobre cujo dorso o homem sentará tão confortavelmente quanto em uma carruagem bem arqueada.  "Será um prazer viver em um mundo com servos assim."[15]

Adicionalmente, de acordo com Fourier, os próprios oceanos conteriam limonada, em vez de água salgada.[16]

Fantasias igualmente absurdas estão na raiz da utopia marxista do comunismo.   Libertadas das supostas amarras da especialização e da divisão do trabalho (o cerne de qualquer produção superior ao nível mais primitivo e, portanto, de qualquer sociedade civilizada), todas as pessoas na utopia comunista desenvolveriam ao máximo seus potenciais em qualquer direção.[17]  Como Engels escreveu em seu Anti-Dühring, o comunismo daria a "cada pessoa a oportunidade de desenvolver e exercitar todas as suas faculdades, físicas e mentais, em todas as direções."[18]  E Lenin ansiava, em 1920, pela "abolição da divisão do trabalho entre as pessoas (...) a educação, o ensino e o treinamento das pessoas com um desenvolvimento completo e um treinamento completo, pessoascapazes de fazer tudo.  O comunismo está marchando e tem de marchar rumo a esse objetivo, e vai alcançá-lo."[19]

Em sua crítica mordaz da visão comunista, Alexander Gray ataca:

Que todas as pessoas possam ter a oportunidade de desenvolver todas as suas faculdades, físicas e mentais, em todas as direções, é um sonho que animará a visão apenas dos simples de espírito, alheios às restrições impostas pelos limites estreitos da vida humana.  Porque a vida é uma série de atos voluntários, e cada escolha é ao mesmo tempo uma renúncia.

Até os habitantes do futuro reino encantado de Engels terão de decidir, mais cedo ou mais tarde, se querem ser o Arcebispo de Canterbury ou o Lorde de First Sea [almirantado], se devem tentar se destacar como violinista ou pugilista, se devem optar por saber tudo sobre literatura chinesa ou sobre as páginas ocultas da vida de uma cavalinha.[20]

É claro que uma maneira de tentar resolver esse dilema é fantasiar que o Novo Homem Comunista do futuro será um super-homem, um super-humano em suas capacidades para transcender a natureza.  William Godwin acreditava que, assim que a propriedade privada fosse abolida, o homem se tornaria imortal.  O teórico marxista Karl Kautsky afirmava que, na futura sociedade comunista, "um novo tipo de homem surgirá (...) um super-homem (...) um homem exaltado."  E Leon Trotsky profetizava que, sob o comunismo,

o homem se tornará incomparavelmente mais forte, mais inteligente, superior.  Seu corpo, mais harmonioso, seus movimentos, mais rítmicos, sua voz, mais musical (...) A média humana se elevará ao nível de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx.  Acima dessas alturas, novos picos surgirão.[21]

Começamos considerando a visão habitual de que os igualitaristas, apesar de um quê de falta de praticidade, têm a ética e o idealismo moral do seu lado.  Encerramos com a conclusão de que os igualitaristas, embora inteligentes como indivíduos, negam o próprio fundamento da inteligência humana e da razão humana: a identificação da estrutura ontológica da realidade, das leis da natureza humana e do universo.  Ao fazerem isso, os igualitaristas estão agindo como crianças terrivelmente mimadas, negando a estrutura da realidade em prol da materialização rápida de suas próprias fantasias absurdas.  Não apenas mimadas, mas também altamente perigosas; porque o poder das ideias é tal que os igualitaristas têm uma boa chance de destruir o próprio universo que desejam negar e transcender, destruindo estrepitosamente tal universo perante nossos ouvidos.  Uma vez que sua metodologia e seus objetivos negam a própria estrutura da humanidade e do universo, os igualitaristas são profundamente anti-humanos; e, portanto, sua ideologia e suas atividades também podem ser tachadas de profundamente más.  Os igualitaristas não têm a ética do seu lado, a não ser que se sustente que a destruição da civilização, e até da própria raça humana, possa ser engalanada com a coroa de louros de uma moralidade elevada e louvável.

Tradução: Ricardo Bernhard


[1] John Maynard Keynes, The General Theory of Employment, Interest, and Money (New York: Harcourt, Brace, 1936), p. 383.

[2] Henry C. Simons, Personal Income Taxation (1938), pp. 18?19, citado em Walter J. Blum and Harry Kalven, Jr.,The Uneasy Case for Progressive Taxation (Chicago: University of Chicago Press, 1953), p. 72.

[3] John F. Due, Government Finance (Homewood, Ill.: Richard D. Irwin, 1954), pp. 128?29.

[4] Assim:

Uma terceira linha de objeção à progressão, e infelizmente aquela que recebe mais atenção, é que ela diminui a produtividade econômica da sociedade.  Praticamente todos os que defendem a progressão no imposto sobre a renda reconheceram isso como uma consideração que faz pender a balança para o outro lado. (Blum e Kalven, The Uneasy Case for Progressive Taxation, p. 21)

O "ideal" contra o "prático" mais uma vez!

[5] Helmut Schoeck, Envy (New York: Harcourt, Brace, and World, 1970), pp. 149?55.

[6] Kurt Vonnegut, Jr., "Harrison Bergeron," em Welcome to the Monkey House (New York: Dell, 1970), p. 7.

[7] Os igualitaristas, em meio a suas outras atividades, têm tido muito trabalho "corrigindo" a língua inglesa.  Considera-se agora, por exemplo, que o uso da palavra "menina" humilha e degrada gravemente as mulheres jovens e implica sua subserviência natural aos adultos.  Como resultado, os igualitaristas de esquerda agora se referem a meninas de praticamente todas as idades como "mulheres", e podemos esperar com confiança passar a ler sobre as atividades de "uma mulher de cinco anos de idade."

[8] Irving Howe, "The Middle-Class Mind of Kate Millett," Harper's (December, 1970): 125?26.

[9] Ibid., p. 126.

[10] Arnold W. Green, Sociology (6th ed., New York: McGraw-Hill, 1972), p. 305. Green cita o estudo de A.I. Rabin, "The Sexes: Ideology and Reality in the Israeli Kibbutz," em G.H. Seward and R.G. Williamson, eds., Sex Roles in Changing Society (New York: Random House, 1970), pp. 285?307.

[11] Howe, "The Middle-Class Mind of Kate Millett," p. 124.

[12] Joan Didion, "The Women's Movement," New York Times Review of Books (July 30, 1972), p. 1.

[13] Roger J. Williams, Free and Unequal (Austin: University of Texas Press, 1953), pp. 17, 23. Confira também: Williams Biochemical Individuality (New York: John Wiley, 1963) e You are Extraordinary (New York: Random House, 1967).

[14] Richard Herrnstein, "IQ," Atlantic Monthly (September, 1971).

[15] Ludwig von Mises, Socialism: An Economic and Sociological Analysis (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1951), pp. 163?64.

[16] Ludwig von Mises, Human Action (New Haven, Conn.: Yale University Press, 1949), p. 71. Mises cita o primeiro e o quarto volumes das Oeuvres Complètes de Fourier.

[17] Para mais a respeito da utopia comunista e da divisão do trabalho, confira: Murray N. Rothbard, Freedom, Inequality, Primitivism, and the Division of Labor (cap. 16 do presente livro).

[18] Citado em Alexander Gray, The Socialist Tradition (London: Long-mans, Green, 1947), p. 328.

[19] O itálico é de Lenin. V.I. Lenin, Left-Wing Communism: An Infantile Disorder (New York: International Publishers, 1940), p. 34.

[20] Gray, The Socialist Tradition, p. 328.

[21] Citado em Mises, Socialism: An Economic and Sociological Analysis, p. 164.

Murray N. Rothbard (1926-1995) foi um decano da Escola Austríaca e o fundador do moderno libertarianismo. Também foi o vice-presidente acadêmico do Ludwig von Mises Institute e do Center for Libertarian Studies.